Arte e Ciência

Baía de Guanabara: a cultura enquanto arte e ciência

Andrea Adour, 28/06/2023

“Axé, minha Guanabara, recanto mais doce do mar” ecoou na passarela como parte do enredo “O Rio corre pro Mar”, do Império Serrano, de Silvio Cunha, Ernesto Nascimento e Actir Gonçalves. Esse encanto com a paisagem e toda a cultura que integra a Guanabara inspirou diferentes compositores, transformando em sons a sua fascinante e vertiginosa força cultural: “Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara”, de Tom Jobim; “Triste Bahia da Guanabara, lua branca, noite clara”, de Djavan; “Chorei com saudades da Guanabara”, de Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro; “Baía da Guanabara, espelho que reflete o azul de um céu que sonhava Deus na sua glória imensa”, de Carlos Galhardo. Em julho de 2012, o Comitê de Patrimônio Mundial aprovou a candidatura intitulada “Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar”, sendo assim reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. 1

A paisagem cultural patrimoniada integra diversos pontos do Rio e inclui a entrada da Baía de Guanabara e territórios que a margeiam como, por exemplo, os Fortes históricos de Niterói e do Rio de Janeiro, o Pão de Açúcar, o Parque do Flamengo e o Passeio Público (além destes há ainda outros espaços como a Floresta de Tijuca o Jardim Botânico etc.).

Entretanto, há um evidente conflito quando tratamos da Baía de Guanabara: ao percorrer suas margens mais de perto, percebemos sensorialmente aspectos em desconcerto com a estonteante paisagem: mau cheiro, lixo, esgoto, medo, que trazem uma face oposta àquela dos cancioneiros aqui citados. Falta de saneamento e segurança pública, ineficiência dos transportes coletivos, pobreza, insegurança alimentar e problemas sociais os mais diversos emergem nestas margens. Como nós, atuantes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, podemos enfrentar tais questões? Foi esta a proposta apresentada à Superintendência de Difusão Cultural quando convidada a participar da exposição “Futuros da Baía de Guanabara: inovação e democracia climática”.

Esta superintendência descreve como princípio a coordenação e articulação da Política de Arte, Cultura e sua difusão, tendo a responsabilidade de realizar a integração entre os diversos saberes culturais, artísticos e científicos com diferentes esferas governamentais, com a sociedade e com a própria universidade. Vale citar ainda que a Universidade Federal do Rio de Janeiro tem sua história ligada à Bahia de Guanabara: a Lei nº 452, de 5 de julho de 1937, durante o governo Getúlio Vargas, instituiu a criação da Universidade do Brasil (que passaria a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro) e previu a construção de uma cidade universitária (inicialmente dispersa nos diferentes prédios). O artigo 15 desta lei instituí a Comissão do Plano responsável por esta progressiva edificação. Foi assim que a atual sede da UFRJ na Ilha do Fundão começou a criar formas, após o aterro de um conjunto de ilhas que deram lugar à construção de seu campus, inaugurado em 1952.

Pensar a relação entre  meio ambiente, sustentabilidade e acessibilidade cultural a partir das artes foi a proposta de articulação apresentada pela Superintendência de Difusão Cultural (SUPERDIC) do Fórum de Ciência e Cultura  (FCC) para compor as atividades  da exposição “Futuros da Baía de Guanabara”. A partir de diferentes saberes artísticos, tendo como paradigma o meio ambiente marcado pelos territórios da Baía, produzimos uma programação que refletisse sobre os conflitos espargidos. Em tempo, importa colocarmos uma questão fundamental: os sentidos que abarcam o termo cultura. O vocábulo tem sua origem na ideia de cultivar, habitar, cultuar, a partir do verbo latino “colere”. Cultura é pois um dimensionamento do mundo em que habitamos e que nos possibilita uma incessante investigação, porque nos instiga a existir, nos faz questionar, nos faz pensar e produzir. A partir daí, todos os saberes produzidos pelo homem são cultura, onde co-pertencem tanto os conhecimentos artísticos quanto os científicos.

Entretanto, é comum pensarmos cultura como se a ela não pertencesse a ciência. Além disso, o prestígio do código escrito e o rigor do método colocam a ciência hegemonicamente em um status de maior valoração na sociedade. A partir desta reflexão, a SUPERDIC comprometeu-se com a visibilidade deste paradigma: arte, ciência enquanto culturas, discutindo as suas diferenças e hierarquias mascaradas pelos diversos usos simbólicos do termo cultura. Sendo assim, a proposta apresentada pela SUPERDIC buscou ecoar a aproximação entre esses campos de saberes, valendo-se do campo teórico da ecomusicologia, entendendo a música, o meio ambiente, a ciência, a economia e a natureza como elementos interligados. Segundo Titton, 

O novo campo da ecomusicologia combina a ecocrítica com a (etno)musicologia. Essa junção irá permitir o estudo da música, cultura, som e natureza num momento de crise ambiental. Até agora, a maioria dos ecomusicólogos tem aceitado a natureza como algo real, externo e objetivamente conhecível. Porém, a teoria crítica, as chamadas guerras da ciência e uma mudança de paradigma dentro da ecologia têm apresentado desafios sérios ao realismo científico, aos ecossistemas equilibrados e à racionalidade econômica que tem causado a degradação do meio ambiente. Seguindo em frente, os ecomusicólogos podem enfrentar estes desafios através de uma construção ecológica da natureza baseada numa epistemologia relacional de diversidade, interligação e co-presença. Desta maneira, a ecomusicologia pode trabalhar de forma significativa para a sustentabilidade da música dentro da paisagem sonora da vida no planeta Terra. (TITTON, 2013, p.1)2

Entender o meio ambiente é entender as relações possíveis e sustentáveis a partir das trocas e fluxos que ocorrem entre os seres viventes, incluindo nesse sentido a fauna (o homem também), a flora, e não viventes, os recursos minerais e a água. Nesse sentido, entendemos que a música no meio ambiente pode transformar de forma positiva o espaço, numa troca vantajosa, pois possibilita a comunicação e o encontro do homem no seu meio natural, sacralizando o espaço natural a partir das estruturas sonoras simples e complexas da música que dialogam e se fazem co-pertencer aos sons produzidos por outros seres viventes presentes no próprio meio.

Propusemos algumas ações como apresentações musicais e ações pedagógicas que relacionassem a cultura e a sustentabilidade em um só tempo. Foi sugerido um formato diversificado, apresentando atividades como: a oficina “O Gualaxo vive? Por um Gualaxo Vivo!” E a apresentação da “Cantata do Gualaxo do Norte”, as atividades artístico-culturais “Preservação Cultural, Ambiental e Social”, com apresentação do grupo “Violões da UFRJ”, a Apresentação “Guanabara de Música e Inovação”, com o grupo “Tira o Dedo do Pudim”, o recital “A Era de Ouro do Rádio”, com os irmãos Saulo e Giuseppe Laucas, Recital e oficina do grupo UFRJ In-Versos e “Pelos Mares da Vida: Fragmentos”, com a Companhia Folclórica do Rio – UFRJ.

O público, ainda incipiente do pós-pandemia, mostrou-se participante e dialógico às atividades sugeridas. Através das oficinas, ouvimos a comunidade participante e, junto a ela, compomos músicas e refletimos sobre a Baía de Guanabara, suas riquezas e conflitos: conversamos sobre pássaros, presentificados na estridência da maritaca; peixes; sobre o pescador e sobre as barcas; sobre o som das ondas e da percussão, ecoadas nos festejos do entorno, e também nos ruídos da poluição sonora como a buzina de carros e navios, os burburinhos, os motores. Tratamos também sobre sons assustadores, como dos tiros e dos helicópteros… Esse diálogo propiciou uma transformação fundamental, pois, tanto na comunidade acadêmica quanto na externa, instigou maneiras para enfrentarmos os seus certames e para proteger os seus patrimônios sonoros e ambientais.

Esperamos ter contribuído para a discussão da Baía de Guanabara e seu futuro, por um viés que reune a cultura, enquanto arte e ciência, inspirando-nos pelos dizeres de Manuel de Barros:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam3

Procuramos “escutar aos sabiás que divinam”; pensamos a cultura enquanto ciência e arte que, de forma integrada,  manifestam a  presença humana e sua relação com o mundo através de sua produção, presente nos diferentes saberes evocados pela Baía de Guanabara, abrindo-nos ao futuro.

Notas

  1. Informação disponível em https://www.rio.rj.gov.br/web/irph/sitio-unesco, acesso em 13/06/2023. [voltar]
  2. TITTON, Jeff Todd. The nature of ecomusicology. Música e Cultura: revista da ABET, vol. 8, n. 1, 2013. [voltar]
  3. BARROS, Manoel. Livro sobre nada. 4a ed. Rio de Janeiro: Record, 1997 [voltar]
Andrea Adour

Mestre em Música/Canto pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi Professora efetiva da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente, é Professora Associada do Departamento Vocal da Escola de Música da UFRJ e Professora Permanente do Programa de Pós Graduação em Música (PPGM) na UFRJ. Coordena o projeto e grupo de pesquisa e extensão Africanias, tema que pesquisa desde 2004. Na UFRJ, atuou como Chefe de Departamento, Coordenadora da Licenciatura, Diretora de Graduação, Diretora de Extensão e Vice-Diretora. Coordenou o Projeto Ópera na UFRJ entre 2014 e 2022. Atualmente atua como Superintendente de Difusão Cultural no Forum de Ciência e Cultura. Como intérprete, privilegia o repertório camerístico dos séculos XX e XXI, integrando há 27 anos o Duo Adour (violão e voz) e o Duo Rio de Ouro com o pianista Cesar Maia Buscacio (UFOP), com quem desenvolve pesquisa sobre as Sonoridades Históricas. Contato: andreaadour@musica.ufrj.br

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