Equidade

Pode uma mulher negra ser cientista?

Ana Lúcia Nunes de Sousa, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

Quando pensamos em cientistas, qual é a imagem que logo nos vem à cabeça? Geralmente, a resposta que recebemos é: um homem, branco, grisalho, cabelo alvoraçado, óculos e jaleco. Desde 2019, estamos percorrendo escolas, feiras de ciências e eventos científicos, repetindo sempre as mesmas perguntas: quem pode ser cientista? Pode uma mulher negra ser cientista? Quantas mulheres negras cientistas você conhece?

No mundo da ciência, a desproporcionalidade de gênero e raça é gritante. Venturini (2017)1, ao analisar os dados do Censo da Educação Superior de 2016, descobriu que as mulheres com doutorado são: 80,02% brancas; 14,60% pardas; 2,75% pretas; 2,35% amarelas; e 0,28% indígenas. Nos Programas de Pós-Graduação (PPG), onde é produzida a maior parte da pesquisa científica no Brasil, as doutoras negras (pretas e pardas) somavam apenas 3% de todos os docentes em atividade no país (FERREIRA, 2018). 

Há, ainda, na trajetória acadêmica de uma cientista, outro nível a alcançar: as bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq). Essas bolsas são um reconhecimento do CNPq a cientistas de alto nível, que são destaque em suas áreas. Bem, referente a este ponto, nem precisaria mencionar dados, certo? Mas vamos lá! O grupo ‘Parent in Science’ divulgou recentemente uma análise da distribuição das 15 mil bolsas de produtividade vigentes em 2023. Em relação ao total de bolsas, as mulheres negras são 5,1% (4,8% pardas e 0,8% pretas) do total. As mulheres indígenas representam apenas 0,1%. As bolsas ainda são divididas em níveis e, no nível mais alto, o PQ-1A, não há nenhuma mulher preta ou indígena. As mulheres pardas são 1,3% das pessoas bolsistas neste nível. 

A Revista Gênero e Número2, em 2018, apontou a existência, no estado do Rio de Janeiro, de 18 doutoras autodeclaradas negras atuando como docentes em cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado). Uma pesquisa em andamento, realizada pelo Núcleo de estudos de gênero e relações étnico-raciais na educação audiovisual em ciências e saúde (NEGRECS), aponta um cenário um pouco melhor em 2023. O levantamento indica, por exemplo, que as cientistas negras em atuação nos programas de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2021, chegavam a 39. A UFRJ tem 4.139 docentes em exercício, que atuam da educação básica à pós-graduação. 

É perceptível, portanto, que há sub-representação de mulheres negras na ciência. Estamos, ainda, muito longe de vislumbrar um ambiente onde equidade racial e de gênero sejam possibilidades no horizonte. Mas, apesar do pequeno número, as mulheres negras, pesquisadoras, são cientistas que merecem destaque, não apenas por vencer as barreiras do sexismo e do racismo, mas por suas atuações no ensino, na pesquisa e na extensão, em várias áreas do conhecimento. 

O desconhecimento em relação à existência, trajetória e pesquisas realizadas por mulheres negras motivou a criação do projeto de extensão “As incríveis cientistas negras: educação, divulgação e popularização da ciência”, em 2020. Desde seu surgimento, o projeto atua em parceria com o Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), campus Maria da Graça, na figura do projeto de extensão “Mulheres negras fazendo ciência”, criado um ano antes. 

Os dois projetos atuam em parceria, conectando escola e universidade, atuando em várias linhas de ação: 1) divulgação científica de pesquisas realizadas por docentes negras, atuantes no Estado do Rio de Janeiro; 2) formação de estudantes de ensino médio para a divulgação científica; 3) produção de material didático e paradidático de divulgação científica para a educação, principalmente básica; 4) eventos de divulgação científica, incluindo palestras, debates, cineclubes e oficinas de programação, robótica e audiovisual. 

As estudantes participantes do projeto são formadas em temáticas étnico-raciais e científicas, principalmente divulgação científica e pesquisa; realizam divulgação da produção científica de pesquisadoras negras através das redes e de meios sociais, e também de palestras públicas, além de produzir materiais didáticos e paradidáticos diversos que buscam popularizar o perfil, a trajetória e a produção científica das pesquisadoras negras do estado do Rio de Janeiro. 

Fotografia 1 Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Recentemente, o projeto publicou o livro “Luanda no mundo da ciência” (fotografia 1), lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em 2023; produziu um calendário (fotografia 2), destacando as pesquisas de 12 cientistas negras, e um jogo da memória, que homenageia outras 12 cientistas de destaque em suas áreas científicas (fotografia 3).

Fotografia 2 Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Todos esses materiais estão sendo utilizados por profissionais da educação em contextos de educação formal e não formal, conectando a pesquisa, o ensino e a extensão de forma indissociável, ao mesmo tempo em que trabalham o letramento racial e de gênero, e estimulam o interesse pela ciência.

Fotografia 3 Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Pode uma mulher negra ser cientista? As mulheres e meninas negras podem e devem ser o que elas quiserem, inclusive cientistas. O mundo melhor que queremos — e estamos construindo — é um mundo no qual pessoas negras e indígenas não terão suas existências interditadas e negadas no mundo científico.

Notas

  1. Venturini AC. Ações afirmativas para pós-graduação: desenho e desafios da política pública. In: Anais 41 Encontro Anual da ANPOCS [internet]. Universidade Federal de Alagoas; 2017 [acesso em 2020 jul 9]. Disponível em: https://evento.ufal.br/anaisreaabanne/ [voltar]
  2. Ferreira L. Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia. Gênero e Número [internet]. 20 de junho de 2018 [acesso em 2020 jul 4]; Disponível em: http://www.generonumero.media/menos-de-3-entre-docentes-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/ [voltar]
Ana Lúcia Nunes de Sousa

Jornalista, mestre e doutora em Comunicação. Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com atuação no Laboratório de Vídeo Educativo, no Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ. Contato: analucia@nutes.ufrj.br

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