Especial Covid-19 | Literatura

Da literatura em tempos de pandemia na França

Alexis Nouss, 22/07/2020

The kind neighbour. Image created by Fernando Cobelo. Submitted for United Nations Global Call Out To Creatives – help stop the spread of COVID-19.

O surgimento das playlists literárias como face da mercantilização da literatura em tempos de epidemia e confinamento

As vendas de A peste explodiram, mais que as de outros títulos que a mídia não deixou de reunir como a playlist literária do confinamento: começando por O cavaleiro do telhado e a dama das sombras, de Jean Giono, e A quarentena, de J. M. G. Le Clézio, passando pelo Decamerão, de Boccaccio, até Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe. Os professores da literatura dos séculos passados poderão, ademais, se surpreender e depois se deleitar com o sucesso dessas duas últimas obras, cuja leitura não tem nada de simples. Que a peste carregue A peste, agora em falta de estoque. Após os atentados do 11 de setembro, e aqui a metáfora soa mal, as vendas do Alcorão também explodiram. Será que os leitores passaram a conhecer melhor o Islam? Podemos ficar na dúvida, assim como podemos nos perguntar sobre a relação com a literatura que se revela a partir dessa sede literária em tempos de pandemia.

A playlist é o sintoma de uma pulsão antológica que tem o mérito de nos tranquilizar. Listamos, listamos, citamos, citamos. Será que lemos? Não é essa a questão. Refugiamo-nos por detrás das prateleiras. Uma concepção da literatura enquanto biblioteca, em que o efeito da literatura se traduziria em termos de massa e de poder, para citar o célebre título de Elias Canetti, Masse und macht, obra na qual, aliás, uma seção é reservada à epidemia como produção de uma “massa morta” e que nos faz viver “na igualdade de uma terrível espera na qual se desfazem todos os outros laços humanos”. Exatamente o contrário de seu A consciência das palavras, prêmio Nobel de literatura de 1981, em que os escritores eram vistos como “os guardiões das metamorfoses”, atentos a tudo o que se tece de indivíduo a indivíduo e contrários a todas as totalidades compactas.

A playlist é o sintoma de uma pulsão antológica que tem o mérito de nos tranquilizar. Listamos, listamos, citamos, citamos. Será que lemos? Não é essa a questão. Refugiamo-nos por detrás das prateleiras.

É claro que não lemos o romance de Camus à espera de momentos agradáveis, trata-se mais de uma pausa “intelectual” entre uma série na Netflix, o preparo de uma torta de maçã e os agachamentos no tapete. O texto pode até parecer austero, permeado de diálogos elevados e de enunciados filosóficos. Em Giono há mais ações, em Le Clézio mais cenas de natureza, mas em Camus, apesar de tudo, o clima da epidemia pesa em toda a sua gravidade e estimula a reflexão do leitor. Tragédia e entretenimento não são uma boa mistura ainda que a primeira nos leve ao segundo. Leríamos esses livros pelo tema de que tratam, a epidemia, e esperaríamos deles uma função precisa que demanda um uso da literatura – e da arte, em geral –, o efeito-espelho conhecido desde os gregos: ao reconhecer o meu presente numa situação similar, posso retirar dali um conhecimento sobre o que me acontece, dissipar o desconhecido e suscitar reações de defesa. Além disso, crio para mim uma genealogia: o que me acontece já aconteceu, não estou sozinho nem sou o primeiro, e minha angústia se vê assim certamente reduzida.

Leríamos, então, para obter alguma certeza nos grandes tempos de incerteza que são os nossos. O ganho é evidente, mas seria ele realmente importante? E precisaríamos solicitá-lo à literatura? Pois a busca de uma certeza pode também se manifestar como uma denegação, uma estratégia que visa minimizar a gravidade das circunstâncias e que pode suscitar comportamentos inapropriados e enganosos. Contudo, buscar uma certeza é ainda mais compreensível quando a situação atual se revela no mínimo nebulosa diante dos desacordos entre políticos e cientistas, desacordos entre os próprios políticos e entre os próprios cientistas. A incerteza reina: natureza da doença, máscaras, testes, número de mortos, duração e fim do confinamento, etc.

Leríamos esses livros pelo tema de que tratam, a epidemia, e esperaríamos deles uma função precisa que demanda um uso da literatura…

Consequentemente, mais do que lutar contra a incerteza para continuar a viver, não seria preciso aprender a viver com a incerteza? E isso a literatura pode nos ensinar. Pergunte a um grande-escritor-bem-confinado, o tal Proust, Marcel, cujo papai médico, Armand, tinha, aliás, se especializado na luta contra as epidemias. Quando evoca as paisagens e os momentos de sua infância, o narrador de Em busca do tempo perdido não busca se embalar nos balanços nostálgicos e reconfortantes do passado, mas visa compreender seu presente e solicita à escrita o desvio necessário. Pois o presente é incerto. Para vivê-lo, é preciso desgarrar-se dele, aceitar o vaivém do passado ao presente, expor-se, em suma, ao incerto. De passagem, ele nos ensina também que a evasão temporal vale como evasão espacial, o que é bastante útil em tempos de confinamento. Na mesma época, um dublinense que ia sendo aos poucos confinado pela cegueira fazia seu judeu-irlandês Ulisses percorrer por 24 horas todos os seus lugares rotineiros para minar-lhes o conforto.

Proust e Joyce são contemporâneos de Einstein, de Planck e dos primeiros passos de uma ciência dura que irá endossar a noção de incerteza (princípio da incerteza, física quântica, lógica difusa e outras teorias do caos), mas cujos mecanismos nem todos podem compreender. A literatura, por sua vez, oferece uma abordagem soft, mais suave. Pensemos em Emma Bovary. Ela existe ou não existe? Sim e não. Ela é extraída do real, mas não faz parte dele. Sua existência se desdobra diante de nós sob um regime de incerteza. E quanto a nossa realidade confinada? Não é, ela também, irreal? Quase todo o planeta paralisado por uma coisinha espinhosa de 60 a 140 nanômetros, extremamente pequena, ou, pelo menos, totalmente invisível a olho nu. Nunca a vi, mas estou infelizmente seguro de sua existência e acredito nela.

…ao reconhecer o meu presente numa situação similar, posso retirar dali um conhecimento sobre o que me acontece, dissipar o desconhecido e suscitar reações de defesa.

Ludwig, “o sátiro”, se surpreendia que pudéssemos dizer “Acredito com certeza”, como se sustentar a crença desvalorizasse a certeza. Mas Wittgenstein era um filósofo que duvidava de tudo, não acreditemos nele. Vejamos agora aquele escritor de Praga que escrevia: “Existe um objetivo, mas não um caminho. O que chamamos de caminho é hesitação”. A incerteza como viático. Haverá um pós-corona, mas como alcançá-lo? Nem os cientistas nem os líderes estão de acordo – como dito acima. Acreditaríamos (com certeza) que Kafka talhou essas palavras para nós. O que não nos surpreende já que ele escreveu um livro que começa assim: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se confinado”. Mais um para a playlist.

Goethe quebrou a cabeça para refutar a teoria das cores de Newton, empreitada ridicularizada, desde então, pela história da ciência. No entanto, o suicídio de Werther foi seguido na Europa por uma onda de suicídios, o que prova que a realidade romanesca de Goethe não era menos sólida que a de Newton. Todos conhecemos universos que tiram sua verdade do intangível. Deus ou o inconsciente, o átomo ou a democracia. Como viver em meio a ilusões? É o que nos ensina a literatura. Ela nos ensina, por exemplo, outros tempos e espaços, imersões que o confinamento tornou necessárias. O tempo da narrativa não corresponde ao tempo do leitor e, mesmo assim, cada leitor mergulha nele a cada vez que reabre o livro. O espaço da narrativa jamais acolherá o leitor e, mesmo assim, a cada leitura, cada leitor mergulha nele… Mergulha do outro lado do real, como Alice, e, como Alice, encontra um real outro, nem mais nem menos louco, mas que exige o abandono de toda certeza para ser percorrido. Os gigantes de Dom Quixote existiam apenas na mente do Cavaleiro da triste figura, mas seria um erro zombar disso, visto que gerações de leitores seguiram suas aventuras sem a certeza de que ele teria existido fora de suas mentes.

Como viver em meio a ilusões? É o que nos ensina a literatura. Ela nos ensina, por exemplo, outros tempos e espaços, imersões que o confinamento tornou necessárias.

Nossos corpos ameaçados e confinados se acostumaram a existir virtualmente e por procuração em imagem, o que permitiu a realização ininterrupta de conselhos de administração ou de reuniões ministeriais, de seminários universitários e de consultas profissionais. Com direito a voto e a tomada de decisão. Uma responsabilidade assim reconhecida em seres virtuais apenas prolonga aquela conferida a seres de papel. Quando o Tribunal imperial absolveu em 1857 Madame Bovary da acusação de “ultraje à moral pública e religiosa e aos bons costumes”, Flaubert ficou desolado por sua Emma ter sido tratada como uma prostituta. Assim como o foram suas primas irlandesas acolhidas por Joyce em Ulysses, que, contudo, não escaparam da ira da justiça, já que o romance, publicado em 1922, foi proibido nos Estados Unidos por “obscenity” até 1934 e no Reino Unido até 1936. Seriam essas criaturas culpadas ou inocentes? De todo modo, foi a literatura que as fez existir.

Ora, a realidade que vivemos hoje através de telas e de máscaras tem tudo de um simulacro, o que não assusta a literatura, ela que nos entrega uma realidade que se parece com a realidade, mas que não o é.

Há alguns anos, Jean Baudrillard refletiu sobre o conceito de simulacro, o qual foi rapidamente acomodado junto à parafernália pouco confiável (incerta?) do pós-modernismo. Ora, a realidade que vivemos hoje através de telas e de máscaras tem tudo de um simulacro, o que não assusta a literatura, ela que nos entrega uma realidade que se parece com a realidade, mas que não o é. Prova disso são as posterioridades romanescas que aceitamos ignorar. O que será de Charles Bovary e de Rodolphe após o suicídio de Emma? Será que nos preocupamos com isso, nós que os seguimos de tão perto? Qual o futuro dos personagens sobreviventes de Os miseráveis ou de E o vento levou terminada a última página? A imprudência ou a vontade de lucro levaram alguns escritores a adicionar algumas páginas, uma continuação para o enredo. O resultado é duvidoso, e o talento dos ditos escrivães não tem nada a ver com isso. A realidade de um romance limita-se a seu texto, e não vai além dele.

Nesse sentido, todo romance é inacabado. Sem acabamento, não há certeza. O que não é um problema pois o pequeno humano, ele também, nasce inacabado e, por essa razão, não é capaz de andar antes de um ou dois anos de idade, diferentemente de um bezerrinho ou de um filhote de elefante. É verdade, mas esses últimos não sabem ler.


Texto recebido em 14 de maio de 2020.

Alexis Nouss

Professor de literatura geral e comparada da Universidade de Aix-Marselha e foi professor da Universidade de Cardiff e da Universidade de Montreal. Lidera o grupo “Transposições” no Centro Interdisciplinar de Estudos da Literatura em Aix-Marselha (CIELAM) e ocupa a cátedra “Exílio e migração” na Fondation de la Maison des Sciences de l’Homme/FMSH, Paris). Seus campos de pesquisa e reflexão estão ligados, em particular, à tradução, à experiência do exílio, à cultura europeia e à literatura de testemunho. Entre seus livros estão: Plaidoyer pour un monde métis (2005), Paul Celan. Les lieux d’un déplacement (2010) e La condition de l’exilé. Penser les migrations contemporaines (2015).

Traduzido por Sergio Novo

Mestrando em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Traduzido por Tatiane França Rangel

Mestranda em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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