Especial Covid-19 | Economia

Petróleo: e agora, José?

Adilson de Oliveira, Luis Eduardo Duque Dutra e Marianne Zanon Zotin, 22/07/2020

Foto de Morning Brew no Unsplash

Como o coronavírus afetou o mercado de petróleo no Brasil e no mundo e o que esperar para a retomada da atividade petrolífera pós-pandemia diante do movimento global de substituição da segurança energética pela segurança da humanidade

A pandemia do coronavírus provocou verdadeiro terremoto na vida planetária. As medidas de distanciamento social tomadas pelos governos para limitar a explosão do número de contaminações da população pelo vírus provocaram a paralisação de uma ampla gama de atividades produtivas, induzindo substancial redução na demanda de energia. Particularmente afetado foi o consumo de combustíveis vinculado à logística de transporte.

Estima-se que a pandemia tenha provocado redução imediata de pelo menos 20 milhões de barris diários no consumo de petróleo. Para restabelecer o equilíbrio no mercado desse combustível, a Arábia Saudita propôs à Rússia a redução conjunta na oferta de petróleo. Como a Rússia não aceitou essa proposta, os sauditas decidiram aumentar sua oferta para o mercado global em movimento surpreendente. Essa decisão induziu o colapso do preço do barril de petróleo para patamar que inviabiliza boa parte da produção petrolífera fora do Oriente Médio.

Particularmente afetada tem sido a produção americana não convencional (oriunda do uso do fracking1), que deve ser reduzida em 5 milhões de barris/dia, provocando um conjunto amplo de falências, principalmente no meio oeste americano. Para mitigar os efeitos socioeconômicos e políticos desse problema, o presidente Trump anunciou a intenção de ampliar as reservas de petróleo estratégicas americanas. Mais ainda, caso essa medida não seja suficiente para evitar o colapso da produção americana, Trump ameaçou aplicar tarifas sobre as importações de petróleo.

… os cenários econômicos produzidos pelas agências econômicas internacionais sugerem que, passada a pandemia, a retomada da atividade industrial será lenta. Mais ainda, ela tomará uma dinâmica distinta da vigente no passado recente.

Em resposta à pressão americana, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e a Rússia se comprometeram em reduzir sua oferta conjunta em aproximadamente 10 milhões de barris/dia. No entanto, a queda no consumo provocada pelo coronavírus já soma aproximadamente 30 milhões de barris/dia, segundo estimativas da Agência Internacional de Energia (IEA). Sendo a proposta feita por Rússia e OPEP insuficiente para remover o excesso de oferta do mercado petrolífero global, o preço do barril de petróleo despencou para o patamar de US$ 20, muito abaixo dos US$ 60 vigentes no início de 2020. Essa situação indica que a retomada da atividade econômica é a única alternativa geopolítica viável para remover o atual desequilíbrio entre a oferta e a demanda petrolífera.

A compreensão dessa realidade está na origem da pressão do presidente Trump para que a política de distanciamento social adotada para combater o coronavírus seja abandonada com brevidade. Contudo, os cenários econômicos produzidos pelas agências econômicas internacionais sugerem que, passada a pandemia, a retomada da atividade industrial será lenta. Mais ainda, ela tomará uma dinâmica distinta da vigente no passado recente.

A crise do coronavírus evidenciou os riscos econômicos associados às cadeias de valor assentadas em suprimentos de partes e insumos dispersos pelo mundo globalizado. Os analistas econômicos indicam que, no futuro, as estratégias empresariais voltar-se-ão para a redução desses riscos, induzindo a revalorização das redes de suprimento locais. Paralelamente, as políticas econômicas voltar-se-ão para a reorganização do espaço econômico nacional, oferecendo incentivos para a inserção da atividade produtiva local nas cadeias de valor industriais.

Removidos os riscos sanitários provocados pela disseminação do coronavírus, comportamentos, padrões e valores estabelecidos serão questionados. A retomada da atividade petrolífera terá que se ajustar ao movimento global de substituição da segurança energética pela segurança da humanidade.

Essas transformações indicam forte redução nos fluxos de transporte de mercadorias e de passageiros, com a consequente queda no consumo de combustíveis. As políticas de mitigação dos riscos de mudanças climáticas sinalizam na mesma direção. Dessa forma, o mercado petrolífero global terá que conviver com demanda deprimida por um longo período de tempo. Ironicamente, a teoria do peakoil2 voltou a assombrar a indústria do petróleo, porém, desta vez, não por falta de potenciais petrolíferos economicamente viáveis. O problema passou a ter sua origem na falta de demanda para os poços produtores.

Esse cenário sugere que o petróleo do Oriente Médio progressivamente perderá relevância no ambiente geopolítico global. Na prática, a oferta de petróleo daquela região não mais operará como preço diretor do mercado energético global. Essa perspectiva tem induzido as empresas petrolíferas a revisarem para baixo seus planos de atividades, provocando a queda na demanda de bens e serviços da cadeia produtiva do petróleo. Os fornecedores globais terão que operar com substancial ociosidade produtiva durante um bom período de tempo.

Os efeitos desse cenário já se fizeram sentir no mercado energético brasileiro. As refinarias da Petrobras operam com 56% de sua capacidade instalada para ajustar sua oferta à substancial redução no consumo doméstico de combustíveis. A Petrobras decidiu paralisar e/ou reduzir a produção em diversas de suas plataformas com o objetivo de diminuir em 200 mil barris/dia sua produção petrolífera. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) anunciou a postergação de novas licitações de blocos exploratórios e autorizou a queima de quantidades adicionais de gás natural nas plataformas petrolíferas.

A queda na demanda de energia elétrica tornou desnecessário o despacho de mais de 75% das centrais alimentadas com combustíveis. A diminuição do consumo de gás natural provocou a redução de suas importações da Bolívia. A construção do gasoduto Rota Três, necessário para colocar o gás natural produzido no pré-sal, foi paralisada. A sobreoferta de gás natural liquefeito (GNL) no mercado internacional pressiona para baixo o preço desse combustível no mercado doméstico. Os efeitos econômicos, sociais e industriais desse conjunto de mudanças serão intensos.

A Federação Única dos Petroleiros estima a perda de 10 mil postos de trabalho nas empresas petrolíferas. A redução nas receitas fiscais (royalties e ICMS) será bilionária, ampliando os déficits fiscais nos âmbitos federal e estadual. O parque industrial doméstico fornecedor de bens e serviços para a indústria do petróleo, que já operava com ociosidade após o abandono da política de conteúdo local, terá que competir com a oferta predatória do também ocioso parque fornecedor global. A indústria brasileira do petróleo que emergirá dessas mudanças será radicalmente distinta daquela que conhecemos.

Removidos os riscos sanitários provocados pela disseminação do coronavírus, comportamentos, padrões e valores estabelecidos serão questionados. A retomada da atividade petrolífera terá que se ajustar ao movimento global de substituição da segurança energética pela segurança da humanidade. Esse novo ambiente geopolítico exige profunda revisão da estratégia de inserção do potencial brasileiro no mercado petrolífero global.

A implantação de mecanismos regulatórios capazes de mitigar os riscos econômicos provocados pela volatilidade elevada do preço do petróleo será particularmente relevante nesse processo.

A fragmentação geopolítica, induzida pelo isolacionismo americano, deve reduzir a capacidade de ação dos organismos multilaterais criados na segunda metade do século passado. Nesse cenário, a articulação econômico-industrial do espaço sul-americano em torno do Mercosul ganha importância como instrumento de inserção geopolítica do Brasil. Na indústria do petróleo, essa articulação é especialmente relevante pelo fato de a nossa região ser exportadora líquida de volumes expressivos desse combustível. A articulação energética regional será determinante na inserção do excedente petrolífero brasileiro no mercado global em condições econômicas favoráveis.

No plano doméstico, a negligenciada integração regulatória entre o mercado elétrico e o mercado de combustíveis necessitará receber atenção imediata. Nossa matriz elétrica, assentada em fontes renováveis de energia, pouco dependente dos recursos fósseis, é uma vantagem comparativa que deve ser valorizada na transição da segurança energética para a segurança da humanidade. Para tanto, é fundamental o Estado assumir a gestão da água que se acumula nos reservatórios hidrelétricos.

A revalorização do parque fornecedor local de bens e serviços é indispensável para a redução dos riscos empresariais da indústria brasileira do petróleo.

A implantação de mecanismos regulatórios capazes de mitigar os riscos econômicos provocados pela volatilidade elevada do preço do petróleo será particularmente relevante nesse processo. O óleo dos contratos de partilha oferece excelente oportunidade para a estruturação de mecanismo de hedge 3 para essa volatilidade, em moldes similares aos adotados pelo México.

Nesse caso, basta a União determinar a comercialização desse óleo no suprimento das refinarias domésticas, sendo obedecida uma faixa de preços mínimo e máximo. Dessa forma, ficam mitigados os preços dos derivados para os consumidores finais nos períodos de escalada no preço do petróleo, porém protegidas as receitas fiscais governamentais nos períodos de preços deprimidos.

A revalorização do parque fornecedor local de bens e serviços é indispensável para a redução dos riscos empresariais da indústria brasileira do petróleo. No curto prazo, nosso parque fornecedor enfrentará a concorrência predatória da ociosidade do parque fornecedor global. A retomada dos incentivos propostos no Programa de Estímulo à Competitividade da Cadeia Produtiva, ao Desenvolvimento e ao Aprimoramento de Fornecedores do Setor Petróleo e Gás Natural (Pedefor) é necessária para superar esse desafio.

O monopólio da Petrobras foi determinante para o sucesso da indústria brasileira do petróleo na sua fase infante. Na maturidade, a desverticalização de sua cadeia produtiva vem sendo perseguida com a justificativa para abrir o mercado petrolífero brasileiro a pressões competitivas. No entanto, a crise do mercado petrolífero tem evidenciado que as empresas que operam do poço ao posto reúnem maior resiliência aos efeitos da volatilidade do preço do petróleo. O Brasil não pode prescindir da atuação da verticalizada Petrobras, mesmo em ambiente concorrencial.


Texto recebido em 4 de maio de 2020.

Notas

  1. Trata-se da tecnologia de fraturamento hidráulico das rochas existentes no subsolo com o objetivo de incrementar o fluxo de petróleo para a superfície terrestre. [voltar]
  2. Trata-se da teoria vigente após a crise do petróleo na década de 1970, segundo a qual a produção petrolífera global atingiria um pico inferior à demanda global desse combustível. [voltar]
  3. Trata-se do mecanismo, usualmente financeiro, adotado para mitigar a volatilidade do preço de um bem ou serviço. [voltar]
Adilson de Oliveira

É professor titular aposentado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Conselho Curador da UFRJ. Professor titular da Cátedra Professor Antônio Dias Leite do Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ.

Luis Eduardo Duque Dutra

É professor adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor pela Universidade de Paris. Autor do livro Capital Petróleo: a saga da indústria entre guerras, crises e ciclos (Editora Garamond Universitária, 2019).

Marianne Zanon Zotin

Possui graduação em Engenharia Química pela Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2015) e mestrado em Planejamento Energético pelo Programa de Planejamento Energético (PPE) da COPPE/UFRJ (2018). Atualmente é doutoranda em Planejamento Energético pelo PPE/COPPE/UFRJ (2019-2022).

Compartilhe

Enviar para:

Leia também