Antiguidade Clássica

Entre deusas e deuses, monstros e heróis: o projeto de extensão Mitologando

Katia Teonia Costa de Azevedo, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

Você já teve a oportunidade de ouvir falar sobre o mito de Rômulo e Remo, os lendários irmãos gêmeos fundadores de Roma, comumente representados em esculturas, pinturas ou mosaicos sendo amamentados por uma loba? Ou talvez já tenha se aventurado nas emocionantes epopeias homéricas Ilíada e Odisseia? E que tal as fábulas de Esopo e de Fedro? Todas essas narrativas têm algo em comum: elas fazem parte do vasto repertório literário da Antiguidade Clássica grega e latina, uma riqueza cultural que perdura através dos séculos, um patrimônio da humanidade.

É exatamente nessa riqueza cultural e nas histórias que ainda chegam até nós por uma “cadeia de recepções”1 que o projeto de extensão Mitologando se apoia. 

Tudo começou no ano de 2016, quando demos início a uma pesquisa bibliográfica que buscava conhecer com mais profundidade os materiais didáticos para o ensino do latim destinados às crianças e aos jovens e que buscava compreender melhor o panorama do mercado editorial brasileiro voltado para esse público. Além desses materiais, iniciamos também uma pesquisa sobre os livros de literatura infantil e juvenil relacionados à Antiguidade Clássica. 

À medida que avançávamos em nossa pesquisa bibliográfica sobre literatura relacionada à Antiguidade Clássica, o nosso olhar passou a se concentrar de maneira mais intensa nesse tipo de publicação. Conforme explorávamos esse vasto campo de conhecimento, começamos a perceber a necessidade de ir além do levantamento bibliográfico. Surgiu a convicção de que deveríamos construir um tipo diferente de conhecimento, que integrasse os resultados da nossa pesquisa com outras formas de saber.

Foi nesse contexto que surgiu a ideia de criar um trabalho que transcenderia os espaços da academia, convidando novos agentes a ingressar em novos territórios de atuação, para além dos confinados muros universitários. 

Além disso, nos interessava compreender como crianças e jovens dialogam com esse mundo antigo, qual é o imaginário que possuem sobre a Antiguidade e como incorporam essas culturas em seu próprio repertório cultural. Isso porque é a cultura pop, através da música, dos jogos eletrônicos, dos jogos de tabuleiro, da animação, do cinema etc, que vem formando na contemporaneidade um rico imaginário sobre as culturas da antiguidade. Portanto, nosso trabalho busca capturar essas múltiplas perspectivas e entendimentos que surgem desse rico caldeirão de influências.

Dessa forma, em 2019, surge o projeto de extensão Mitologando: cultura greco-romana para crianças e jovens2, tendo como foco inicial as escolas públicas do Rio de Janeiro. Inspirado pelo vasto repertório literário da Antiguidade grega e romana e pela recepção dessa cultura clássica na literatura infantil e juvenil, o objetivo do Mitologando é aprofundar e ampliar o entendimento de crianças e jovens sobre o mundo antigo.

Além disso, a iniciativa da pesquisa bibliográfica culminou também na criação, em 2021, do grupo de pesquisa FABULA3. Este grupo é dedicado à análise da recepção da Antiguidade Clássica na literatura infantil e juvenil e, desde sua fundação, tem colaborado estreitamente com o projeto de extensão Mitologando, fortalecendo a indissociável relação entre a extensão e a pesquisa universitária4.

Contação de histórias realizada em 2019 com estudantes do ensino médio do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira, no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

Além das obras de autores antigos, gregos e latinos, que compõem o repertório bibliográfico da Antiguidade Clássica, é inegável a importância da literatura infantil e juvenil dedicada ao mundo antigo como mais um meio de diálogo com essas culturas. Atualmente, o mercado editorial brasileiro oferece uma vasta gama de publicações destinadas ao público infantil e juvenil que trazem, de forma direta ou indireta, o tema da Antiguidade.

Entre essas obras, encontram-se adaptações em prosa ou em quadrinhos de poemas épicos, como a Ilíada e a Odisseia de Homero5. Com esse valioso acervo à nossa disposição, temos promovido, através das ações do projeto de extensão Mitologando,  diversas atividades que tomam por metodologia a contação de histórias, a mediação literária e a leitura dramatizada, práticas que buscam contribuir para que crianças e jovens de variados segmentos de ensino sintam-se convidados a compartilhar, construir e reavaliar suas percepções sobre o mundo antigo e sobre o mundo que vivemos.

Para o desenvolvimento dessas iniciativas, fomos guiadas por duas premissas fundamentais que, ainda hoje, direcionam nossas abordagens. A primeira premissa é fundamentada no princípio essencial de que a literatura é um direito humano inalienável. Conforme reconhecido pela UNESCO em sua Declaração Universal sobre os Direitos Humanos6, o acesso à cultura e à informação é um componente integral dos direitos humanos, e a literatura desempenha um papel significativo nesse contexto como um patrimônio literário.

Esse mesmo entendimento foi incorporado por Antônio Cândido7, que reafirma que a literatura, como meio de expressão cultural, deve ser acessível a todas as pessoas, independentemente de sua origem. Isso se alinha com a visão de que a literatura não deve ser um privilégio, mas um direito universal que enriquece a experiência humana, promove a compreensão mútua e contribui para a construção de sociedades mais inclusivas.

A segunda premissa que norteia o trabalho desenvolvido no projeto de extensão Mitologando está baseada nas palavras da renomada escritora brasileira Ana Maria Machado8, que, no passo de Ítalo Calvino9, enfatiza a importância de introduzir os clássicos desde a infância, de modo que crianças e jovens possam estar em contato o quanto antes com as “histórias empolgantes de que somos feitos”10.

Nossa expectativa é que, por meio das iniciativas promovidas no âmbito do projeto de extensão Mitologando, possamos desempenhar um papel significativo no estímulo ao pensamento crítico e reflexivo de crianças e jovens. Almejamos contribuir para uma compreensão mais aprofundada de diversos aspectos, desde a complexidade da natureza humana até o funcionamento das sociedades e o desenvolvimento das culturas ao longo da história, desde os tempos antigos até a contemporaneidade.

Além de impactar positivamente o público que participa dos espaços onde o projeto Mitologando é implementado, nosso trabalho abrange ainda a formação dos estudantes universitários que atuam como extensionistas em nossa equipe. Buscamos, assim, promover o desenvolvimento da autonomia crítica, oferecer-lhes experiências práticas enriquecedoras e evidenciar o compromisso da universidade pública com a sociedade.

Por meio do projeto Mitologando, almejamos proporcionar aos nossos estudantes extensionistas uma oportunidade inestimável para o crescimento pessoal e profissional, preparando-os para assumirem um papel ativo na construção de um mundo mais inclusivo e democrático. 

Notas

  1. Charles Martindale. Redeeming the Text: Latin Poetry and the Hermeneutics of Reception (Roman Literature and its Contexts), 1993, p.46 [voltar]
  2. Para mais informações, acesse o site do projeto e seu perfil nas redes sociais. [voltar]
  3. Para conhecer o trabalho desenvolvido pelo grupo de pesquisa FABULA (UFRJ/CNPq), acesse o site e suas redes sociais [voltar]
  4. De acordo com as diretrizes para a extensão universitária do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (FORPROEX), do qual a Universidade Federal do Rio de Janeiro é signatária (cf. https://xn--extenso-2wa.ufrj.br/index.php/o-que-e-extensao [voltar]
  5. Como por exemplo o belíssimo trabalho elaborado por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa com ilustrações de Piero Bagnariol para a Ilíada (Editora RHJ: 2012) e para a Odisseia (Editora Peirópolis: 2013). [voltar]
  6. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. [voltar]
  7. Antônio Cândido. Vários escritos. [1970]. Todavia: 2023 [voltar]
  8. Ana Maria Machado. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. [voltar]
  9. Italo Calvino. Por que ler os clássicos. [1993] Tradução de Nilson Moulin – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [voltar]
  10. Ana Maria Machado. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.p. 12. [voltar]
Katia Teonia Costa de Azevedo

Professora de Língua e Literatura Latina do Departamento de Letras Clássicas, do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas e do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra e doutora em Letras Clássicas pela mesma instituição.  Coordenadora do Projeto de Extensão Mitologando: Cultura Clássica Greco-Romana para crianças e jovens (UFRJ) e do Grupo de Pesquisa FABULA: A recepção da Antiguidade Clássica na Literatura Infantil e Juvenil (UFRJ/CNPq). Entre os temas de interesse a que se dedica destacam-se os estudos da recepção clássica, as questões de gênero, o luto e o ensino de línguas clássicas. E-mail: katiateonia@letras.ufrj.br 

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