Especial Covid-19

A Covid-19 e o futuro da sustentabilidade do planeta

David Zee, 22/07/2020

Foto de Anna Shvets no Pexels

A partir dos efeitos da pandemia e do isolamento social, o que se pode aprender sobre o meio ambiente e a sociedade para a construção de um amanhã mais sustentável

A pandemia, apesar de criar inúmeros problemas no cotidiano de toda humanidade, também traz à tona inúmeras contrapartidas desejadas, percepções antes anestesiadas e práticas esquecidas. No momento em que a Terra para a fim de fazer frente à ameaça de uma doença extremamente contagiosa, é possível perceber que podemos mudar nossos costumes e comportamentos para melhor. Não apenas porque desejamos, mas porque precisamos. Diante desta situação, está sendo possível perceber e entender que a diversidade de ideias faz parte do coletivo, mas que a definição da escolha depende de um ordenamento e de uma maioria. A qualidade da sobrevivência da humanidade, que não para de crescer, vai depender de sua capacidade de realizar boas escolhas. Atualmente já somos mais de 7,5 bilhões de pessoas desigualmente distribuídas sobre os continentes de um planeta que navega solitário no espaço. É a sabedoria do respeito aos limites do uso e do equilíbrio da ciclagem dos recursos naturais da mãe Terra que permitirá a oferta permanente dos recursos naturais demandados para a manutenção da vida inteligente.

O evento da Covid-19 permite que todos nós percebamos que é possível um novo ritmo no andar da humanidade. Este período de isolamento interrompe de maneira abrupta a correria diária que nos impedia de ver, refletir e agir de forma mais consciente. Como diz um ditado popular: “Quem trabalha demais não tem tempo para ganhar dinheiro”. A automatização das atividades diárias nos impedia de refletir, obrigando-nos a só reagir de forma precipitada. Grande parte do nosso tempo era gasto no deslocamento diário e, muitas vezes, para um trabalho meramente repetitivo, não nos permitindo muito espaço para a reflexão e a criatividade. Pois é, o coronavírus conseguiu chamar a nossa atenção não apenas para si, mas também para outros valores antes negligenciados.

É a sabedoria do respeito aos limites do uso e do equilíbrio da ciclagem dos recursos naturais da mãe Terra que permitirá a oferta permanente dos recursos naturais demandados para a manutenção da vida inteligente.

O primeiro desafio oferecido pelo novo vírus está no enigma entre o seu desconhecimento e a urgência da cura, pois a correria diária não pode parar. Assim como a Esfinge da mitologia grega, que desafiava todos a desvendar o enigma ou ser devorados de forma imediata, a pandemia traz à tona o dilema da escolha entre a segurança através do conhecimento ou a antecipação pela primeira impressão, pois o mundo não pode parar. Neste momento, o risco da precipitação pode representar o custo de mais vidas humanas. Portanto, é uma oportunidade para muitos descobrirem a importância da ciência, do método científico, para a tomada de decisões difíceis. A sociedade pode vivenciar, como em um reality show, as virtudes do rigor científico que muitos não conseguem perceber. 

A Alegoria da Caverna, proposta por Platão em A República, descreve um diálogo entre Sócrates e Glauco no qual se analisa que nem sempre as primeiras impressões mostram a realidade de um fato. A parábola descreve um grupo de prisioneiros acorrentados a uma parede no interior de uma caverna, de modo que só podiam olhar para outra parede à sua frente. Acima da parede à qual se encontravam presos havia um platô recuado com uma fogueira permanentemente acessa. Na frente dessa fogueira atravessavam pessoas carregando objetos cujas sombras distorcidas se projetavam na parede que os prisioneiros conseguiam ver. Essa era a única impressão que tinham do mundo exterior. Certo dia um dos prisioneiros conseguiu escapar da caverna. No início, a enorme claridade o cegava, mas com o tempo a sua visão foi se acostumando e ele pôde finalmente ver a realidade do mundo que existia fora da caverna. Maravilhado, sentiu-se na obrigação de voltar à caverna para dividir a verdade que havia descoberto. Contudo, ao retornar ao interior, a escuridão da caverna o cegou, deixando-o atordoado. Ao vê-lo confuso e descrevendo coisas que nunca imaginariam existir, os companheiros pensaram que o mundo exterior lhe tinha feito mal, levando-o à loucura. Eles com certeza não gostariam mais de sair da gruta, mantendo-se na ignorância da única impressão que tinham quando acorrentados em seu interior. Até mesmo matariam quem tivesse a intençãA ignorância e a precipitação podem cobrar um preço que a maioria da população não gostaria de pagar. Em função da necessária segurança, é preciso muito mais que uma mera disputa de opiniões para vencer o dilema oferecido pela pandemia.o de levá-los para o mundo real. 

A ignorância e a precipitação podem cobrar um preço que a maioria da população não gostaria de pagar. Em função da necessária segurança, é preciso muito mais que uma mera disputa de opiniões para vencer o dilema oferecido pela pandemia.

Essa metáfora representa muito bem o mal que os dogmas e os mitos produzem, sem considerar outras hipóteses e sem o cuidado científico para esclarecer a verdade. Quem deseja encontrar a verdade deve considerar todas as hipóteses oferecidas, por mais absurdas que sejam, para que possam ser confirmadas ou descartadas. Galileu Galilei foi um dos precursores do método científico e vivenciou esse dilema quando descobriu que a Terra girava em torno do Sol. No século XVII, Galileu escreveu o livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, demonstrando a teoria do heliocentrismo, enquanto a Igreja, na época da Santa Inquisição com o dogma do antropocentrismo, acreditava na teoria do geocentrismo. Para não ser morto, Galileu teve de renunciar à sua descoberta e foi sentenciado à prisão domiciliar pelo resto de sua vida. 

Quando, em 2020, a Terra para e quase todos têm de se isolar em casa para proteger a sua saúde e a de seus entes queridos, há uma oportunidade para uma rica reflexão sobre valores e liderança. Ao acompanhar o mundo pelos olhos da TV ou dos computadores, começamos a participar dos cuidados necessários à busca do conhecimento e da proteção em relação ao minúsculo novo coronavírus. As estatísticas de mortos, enquanto números, a princípio, não nos sensibilizaram. Entretanto, esses números aumentaram, começaram a se transformar em nomes e, pouco a pouco, em nomes conhecidos. Tornou-se algo que depende de muito mais que meras especulações e conclusões superficiais, pois o que está em jogo é a nossa vida. A ignorância e a precipitação podem cobrar um preço que a maioria da população não gostaria de pagar. Em função da necessária segurança, é preciso muito mais que uma mera disputa de opiniões para vencer o dilema oferecido pela pandemia. Metaforicamente, o desafio é saber trocar o pneu de um carro de corrida em plena disputa do grande prêmio da governança. 

Neste momento é possível resgatar os valores da educação, da ética e da ciência, muitas vezes negligenciados em favor do imediatismo do mundo moderno. A educação para buscar o conhecimento. A ética para buscar a justiça. A ciência para buscar a verdade. O conhecimento, a justiça e a ciência são as colunas que sustentam a sabedoria da liderança na busca do bem-estar da humanidade. 

O isolamento não está sendo para todos, mas para uma grande maioria. Essa impo- sição nos faz ver a nossa dependência em relação às ações do coletivo, assim como o coletivo depende das nossas atitudes individuais.

Durante a pandemia, parece que o tempo está parando de modo que possamos exercitar uma virtude humana anestesiada pela correria do dia a dia: pensar. Como dizia o pai da filosofia e da matemática moderna, René Descartes, “Penso, logo existo”. O princípio da investigação científica preconizado por ele em O discurso do método tem quatro postulados, e é sobre eles que se sustenta a ciência. O primeiro recomenda a dúvida constante e a não aceitação de qualquer afirmação até que possa ser comprovada. O segundo indica estrategicamente que se divida o problema a ser resolvido em partes menores de modo a facilitar a solução. O terceiro ensina a organizar em ordem crescente as partes divididas, do mais simples ao mais complexo, até que todos tenham sido comprovados e elucidados. Finalmente, o quarto recomenda enumerar e revisar as conclusões de modo a haver um sequenciamento lógico dos fatos comprovados.

O isolamento não está sendo para todos, mas para uma grande maioria. Essa imposição nos faz ver a nossa dependência em relação às ações do coletivo, assim como o coletivo depende das nossas atitudes individuais. Além dos nossos familiares, também dependemos de outras pessoas para sobreviver e enfrentar as dificuldades que se apresentam na pandemia e com o isolamento. Durante este tempo de reclusão, temos a oportunidade, mesmo que forçada, de fortalecer os laços com a nossa morada e com o planeta que nos acolhe e alimenta sem o nosso devido respeito e atenção. Nossa relação vai muito além das pessoas à nossa volta e remete-nos também a uma identificação com o ambiente que nos cerca. A casa se consolida como um lar, com todas as dificuldades a ela inerentes, e descobrimos a natureza como uma extensão do quintal da nossa moradia. Aprendemos a compartilhar o espaço natural com os nossos semelhantes, assim como começamos a prestar mais atenção a outros elementos vivos e não vivos que participam e compõem a natureza. Está sendo possível perceber que a mudança momentânea do nosso comportamento cotidiano faz diferença e altera visivelmente algumas características que julgávamos difíceis, para não dizer impossíveis, modificar.

 O isolamento compulsório e repentino nos obriga a novos hábitos, que tiveram de ser rapidamente absorvidos e adequados. Um deles foi a redução repentina na utilização de veículos, sejam particulares, sejam públicos, o que vem restringindo a emissão de gases do efeito estufa de maneira substancial. Ao longo das principais vias de grande circulação ou dos aglomerados industriais, é notória a melhoria da qualidade do ar e da visibilidade aérea. Da mesma forma, há visível redução no lançamento de resíduos oleosos e de combustíveis fugitivos dos veículos, bem como do pó dos pneus produzido pelo seu desgaste ‒ poluentes químicos de expressiva agressividade que posteriormente são carreados pela chuva para rios, lagos e baías através das galerias de águas pluviais urbanas. 

Essa é uma mudança bem-vinda, pois o acúmulo progressivo desses poluentes no leito dos corpos hídricos promove um passivo ambiental que afeta a qualidade ambiental desses ecossistemas naturais ao longo do tempo. Além da degradação ambiental, é sabido que a depreciação econômica da orla desses espelhos d’água prejudicados é expressiva. Paradoxalmente, esses espaços urbanos, normalmente bastante valorizados e procurados para instalação de residências e comércio, costumam ser perdidos pela falta de planejamento e devidos cuidados decorrentes da urgência do imediatismo.

Precisamos lembrar que a redução e a poluição dos espaços naturais também repre- sentam a perda de serviços ambientais inestimáveis, como a ciclagem da água, do oxigênio, do carbono, da matéria orgânica e de inúmeros outros recursos naturais dos quais depende a nossa existência.

A pandemia também tem proporcionado uma substancial redução na emissão de poluentes aéreos durante este período de reclusão, o que resulta em menor emissão de gases do efeito estufa (CO² e NO²) que influenciam as mudanças climáticas e os eventos extremos de enorme impacto ambiental no planeta. Imagens de satélite sobre regiões industrializadas da Itália e da China, exemplos de locais que dificilmente se imaginaria tão rápida recuperação, evidenciam esse efeito colateral positivo na atmosfera. Com isso, observa-se que a mudança no comportamento humano pode proporcionar ganhos ambientais substanciais que devem ser estudados e considerados para um futuro plano de adequação humana no planeta. Basta haver determinação, informação e instrumentalização para promover o engajamento em um novo modo de vida individual, em favor de um benefício coletivo e planetário. Será que para o homem reagir é sempre preciso haver uma ameaça direta e letal?

Outro cenário produzido pelo distanciamento social digno de nota consiste na saída de cena das aglomerações de pessoas no espaço urbano e nas zonas de transição para áreas naturais, permitindo assim o retorno e a maior presença de animais silvestres. Em diversas localidades urbanas do planeta, os esses animais vêm ocupando pouco a pouco a lacuna deixada pela ausência humana. Na orla dos canais e lagoas da Baixada de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, ou mesmo nas edificações próximas a matas de encostas e morros, muitas corujas, gaviões, capivaras, micos, macacos, jacarés, dentre outros animais, têm sido observados com maior frequência. Na Baía de Guanabara e da Ilha Grande, golfinhos, tartarugas e tubarões são avistados em águas claras. 

Esse cenário nos remete à reflexão sobre se temos realmente mais direito a este recurso natural, cada vez mais valioso, que é o espaço físico do planeta. Será que 7,5 bilhões de pessoas é um número justo de humanos no planeta? Por que podemos crescer e nos espalhar indefinidamente enquanto hoje restam menos de 12,4% da área original da Mata Atlântica, por exemplo, para dar espaço a cidades, sítios e campos de produção agropecuária que nos servem? Precisamos lembrar que a redução e a poluição dos espaços naturais também representam a perda de serviços ambientais inestimáveis, como a ciclagem da água, do oxigênio, do carbono, da matéria orgânica e de inúmeros outros recursos naturais dos quais depende a nossa existência. A continuar essa escalada, estaremos nos encaminhando para uma silenciosa e gradual redução da qualidade de vida até chegarmos perigosamente ao ponto de colapso e de comprometimento da nossa própria sobrevivência. Inclusive, o crescimento acelerado da população humana na Terra é uma das hipóteses do surgimento do novo coronavírus (Gruber, 2020). O espalhamento humano no planeta provoca o risco da excessiva aproximação de áreas naturais, antes isoladas, e o consequente contato com animais silvestres, promovendo a expansão de doenças zoonóticas.

Saber respeitar e conviver com a natureza significa manter os seus ciclos naturais para que se perpetuem os recursos e os serviços ambientais oferecidos de modo que possamos nos manter na Terra. A garantia dos benefícios naturais para as futuras gerações depende das mudanças de comportamento que pudermos concretizar hoje em favor do equilíbrio da cadeia de vida do planeta. Equilíbrio em que se busque as trocas saudáveis de uma associação simbiótica. Tendo em vista esses objetivos, os fundamentos do ecocentrismo devem ser vivenciados, e a ética deve ir além das relações apenas humanas e incorporar as relações com o planeta. 

Ouso afirmar que o número crescente de pandemias seja uma reação do desequilíbrio ambiental causado pelo homem decorrente da superpopulação e do alto consumo dos recursos naturais.

Aldo Leopold, idealizador da ética ecocêntrica, valorizava a diversidade planetária e considerava o homem apenas como mais um elemento dessa diversidade, e não o seu centro. Ele entendia que como ser inteligente, o homem deveria ser o guardião da integridade e do equilíbrio dos fluxos ou dos ciclos naturais do planeta, pois a sua existência saudável também dependeria da saúde desse equilíbrio. Nesse sentido, é hora de nos questionarmos sobre o tamanho da população humana e o consumo exagerado dos recursos naturais.

A memória humana é curta e imediatista. Ao longo das últimas décadas, tivemos inúmeras pandemias (Datt, 2020): gripe espanhola, em 1918 (100 milhões de mortes); gripe asiática, em 1957 (1,5 milhão de mortes); gripe de Hong Kong, em 1968 (1,2 milhão de infectados); HIV/Aids, em 1981 (36,7 milhões de mortes); SARS, em 2003 (744 mortes); gripe suína, em 2009 (575 mil mortes); MERS, em 2012 (659 mortes); Ebola, em 2013 (11.323 mortes); e, mais recentemente, Zika vírus, em 2015. Nota-se que com o aumento substancial da população humana no planeta, a frequência dos surtos pandêmicos também tem crescido. O custo conjunto de todas essas pandemias anteriores ao coronavírus foi algo em torno dos US$ 198 bilhões. Estima-se que a Covid-19 deva custar US$ 1 trilhão (Datt, 2020). Pela previsão de custo, é possível perceber a seriedade e a gravidade dessa doença em termos de impacto na economia mundial. 

Por definição, a sustentabilidade do planeta está apoiada sobre o equilíbrio de três colunas: benefício humano, benefício da natureza e viabilidade econômica. O efeito direto da Covid-19 sobre o homem se dá no quesito saúde pública. O efeito indireto recai sobre a economia. O aumento da população humana e o consumo são os dois quesitos que mais ameaçam o meio ambiente. Tanto assim que a bomba relógio do Hemisfério Sul, dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, é o número de habitantes no planeta que pressiona a demanda por recursos naturais. Já a bomba relógio do Hemisfério Norte, dos países desenvolvidos, é a capacidade de consumo per capita, que é muito superior comparada à dos países pobres. 

A questão do adensamento populacional somada à da capacidade de consumo e deslocamento dos países desenvolvidos, que permite fácil e rápido acesso a qualquer ponto do planeta, são características que favoreceram o espalhamento da doença. Óbvio constatar que, com esses fatores, a Covid-19 afetou primeiramente os países desenvolvidos do Hemisfério Norte. Assim, a dispersão do coronavírus é diretamente proporcional ao adensamento humano e à capacidade de locomoção das pessoas. Regiões de alto consumo e desenvolvimento social, como o norte da Itália e as cidades de Nova York, São Paulo e Madri, dentre outras, foram muito afetadas. A Covid-19 atacou primeiro a população humana que proporcionalmente causava maior dano ambiental ao planeta. Com isso, a percepção da melhoria ambiental em torno do planeta também seria mais evidente nos locais de maior pressão ambiental, como as megacidades conurbadas e os conglomerados industriais. No quesito consumo, em um primeiro momento, o gasto energético foi o mais evidente em termos de redução. Isso porque a diminuição brusca do consumo provocada pela quarentena contribuiu para o colapso do preço do petróleo, ocorrido durante a pandemia (Kianek, 2020). Em segundo plano, a aviação civil também recebeu um duro golpe devido ao isolamento dos países. Se a deusa Gaia existisse, poder-se-ia dizer que ela teria se enfurecido e enviado uma praga contra os homens na forma de coronavírus.

Este inesperado e surpreendente período de reclusão em função da Covid-19 nos pro- porciona momentos de reflexão. A sociedade precisará rever seus conceitos de cole- tivo, estar mais atenta para uma nova realidade planetária que já estava acontecendo sem a sua devida atenção.

Ouso afirmar que o número crescente de pandemias seja uma reação do desequilíbrio ambiental causado pelo homem decorrente da superpopulação e do alto consumo dos recursos naturais. A superpopulação expõe o homem a ambientes e organismos mutantes que afetam a saúde pública, e o alto consumo promove a rápida destruição de vários recursos naturais do planeta. O coronavírus só pôde prosperar porque algum humano se aproximou dele, hospedou-o e teve oportunidade de contaminar outras pessoas. Afinal, a mobilidade do mundo moderno possibilita que as pessoas acessem rapidamente diferentes pontos do planeta, ajudando a espalhar o vírus.

Se formos analisar as consequências da Covid-19 no meio ambiente, poderíamos afirmar que o desdobramento tem sido mais positivo que negativo. A pandemia promove uma redução brusca no consumo mundial. O isolamento, por exemplo, reduz o custo ambiental diário com o deslocamento maciço nos grandes centros urbanos. O distanciamento das relações de trabalho diminui o consumo de insumos, especialmente o papel; a necessidade de manutenção dos escritórios; a quantidade de resíduos sólidos; e, principalmente, as emissões de gases do efeito estufa geradas pelo consumo de energia. O período de reclusão e distanciamento também vem nos doutrinando para novos costumes e procedimentos muito mais amigáveis com o meio ambiente, principalmente nas áreas urbanas. A necessidade de familiarização com dispositivos de comunicação e de acesso a distância não apenas pela população jovem mas também pelos mais maduros, permite, além das já citadas economias de materiais e de combustível, poupar, principalmente, tempo, o que propicia o aumento da produtividade e a redução dos custos de empresas que souberam se antecipar aos novos tempos.

Em termos comportamentais, a saída da pandemia deve provocar um “novo normal”, cujas tendências preliminares podem ser resumidas pelas seguintes consequências de curto prazo:

  • mais tempo para o relacionamento familiar;
  • redução dos contatos presenciais;
  • menor consumo de espaço por corporações e lojas comerciais;
  • menor consumo de energia e de tempo de deslocamento;
  • redução da produção de resíduos;
  • vias de circulação urbanas mais livres;
  • demanda por capacitação tecnológica;
  • maior distanciamento social;
  • demanda por smartphones e computadores.

Este inesperado e surpreendente período de reclusão em função da Covid-19 nos proporciona momentos de reflexão. A sociedade precisará rever seus conceitos de coletivo, estar mais atenta para uma nova realidade planetária que já estava acontecendo sem a sua devida atenção. Jamais uma ameaça contra o modo de vida e a existência humana foi tão real e exposta através de dados, gráficos, imagens e debates de ideias na mídia em geral. E o melhor de tudo tem sido o reconhecimento de que a responsabilidade pela ameaça é toda nossa. A preguiça de pensar somada à alienação da responsabilidade e ao imediatismo do mundo moderno sempre nos concederam o cômodo direito da crítica sem o dever de apresentar alternativa alguma de solução. 

A capacidade de transmissão e de contágio não foi a única novidade do novo coronavírus. O risco de vida é uma realidade que se aproxima de todos e a todos sensibiliza. Com ele, temos de fato um motivo suficientemente preocupante para nos tirar da zona de conforto e exigir de cada um de nós uma atitude pessoal. O risco de vida individual tem conseguido nos remeter para a preocupação com o risco coletivo da humanidade e daí para com o próprio planeta. Isso nos pressiona a participar da decisão coletiva sobre o que fazer e, principalmente, sobre como fazer. Neste momento, percebemos que não podemos mais adotar o método do achismo, pois este não é suficientemente seguro para decidir sobre o risco de nossas vidas. Conseguimos então resgatar o valor do método científico perante a opinião pública.

O distanciamento poderá ainda provocar uma revolução nos costumes cotidianos das cidades, afetando a necessidade de deslocamento, o uso de veículos e transporte público, o consumo e a produção de resíduos.

Várias são as perguntas lançadas neste turbilhão pandemônico que nos obrigam a pensar. Dentre as diversas conclusões germinadas durante este profícuo período de retiro compulsório, que com certeza irão influenciar o nosso futuro comum, acredito nas seguintes:

  • Sempre duvide das suas primeiras impressões. Questione a si mesmo.
  • Para se aproximar da verdade é preciso pesquisar fatos e dados, entender a lógica do processo e saber explicar as conclusões.
  • Considere que a diversidade de ideias ajuda na busca da verdade. 
  • Sabedoria é muito mais que conhecimento, pois também agrega a ética e a ciência.
  • O coletivo não é apenas humano, mas também considera o planeta.
  • O homem pode mudar o seu destino, desde que a maioria se sensibilize e o queira de fato.
  • Esta pandemia não será a última, sempre haverá novos desafios.
  • Uma vacina, caso disponibilizada, só atacará a consequência (doença) e não a causa (comportamento humano).
  • Um novo normal vai surgir.

Quanto ao futuro próximo, a sustentabilidade do planeta será decidida nos centros urbanos, uma vez que a maioria da população mundial se aglutina nessas áreas ‒ no caso do Brasil, mais de 84% da população vive nas cidades (PNAD, 2015). Pressupõe-se que a Covid-19 se alastrou aqui a partir das grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro. Nelas, a falta de controle e a aglomeração humana presentes nas favelas, bem como a ausência de saneamento básico universal, foram facilitadores do espalhamento da doença. A rapidez do contágio e da disseminação do vírus impõe um distanciamento das pessoas e, em último caso, um isolamento dos infectados. Em outras capitais, como Manaus e Fortaleza, duramente castigadas pela doença, admite-se que o grande fluxo de turistas e empresários foi o vetor de entrada do novo coronavírus. A falta de equipamentos para assistência médica, monitoramento do contágio, ineditismo da doença e ausência de uma unidade de governança agravam ainda mais a deficiência no controle de transmissão e no tratamento no Brasil. Essas são lições a serem registradas e aprendidas para administrar futuros desafios que estão por vir. Em função do tamanho do país e das diferenças culturais e econômicas entre as suas capitais, soluções e procedimentos de prevenção para novas pandemias serão diferentes e devem ser adaptados para cada realidade local. 

A tendência do distanciamento social deve influenciar o futuro das atividades humanas no mundo, principalmente nos centros urbanos. Assim, shoppings, teatros, cinemas, estádios e arenas esportivas, além de outros equipamentos predominantemente urbanos, tenderão a sofrer mudanças, principalmente se novas pandemias acontecerem. O distanciamento poderá ainda provocar uma revolução nos costumes cotidianos das cidades, afetando a necessidade de deslocamento, o uso de veículos e transporte público, o consumo e a produção de resíduos. Como resultado, a pressão humana pelo uso dos recursos naturais tenderá a diminuir, favorecendo o reequilíbrio dos ciclos naturais. Também em função do distanciamento desejado, a qualidade de vida urbana poderá melhorar com a redução da poluição do ar, menos áreas verdes suprimidas, maior fluidez do tráfego e, quem sabe, surgimento de mais manchas azuis, relativas a lagos e reservatórios de água, e verdes, separando as áreas urbanizadas.

Um novo modelo de gestão demandará soluções inovadoras para adequação urbana frente à nova realidade que começará a se apresentar. E as universidades têm um papel importante na formação de novas lideranças e profissionais que irão desenvolver essas mudanças. Precisamos nos preparar e nos adequar para esta nova realidade de vida que surgirá. Quem não souber se adaptar e aprender rápido com as novas tendências ficará pelo caminho. Assim como é a essência da Teoria da Seleção das Espécies, somente os mais adaptados e preparados sobreviverão.


Texto recebido em 3 de maio de 2020.

BOYLAN, M. (ed.). Environmental ethics. New Jersey: John Wiley & Sons, 2014.

DATT, F. Risco recorde. Valor Econômico, São Paulo, 30 mar. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2020/03/30/risco-recorde.ghtml. Acesso em: 30 mar. 2020.

DESCARTES, R. Discurso sobre o método. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2011.

FERREIRO, M. F. Direito de propriedade e ética da Terra: o contributo de Aldo Leopold. E-cadernos CES, Coimbra, n. 5, p. 8-20, 2009. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/260. Acesso em: 30 abr. 2020. 

GOUDIE, A. The human impact on the natural environment: past, present and future. 6. ed. New Jersey: Blackwell Publishing, 2005. 

GRUBER, A. Covid-19: o que se sabe sobre a origem da doença. Jornal da USP, São Paulo, 14 abr. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/covid2-o-que-se-sabe-sobre-a-origem-da-doenca/. Acesso em: 04 maio 2020.

HIROTA, M. M. (org.). Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica, Relatório Técnico. Período 2017-2018. Disponível em: https://www.sosma.org.br/wp-content/uploads/2019/05/Atlas-mata-atlantica_17-18.pdf. Acesso em: 24 abr. 2020.

KIANEK, A. Covid-19: preço do petróleo dos EUA entra em colapso e fecha negativo. Revista Veja, São Paulo, 20 abr. 2020. Economia. Disponível em: http://veja.abril.com.br/economia/coronavirus-petroleo-dos-eua-desaba-mais-de-30-com-a-falta-de-demanda/. Acesso em: 27 abr. 2020

KIBERT, C. J.; MONROE, M. C.; PETERSON, A. L.; PLATE, R. R.; THIELE, L. P. Working toward sustainability: ethical decision making in a technological world. New Jersey: John Wiley & Sons, 2012. 

LEOPOLD, A. A sand county almanac. New York: Oxford University Press, 1949.

David Zee

Professor da Faculdade de Oceanografia da UERJ desde 1981. É formado em Engenharia Civil pela Universidade Mackenzie/SP, com Mestrado em Engenharia Costeira e Oceânica pela University of Florida/EUA e Doutorado em Geografia pela UFRJ. Como embaixador do Instituto Trata Brasil, tem preocupação com a poluição por esgotos nos oceanos. Sua área de concentração na pesquisa é a gestão costeira e a participação social nas questões ambientais. Coordena o blog Olhar Oceanográfico. Atualmente é vice-presidente da Câmara Comunitária da Barra da Tijuca e da ONG Defensores da Terra.

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