Especial Covid-19

Tem boi na linha: uma trégua no avanço da revolução cultural

Luiz Bevilacqua, 22/07/2020

Foto de Julia M Cameron no Pexels

Considerando a pandemia em curso e a incompetência do governo federal na administração do país, Bevilacqua reflete sobre os efeitos da revolução cultural em curso, que inclui a globalização do sistema de educação superior, e sugere uma revisão profunda do sistema acadêmico brasileiro, apresentando uma proposta inovadora para a estrutura curricular de graduação da UFRJ

Há pouco mais de um ano, escrevi um texto para a Revista Estudos Avançados ‒ USP cujo título é “O último trem para Alexandria”. Pessimista, via na ocasião a derrocada de todas as nossas conquistas na educação superior e na contribuição ao avanço do conhecimento. Um quadro patrocinado internamente pela extinção de vida inteligente em quase todos os ministérios da atual administração e externamente diante do rápido avanço da revolução cultural. Com esta última evoluindo aceleradamente, seríamos rapidamente dominados e subordinados a uma cultura externa, colocando-nos em posição subalterna com consequências mais graves que as decorrentes da dominação industrial.1

O surgimento da pandemia Covid-19, com trágicas consequências para a saúde de praticamente todos os povos, atrasou o avanço da revolução cultural a curto prazo. Mas potencializa a sua expansão a médio prazo. Isto é, a obrigação de isolamento fez-nos aprender a viver e conviver a distância, desenvolvendo técnicas de comunicação que irão se aperfeiçoando. A facilidade de comunicação a distância e, portanto, de educação a distância, pelo menos em certos aspectos, ganha força. Aproveitar essa conjuntura para um novo impulso no sentido da dominação cultural será um movimento inevitável. Se hoje “tem boi na linha”, o que faz atrasar a saída do trem para Alexandria, logo que tirarem o boi, o trem avançará com maior velocidade.

O surgimento da pandemia Covid-19, com trágicas consequências para a saúde de praticamente todos os povos, atrasou o avanço da revolução cultural a curto prazo. Mas potencializa a sua expansão a médio prazo.

De qualquer forma, temos um curtíssimo espaço de tempo para enfrentar a onda de dominação cultural sem que sejamos levados de roldão. Preservar a nossa independência e reverter o processo, é essa a meta que deve orientar as ações imediatas. Para justificar a proposta, apresento algumas considerações que considero importantes.

1. A conjuntura nacional: o que se pode esperar do governo federal

A expansão da Covid-19 no Brasil veio explicitar a fraqueza do atual governo ‒ ou desgoverno, seria melhor dizer ‒, seja no exercício mais elementar do conhecimento racional, seja na responsabilidade pela redução do risco de morte do povo brasileiro, seja com o compromisso republicano de preservar a democracia, seja no respeito à justiça. O presidente da república revela pobreza intelectual e insensibilidade às mais elementares regras de civilidade que o levam próximo a admitir o genocídio como atitude natural e até necessária em nome de valores econômicos e de preservação do poder.

A incompetência do atual presidente da república, assim como da maioria absoluta do seu ministério, que se projeta em verdadeira grandeza na atual situação, já tinha sido revelada pelo seu principal colaborador, o senhor Paulo Guedes, que há pouco mais de um ano – em março de 2019 – afirmava: “Temos um presidente que adora Coca-Cola e Disneylândia”. E, complementando, anunciava a derrota antes da batalha, convidava empresários e governos de todas as partes do planeta a se aproveitarem de nossas riquezas, a, de certa forma, saquearem o Brasil. Ainda em março do ano passado, em discurso na Câmara de Comércio dos EUA, declarava: “Eu os convido para essa nova parceria. (…) Vocês podem ir lá ajudar a financiar nossas rodovias, ir atrás de concessões de petróleo e gás. Daqui a três, quatro meses, vamos vender o pré-sal. Todos vão estar lá: chineses, americanos, noruegueses”. Um pouco mais tarde, em maio de 2019, em outro discurso nos Estados Unidos, acrescentava que pretende entregar o Banco do Brasil ao Bank of America, nos moldes do que foi feito entre a Embraer e a Boeing.

…estamos diante de um governo em que predomina o vazio intelectual aliado à truculência comportamental na busca da consolidação de um projeto político pessoal do presidente, sustentado por um ministério composto por pessoas, na sua maioria, alucinadas, retrógradas, incompetentes.

As declarações e intervenções do senhor Weintraub são igualmente alarmantes. Não é necessário recordá-las, já foram suficientemente divulgadas, basta lembrar uma, relativamente recente, encerrando um depoimento no Senado: “Falo o que me dá na telha”. Disse bem o ministro, como o demonstra a sua mais recente declaração, na deprimente reunião ministerial de 22 de abril, ao ofender os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Mais um produto da “telha”.

Os últimos acontecimentos no Ministério da Saúde acrescentam ao currículo do presidente da república mais uma comprovação de sua incapacidade de governar racionalmente ao demitir dois ministros, da área da saúde, que tomaram decisões com base em conhecimento científico. O risco que pretende impor à população, associado a declarações criminosas anteriores, justifica a acusação de genocida.2

Tudo isso é mais que suficiente para concluir que estamos diante de um governo em que predomina o vazio intelectual aliado à truculência comportamental na busca da consolidação de um projeto político pessoal do presidente, sustentado por um ministério composto por pessoas, na sua maioria, alucinadas, retrógradas, incompetentes. Mais grave é o ovo da serpente que começa a aparecer com a convocação das Forças Armadas para garantir a permanência do presidente no poder e a blindagem da escolha de trajetórias sem sustento racional, um desastre nunca visto na nossa história. Portanto, não é possível adotar ações que evitem a catástrofe anunciada com base em experiência anterior. Não existe experiência anterior, o que sugere que será necessário assumir riscos, graves riscos.

2. A conjuntura internacional

A globalização finalmente mostra a sua cara, sendo muito bem caracterizada pela declaração de Julius Krein,3 em conversa com David Scharfenberg,4 do jornal The Boston Globe:

The trouble with the free-trade orthodoxy, Krein says, is that it puts the American economy outside of the control of the American people, sacrificing the interests of the average worker to an elusive “global common good.” The real common good, he suggests ‒ the manageable one ‒ is the good of a country, with defined borders and an electorate that can hold its government accountable. “The only democratic institutions that we have,” he says, “are national institutions. So if you get rid of the nation-state, what you’re really doing is getting rid of democracy”. (Scharfenberg, 2017, s.p., grifo meu).

É dentro dessa perspectiva de conjuntura internacional que se insere a globalização do sistema de educação superior. O conhecimento está cada vez mais valorizado, e a educação é um instrumento precioso para conquistar “mercados” e controlar o nível de conhecimento aceitável nos países periféricos que possam ser úteis aos países centrais. Além disso, é mais uma fonte de renda para sustentar o sistema de educação nos países centrais, que está se tornado cada vez mais caro. Estamos em franca era de revolução cultural. Os países desenvolvidos marcham para as conquistas dos meios de educação superior em todo o mundo. Vejam apenas uma pequena previsão apresentada por Jason Lane e Kevin Kinser no artigo “Is today’s university the new multinational corporation?”: 5

With declining government subsidies at home, concerns about rising tuition rates and heightened competition for students, some colleges and universities are looking for new ways to expand their economic base, through the delivery of courses overseas, foreign research monies and relationships with donors in other countries. […] This is not all. Higher education institutions have become tools of public diplomacy. Some exporting governments see International Branch Campuses (IBCs) as a means to strengthen their alliances with the importing nations. (Lane, J.; Kinser, K., jun. 2015, s.p., grifo meu)

Mas mesmo se descartarmos a questão comercial, importa considerar a nossa posição no contexto da evolução científica e tecnológica. Não temos tido muito cuidado em considerar de que maneira somos vistos. Isso conta. O nosso ingresso no complexo de cooperação internacional é predominantemente fundamentado na nossa admiração dos mais fortes. Entramos na expectativa de encontrar espaço para contribuições com considerável conteúdo original. Mas na maioria dos casos somos colocados “no devido lugar”, como aponta Joe Alper, em A vision for the future of center-based multidisciplinary engineering research: proceedings of the symposion:6

At the same time that countries talk more about national value capture, their innovation policies are emphasizing the need for their centers to be connected globally to other centers. There is an interesting ongoing debate, said O’Sullivan, about the knowledge flow at a time when nations with mature innovation economies are partnering with countries whose innovation economies are less mature. This division of labor tends to have engineering and scientific research take place in more mature nations while prototyping, scale-up, and manufacturing occur in what he called “catch-up” economies. (Alper, J., 2016, p. 7)

Várias outras iniciativas mostram sem subterfúgios o avanço da revolução cultural. Não podemos nos queixar de que estamos sendo enganados. O jogo é aberto. A trajetória da revolução cultural é inevitável. Está claramente explicitada nas declarações, projetos e ações das nações do mundo com economias avançadas.

Não podemos nos queixar de que estamos sendo enganados. O jogo é aberto. A trajetória da revolução cultural é inevitável.

No caso da revolução industrial, cedemos à dominação externa não obstante o esforço de alguns homens esclarecidos, como o Barão de Mauá. Infelizmente a autodepreciação da capacidade de produção industrial autônoma, a prevalência da orientação comercial e o ganho financeiro a curto prazo não permitiram a implantação de um parque industrial com cara brasileira. Na direção oposta, a reação dos EUA foi drástica com opção de produção interna em lugar de importação de produtos da Europa. Essa opção fica explícita na declaração de Charles Elliot,7 reitor da Universidade de Harvard:

I have given special attention to the schools here provided for the education of young men for those arts and trades which require some knowledge of scientific principles and their applications, the schools which turn out master workmen, superintendents, and designers for the numerous French industries which demand taste, skill, and special technical instruction. Such schools we need at home. I can’t but think that a thorough knowledge of what France has found useful for the development of her resources, may someday enable me to be of use to my country. At this moment, it is humiliating to read the figures which exhibit the increasing importations of all sorts of manufactured goods into America. Especially will it be the interest of Massachusetts to foster by every mean in her power the manufactures which are her main strength. (James, H., 1930).

Nessa declaração fica explícita a opção esplêndida dos EUA pela formação acadêmica, pelo avanço do conhecimento e pelo desenvolvimento de capacidade industrial. Provocou naquela ocasião uma revolução no sistema de educação superior norte-americano com consequências muito positivas no parque industrial. Ora, hoje, diante da revolução cultural em marcha, o que de mais precioso pode acontecer do que uma revolução educacional para evitar que sejamos engolidos nessa nova onda, perdendo a independência para definir nosso próprio destino, jogados à mercê de projetos alheios à nossa cultura e subordinados a diretrizes educacionais externas.

Se quisermos preservar o Brasil independente, são necessárias ações concretas AGORA. Mas para isso é necessário avaliar as nossas próprias forças.

Essa trajetória inevitável já está penetrando na nossa sociedade, até mesmo em setores acadêmicos, e sem dúvidas é acolhida pelo atual governo, certamente com grande apoio do Ministério da Educação (MEC), que inclusive, com isso, se vê desobrigado de pensar. Eu não estou certo se os nossos líderes nos setores de pesquisa científica e educação superior se dão conta dessa situação. De qualquer forma, a trágica pandemia que parou a grande maioria dos países do nosso planeta impôs uma trégua no avanço da revolução cultural, pelo menos na velocidade com que vinha progredindo.

No entanto, as condições de isolamento social despertaram novas ideias para contornar a falta de comunicação direta. Várias alternativas estão sendo elaboradas para facilitar a comunicação a distância. De fato, meios de comunicação virtual já estão sendo desenvolvidos e implementados faz algum tempo, mas a experiência adquirida com o prolongado processo de isolamento certamente trará dados importantes para aumentar a sua eficácia. Então a retomada da marcha da revolução cultural virá com mais força e maior eficácia.

Não nos resta muito tempo para evitar o colapso da nossa cultura. O atual governo ignora a importância do saber na condução dos destinos de uma nação. Quer subordinar o futuro do Brasil à sua medíocre perspectiva empacotada em ambições pessoais. Pensa que a Nação Brasileira cabe dentro da sua limitadíssima estatura política. Uma nação sob ameaça de dominação cultural, conceito invisível para a atual administração. Se quisermos preservar o Brasil independente, são necessárias ações concretas AGORA. Mas para isso é necessário avaliar as nossas próprias forças.

3. Quem somos, a comunidade acadêmica

Ao contrário da trajetória do setor industrial, que surgiu e colapsou em ciclos bem determinados, o setor acadêmico cresceu muito nos últimos 50 anos e hoje tem uma respeitável posição no mundo acadêmico. No entanto, é preciso que se tome muito cuidado, pois não é impossível que entre em colapso com o patrocínio da atual administração federal. É preciso que se leve em conta que, não obstante o rápido avanço da nossa contribuição ao conhecimento científico e tecnológico, na medida em que esse último foi possível, o reconhecimento pela sociedade brasileira da nossa contribuição ainda é frágil. A sociedade ainda não sabe do que se trata essa coisa que se chama avanço do conhecimento, e para que serve? A pandemia em curso, Covid-19, veio mostrar em parte o que se faz nas universidades e nos institutos de pesquisa. A imprensa se interessou pela ciência, pelas atividades científicas e as respectivas implicações na vida da população. Houve divulgação do valor do conhecimento, e creio que contamos com essa vantagem temporária de reconhecimento do trabalho científico e tecnológico. Talvez limitado a dado setor, mas de qualquer forma demonstrando o potencial para enfrentar desafios.

A pandemia em curso, Covid-19, veio mostrar em parte o que se faz nas universidades e nos institutos de pesquisa. A imprensa se interessou pela ciência, pelas atividades científicas e as respectivas implicações na vida da população.

Segundo dados recentes publicados pelo National Science Board ‒ Science & Engineering Indicators ‒ NSB-2020-6, reproduzidos na tabela 1, o Brasil ocupa o 11º lugar na classificação geral de indicadores científicos, tendo multiplicado por quase seis vezes a produção de artigos nos últimos dez anos. Lembrando que há 50 anos nem aparecíamos como país capaz de fazer avançar o conhecimento científico e tecnológico, as nossas conquistas são excelentes, contrariamente ao que é divulgado pelo senhor ministro da educação e alguns fanáticos de plantão, inclusive no próprio setor acadêmico.

Tabela 1 ‒ Artigos em Ciência e Tecnologia, por regiões, países e economias mais produtivas entre 2008 e 2018

Ordem (2018)PaísPublicações (103) 2008Publicações (103) 2018Variação média anual 2008-2018Classificação ‒ Taxa de crescimento
1China2495287.814
2EUA3944230.7112
3Índia4913610.732
4Alemanha921041.2810
5Japão10899-0.9115
6UK91980.6713
7Rússia32829.883
8Itália56712.418
9Coreia do Sul44664,176
10França6666-0.0214
11Brasil35605.425
12Canadá53601.1911
13Espanha44542,139
14Austrália37543,737
15Irã174810.991
Fonte: National Science Board ‒ Science and Engineering Indicators ‒ 2020-6.

A convergência disciplinar está implantada no Brasil com sucesso, como demonstra a evolução dos programas de pós-graduação interdisciplinares. A nossa contribuição para o avanço do conhecimento que exige a intervenção de várias áreas do saber é notória. Em 2015, a revista Nature fez uma avaliação da contribuição ao conhecimento científico em setores interdisciplinares. O Brasil ocupou o quinto lugar.

Se analisarmos os gastos em Ciência e Tecnologia (C&T) e a eficiência da nossa produção, também fica evidente que a nossa posição é destacada dentre os países mais produtivos. Na figura 1, estão incluídos os quinze primeiros países classificados segundo o fator HH da International Scientific Journal & Country Ranking e com gastos e força de trabalho em C&T segundo dados do World Bank. Desse modo, os critérios de qualidade de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), investimentos e força de trabalho em C&T ficam homogêneos.

Figura 1 ‒ Classificação segundo o fator HH

Fonte: International Scientific Journal & Country Ranking.

Pode-se reunir os países em três grupos principais, o grupo I, relativo a países que consideram P&D prioritários e investem grandes somas mesmo que o retorno seja relativamente baixo; o grupo II, referente àqueles que são mais exigentes quanto ao retorno; e grupo III, formado por países que para o mesmo retorno gastam menos recursos. O grupo III é de fato o mais eficiente. O Brasil pertence a esse grupo, sendo até mais eficiente em termos da contribuição científica por pesquisador do que outros países com maior tradição em pesquisa acadêmica.

A formação de mestres e doutores e a respectiva distribuição regional têm sido conduzidas com sucesso, promovendo maior crescimento nas regiões menos desenvolvidas. O progresso da nossa atividade científica e a expansão do sistema de formação superior intensificou-se nos últimos 20 anos, contando com o consistente aporte de recursos públicos para C&T e educação superior até 2015. É escusado dizer que o sistema de educação superior e as atividades de pesquisa em qualquer país desenvolvido só é viável a partir de investimento do Estado. O aporte de recursos do setor industrial para P&D é sempre bastante limitado. No MIT, uma das universidades privadas sem fins lucrativos mais bem-sucedidas na contratação de projetos do setor industrial, a captação de recursos da indústria representa cerca de 20% do total necessário para a realização da pesquisa na universidade. Os 80% restantes vêm principalmente de recursos públicos, federais ou estaduais, além de fundações sem fins lucrativos e recursos próprios. A tabela 2 mostra dois exemplos, MIT e UC Berkeley. Claramente a contribuição do setor industrial é limitada. Para a Universidade da Califórnia, Berkeley, não ultrapassa 9%, enquanto a parcela de recursos públicos, federais e estaduais, somados representa 69% do total, valor da mesma ordem no MIT, que obtém mais de 60% de fundos públicos.

Em 2015, a revista Nature fez uma avaliação da contribuição ao conhecimento científico em setores interdisciplinares. O Brasil ocupou o quinto lugar.

Tabela 2 ‒ Origem dos recursos para financiar a pesquisa ‒ MIT e Berkeley

OrigemUC BerkeleyMIT
Ano Fiscal 2019
Total: $779.8×10
Ano Fiscal 2019
Total: $773.9 x106
Governo Federal53%60%
Governo Estadual16%3%
Fundações/Doações19%13%
Recursos Próprios3%2%
Indústria9%22%
Fonte: MIT, Ano Fiscal 2019, Institutional Research, Office of the Provost8, e Berkeley, Ano Fiscal 2019, Berkeley Research9.

Não obstante o sucesso da trajetória acadêmica do Brasil, a partir de 1976, quando o senhor Temer ocupava o cargo de Presidente da República, iniciou-se o desmonte do sistema de C&T e da educação superior nas universidades federais. A situação tornou-se de tal modo crítica e na contramão da política de governos anteriores que, em setembro de 2017, um grupo de 23 ganhadores do prêmio Nobel enviou uma carta ao então presidente Temer alertando para o grave prejuízo para a ciência brasileira caso permanecessem os cortes (44%) impostos. A preocupação com os prejuízos para a nossa ciência proporcionou o protesto de cientistas renomados em todo o mundo, mais uma prova da nossa inserção internacional.

Assim, é evidente que a nossa ciência conta. Em 50 anos, saímos de um nível de desconhecimento para um nível de reconhecimento internacional. Não é pouca coisa. No entanto, a atual administração prossegue na trajetória de destruição, patrocinando os ataques contra as instituições públicas de C&T e mantendo o estrangulamento progressivo dos recursos para pesquisa e formação superior.

O sistema de educação superior e as atividades de pesquisa em qualquer país desenvolvido só é viável a partir de investimento do Estado.

4. Proposta de solução para preservação das nossas conquistas e o compromisso com o nosso povo

Finalmente chegamos ao ponto mais importante, que é uma proposta para sair do atoleiro e prosseguir na trajetória bem-sucedida ainda com maior chance de sucesso. Duas ações:

  1. Estabelecimento de redes de intercâmbio de professores, pesquisadores e estudantes entre nossas universidades públicas.
  2. Alteração drástica do sistema de educação superior.

A primeira ação é em princípio simples. Trata-se de implantar o intercâmbio acadêmico entre universidades brasileiras com cooperação científica e intercâmbio de docentes, pesquisadores e estudantes por períodos entre 6 e 24 meses. É indispensável, fácil de entender, mas difícil de realizar. De fato, requer humildade, eu não posso tudo. Mas humildade está longe das qualidades atuais da nossa comunidade. Talvez na atual conjuntura, de vida ou morte, prevaleça o bom senso. Mas se a abertura de portas entre nós mesmos não se concretizar agora, morreremos todos ao som da marcha da revolução cultural.

A segunda é talvez a mais urgente, principalmente porque atende à demanda da sociedade moderna por uma formação adequada ao nosso tempo, atualizando os currículos que estão congelados há mais de 80 anos. É uma ação que pelo menos retarda a dominação cultural em marcha e atende à tradição histórica irremovível do nosso sistema universitário real.

Talvez na atual conjuntura, de vida ou morte, prevaleça o bom senso. Mas se a abertura de portas entre nós mesmos não se concretizar agora, morreremos todos ao som da marcha da revolução cultural.

De fato, toda invasão necessita de terreno fértil para florescer. Até hoje o nosso sistema universitário foi desenvolvido sob inspiração de experiências de outros países, inicialmente sob influência europeia e, a partir da segunda metade do século passado, sob forte influência norte-americana. Tem dado certo, principalmente na formação pós-graduada e na inserção da pesquisa no sistema universitário. Mas, não obstante os benefícios obtidos a partir da influência de outras culturas, é indispensável que se saiba introduzir reformas na hora certa a partir das nossas experiências próprias. Sem essa capacidade, se não aprendemos a andar com as próprias pernas, todo o aprendizado foi inútil. Chegou o momento de rever o nosso sistema universitário a partir da nossa própria história, recente e passada. Os seguintes itens são importantes para elaborar um novo plano de educação superior:

  1. A academia brasileira alcançou vitórias incontestáveis nesses últimos 50 anos e conta com o respeito da comunidade internacional. A nossa inserção entre os países que mais contribuem para o conhecimento é demonstrável, como vimos acima.
  2. A formação superior não se reformulou suficientemente para atender às demandas da sociedade moderna. Se a pós-graduação avançou pelas novas trilhas que exigem a ciência moderna, caracteristicamente interdisciplinar, a graduação permaneceu nas suas caixas tradicionais, incapaz de romper paredes departamentais.
  3. O nosso tradicional processo de educação superior enfatiza o ensino, e não o aprendizado. Mas a universidade deve ser o lugar onde, sobretudo, se aprende, e não onde prioritariamente se ensina. A orientação atual bloqueia o exercício da independência intelectual e incentiva a aversão ao risco.
  4. O ethos da universidade brasileira, com raríssima exceção, nunca incorporou o que se espera de uma verdadeira universidade A presença isolacionista das Escolas de Medicina, Engenharia e Direito permanecem irremovíveis.10
  5. O MEC, particularmente na administração em curso, é não só inoperante, mas, sobretudo, um obstáculo a qualquer progresso acadêmico. Ignora a existência da revolução cultural em curso e, pior, se a reconhecer, irá apoiá-la. Prefere subordinação à independência intelectual.

Chegou o momento de rever o nosso sistema universitário a partir da nossa própria história, recente e passada.

O quadro descrito acima requer uma revisão profunda no nosso sistema acadêmico. Não cabe aqui expor uma revisão completa do sistema universitário necessário para atender à revolução cultural do nosso tempo. Embora seja importante, não cabe agora estudar as soluções possíveis para contornar o isolacionismo latente apontado no item 4. Uma ação, porém, é necessária e comum às possíveis trajetórias. Esta ação antecede a outras reformas necessárias, mas que não terão efeito sem a primeira. Proposta:

  1. Estabelecer entrada única para a universidade sem prévia seleção de opção profissional. Formação em dois estágios:
    • A1 ‒ Bacharelado: poucas disciplinas obrigatórias cobrindo os módulos ou blocos fundamentais do saber, as linguagens principais e o conhecimento transcendental.
    • A2 ‒ Formação complementar, profissional ou continuação na trajetória acadêmica para pós-graduação.
  2. Organização de um currículo com fios condutores adequados aos tempos atuais, organizado de modo a promover o exercício de independência intelectual dos estudantes, assim como reduzir a aversão ao risco.

A porta de entrada para formação universitária deve ser um bacharelado que, independentemente das preferências profissionais, prepara para a vida. Não há seleção prévia de profissão. É nesse período, em que o estudante ingressa numa nova fase de formação, que deve ser intensificado o exercício da curiosidade e da autonomia intelectual, a coragem de enfrentar novos desafios e escolher seu próprio caminho. É nesse período que o estudante deve ter a oportunidade de explorar os vários setores do conhecimento com as respectivas interações, rompendo barreiras disciplinares. É uma formação para iniciar qualquer opção de carreira dentro do próprio sistema universitário ou optar pela saída da universidade e ingresso no mercado de trabalho. Inclusive deveria ser considerada a transferência para outra universidade com o objetivo de completar a formação profissional.

A porta de entrada para formação universitária deve ser um bacharelado que, independentemente das preferências profissionais, prepara para a vida.

Porém, o mais importante agora é a definição e organização das disciplinas nos eixos condutores da formação básica, requerida para obter o grau de bacharel. Os fios condutores que, na realidade, constituem o núcleo fundamental do ethos da universidade, aquilo que ela considera como a essência indispensável na formação dos estudantes, devem ser escolhidos com grande cuidado. Neste breve artigo, proponho que os fios condutores na proposta da UFRJ sejam divididos em três categorias:11

  1. “Nós em nossa casa”. A nossa casa, o planeta em que vivemos com todas as suas características físicas, e nós como indivíduos e como membros de um corpo social. Sugiro os seguintes fios condutores:
    • Matéria;
    • Energia;
    • Filosofia;
    • Antropologia.
  2. As linguagens. Os modos de comunicação devem considerar o conhecimento puramente racional e os que requerem interpretações nem sempre universais:
    • Narrativas;
    • Matemática e Computação;
    • Artes.
  3. Transcendência. O conhecimento que tem um forte componente de individualidade e não é transferível integralmente para um semelhante:
    • Transcendência: mitos, crenças, religiões.

Cada tópico nas respectivas categorias pode conter mais de uma disciplina que trate do assunto respectivo com diferentes enfoques. Assim, o estudante pode montar sua trajetória com certa liberdade no conjunto de requisitos obrigatórios. A formação universitária não pode exigir o domínio do conhecimento acumulado até hoje. A definição das disciplinas nos diversos tópicos precisa ser elaborada com muita sabedoria de modo a permitir trajetórias coerentes sem serem únicas.

A formação universitária não pode exigir o domínio do conhecimento acumulado até hoje.

Os créditos obrigatórios nessas áreas não devem ultrapassar 50% do número de créditos exigidos para a formação. O número total de créditos necessários para obtenção do grau de bacharel, em regime de trimestres, não deve ser superior a 140 créditos. Os estudantes devem ter liberdade para organizar o próprio currículo. As disciplinas que formam os fios condutores acima devem ser elaboradas por comissões competentes e integradas entre si. Cada tópico deve conter um leque de disciplinas (três ou quatro, talvez) para permitir que os estudantes escolham o tratamento do tema de acordo com seu interesse. Seria muito conveniente a formação de um “Colégio Universitário”, encarregado de estabelecer o programa de acordo como as diretrizes acima.

Se não for possível implementar a entrada única a curto prazo, pelo menos que se facilite aos estudantes admitidos a opção por esse novo currículo.

As possíveis trajetórias de formação nesse modelo estão resumidas na figura 2.

Figura 2 ‒ Trajetórias de formação no novo sistema

Fonte: o autor.

Sem necessitar de grandes complicações, a formação universitária básica para o mundo moderno pode ser implantada a curtíssimo prazo. Várias universidades brasileiras, em particular as universidades públicas, têm as qualificações necessárias para conduzir esse projeto com sucesso, sem necessidade de ampliação do quadro docente. A formação interdisciplinar é integrada à graduação e poderá ser uma contribuição ao mundo acadêmico em nível internacional. Uma vantagem dessa opção é que já tem sido testada parcialmente na Universidade Federal do ABC (UFABC) e até agora com bastante sucesso.

É necessário que se mantenha a nossa independência acadêmica, afastada do complexo de inferioridade que permeia a cultura brasileira, para que se continue no progresso alcançado até hoje com tanto sacrifício e dedicação.

Finalizo este texto, escrito sem muitos pormenores, na expectativa de que sirva para iniciar ações, não discussões intermináveis, mas ações que promovam uma revolução na estrutura curricular da formação universitária. Tem a dupla vantagem de atualizar os fios condutores da formação universitária de modo a atenderem à demanda da sociedade moderna e evitar que a revolução cultural redefina a formação universitária no Brasil em consonância com projetos alheios a nossa cultura e nossas opções. É necessário que se mantenha a nossa independência acadêmica, afastada do complexo de inferioridade que permeia a cultura brasileira, para que se continue no progresso alcançado até hoje com tanto sacrifício e dedicação. A saída do imbróglio em que fomos metidos pelo atual governo não terá sucesso apenas com documentos, reuniões, protestos, abaixo-assinados. É necessário que se comece a agir, mudar o que é necessário mudar. Também não basta mudar as mesmas peças de posição, é preciso que se inventem novas peças necessárias para um novo jogo.

Além das dificuldades globais, defrontamo-nos com a incompetência do atual governo federal. O MEC é dirigido por alguém que na academia nunca foi acadêmico. Se não conseguirmos agir a tempo, teremos o mesmo destino das notáveis empresas brasileiras. Juntar-nos-emos ao grupo com ciclo de vida em torno de 50 anos. Se não formos capazes de superar o isolamento,12 cada universidade agindo como se se bastasse a si mesma, estaremos nos condenando à extinção.

Se nada for realizado de concreto até o fim deste ano, sugiro que se sentem e sintonizem no YouTube o adágio de Albinone com a Filarmônica de Berlim sob a regência de Herbert von Karajan. Prestem atenção nas sete pausas perto do final. Será um tocante hino para o final de linha.


Texto recebido em 11 de junho de 2020.

Notas

  1. A derrocada do setor industrial que nos últimos quatro anos caiu verticalmente, ou melhor, prosseguiu nos ciclos de nascimento, vida e morte que caracterizam as melhores iniciativas nacionais, atingiu o último reduto ainda competitivo, a construção civil. Terra arrasada. Isso para dizer que não podemos contar com o apoio eficaz do setor industrial para sustentar as conquistas na Educação Superior e em Pesquisa e Desenvolvimento. [voltar]
  2. No artigo memorável “Impeachment já para o genocida”, publicado na Folha de São Paulo do dia 5 de maio, o prof. Herch Moysés Nussenzveig denuncia muito bem a trágica passagem do senhor Bolsonaro pela presidência, acusa-o de genocídio e pede seu impeachment. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/impeachment-ja-para-o-genocida.shtml. Acesso em: 02 jun. 2020. [voltar]
  3. Julius Krein, formado em 2008 no Harvard College, onde estudou filosofia política com Harvey C. Mansfield, é um escritor americano dedicado a temas políticos. É mais conhecido como editor fundador da revista American Affairs. [voltar]
  4. “The genius of Trumpism”, The Boston Globe, 22 abr. 2017. Disponível em: https://www.bostonglobe.com/opinion/editorials/2017/04/22/the-genius-trumpism/uz1OtjeptOu3fFEAhBKf0H/story.html. Acesso em: 03 jun. 2020. [voltar]
  5. Disponível em: https://theconversation.com/is-todays-university-the-new-multinational-corporation-40681. Acesso em: 02 jun. 2020. [voltar]
  6. Disponível em: https://www.nap.edu/read/23645/chapter/1. Acesso em: 02 jun. 2020. [voltar]
  7. Biografia completa em: James, H. Charles W. Eliot, president of Harvard University, 1869-1909, Volume I. Boston: Houghton Mifflin Company, 1930, reprint, New York: AMS Press, 1973. [voltar]
  8. Disponível em: http://ir.mit.edu/research-expenditures. Acesso em: 11 jun. 2020. [voltar]
  9. Disponível em: https://vcresearch.berkeley.edu/excellence/berkeley-research-excellence. Acesso em: 11 jun. 2020. [voltar]
  10. As críticas à forma como a Universidade do Rio de Janeiro foi criada em 1920 não param nesse ano. Sem ir muito longe, cabe citar algumas partes do relatório de seu primeiro Reitor, Benjamin Franklin Ramiz Galvão, encaminhado ao Ministro de Estado e Negócios da Justiça, Joaquim Ferreira Chaves, em 1921: “Cumpre-me oferecer à atenção do governo o relatório do que de mais importante ocorreu na Universidade do Rio de Janeiro, durante o ano de 1921, que acaba de findar. Ele será, forçosamente, sucinto, já porque a Universidade, criada pelo decreto nº 14.343, de 7 de setembro de 1920, e regulada pelo regimento constante do decreto nº 14.572, de 23 de dezembro do mesmo ano, está, apenas, em início de funções, já porque as condições em que ela se instituiu forçaram a mesma Universidade a permanecer dentro dos moldes estabelecidos pelo decreto nº 11.530, de 18 de março de 1915, que é, por enquanto, lei vigente. Não errarei afirmando, pois, que a Universidade do Rio de Janeiro está, apenas, criada in nomine, e, por esta circunstância, se acha, ainda, longe de satisfazer o desideratum do seu Regimento: estimular a cultura das ciências, estreitar, entre os professores, os laços de solidariedade intelectual e moral, e aperfeiçoar os métodos de ensino” (Galvão, 1921, em: Fávero, Maria de Lourdes de A. (org.). Universidade do Brasil: das origens à construção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. p. 32). [voltar]
  11. Interessante notar que recentemente (2019) a Universidade de Harvard adotou também requisitos semelhantes, 4+3+1, obedecendo, porém, a outra lógica: “Harvard 2019, required courses: General Education (4): one Gen Ed course from each of four perspectives: Aesthetics & Culture; Ethics & Civics; Histories, Societies, Individuals; Science & Technology in Society. Distribution (3): one departmental course from each of the three academic divisions within the Faculty of Arts and Sciences (FAS): Arts & Humanities; Science & Engineering; Social Sciences. Empirical & Mathematical Reasoning (1): one course“. Disponível em: https://oue.fas.harvard.edu/college-curriculum. Acesso em: 11 jun. 2020. [voltar]
  12. A Academia Brasileira de Ciências produziu dois documentos sobre educação superior, um em 2004 e outro em 2016. Duvido que tenham sido considerados por alguma universidade, pelo MEC ou pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). [voltar]
Luiz Bevilacqua

Professor Emérito do Instituto Alberto Luiz Coimbra, COPPE-UFRJ. Engenheiro Civil, UFRJ, 1959; Especialização em Engenharia de Estruturas, TH Stuttgart, 1961; PhD pela Stanford University, 1971. Vice-Reitor Acadêmico da PUC/RJ; Diretor da COPPE-UFRJ. Ocupou cargos de direção no MCT, AEB e CNPq; ex-Reitor da UFABC; membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Engenharia, da Third World Academy of Sciences (TWAS) e da European Academy of Sciences. Pesquisador visitante IEA/USP, 2017-2019. Trabalha atualmente em problemas de difusão anômala e resposta dinâmica de estruturas fractais.

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