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A guerra dos Mundos, por Michel Deguy

Michel Deguy, 22/07/2020

Foto de Burst no Pexels

Nesta tradução inédita para o português da crônica “La guerre des Mondes”, filmes assistidos nas noites de confinamento são o pano de fundo para a discussão sobre morte e mortalidade, fim e niilismo na condição humana

Frequentemente, nas noites de confinamento, assistimos a um filme na TV, meio ao acaso. O western retorna, e a morte nesse western.

Morte indolor, sem importância: às centenas, os índios são fuzilados a galope; às dezenas, os homens da lei são crivados de flechas. A carnificina americana, coast to coast, massacrará os negros, depois dos autóctones; em seguida o norte e o sul, em “secessão”, se entrematam.

Com Whitman, o horror começa a ser percebido. O amor (no sexo) não seca o ódio, mas o escande e faz crescer. A morte por lança-chamas dos japoneses e dos viets fará de Hollywood a primeira indústria do soft-power “cultural” americano.

O grande espetáculo de humanos meio-mortos exterminados – a imagem dos escalpelados vivos descarnados exsanguinados, desmusculados, dessexuados de pé numa vala comum, perecendo, titubeando aos milhares na lama – começa em meados do século XX com os filmes sobre Hiroshima e a “liberação dos campos”, e, mais do que todos, sobre Auschwitz.

Os homens, mortais, descobriram – como os burgueses alemães arrastados à força para visitar os crematórios a fim de que sentissem e ressentissem o cheiro da morte que não tinham sentido em seus subúrbios – que não se trata apenas de “nós, civilizações mortais”, mas que a humanidade poderia muito bem acabar consigo mesma.

Essa iminência nunca deixou de pairar, e a ameaça já está a cinco (ou a três) para meia-noite. As dezenas de milhares de bombas termonucleares ao alcance do botão se acumulam – FIM – prontas em seus silos e no fundo dos mares.

Apenas a Alemanha e o Japão haviam renunciado à arma letal. Os Senhores da morte pulularam, e os pequenos têm a mesma potência que os grandes, Kim ou Netanyahu, como Trump ou Xi, Modi ou Putin.

Obama, no Cairo, há onze anos, foi o único a lembrar que somente o desarmamento geopolítico global tornaria possível um outro fim que não o do Inverno nuclear, mais provável que o do aquecimento global. Agora está estabelecido que esse desarmamento não ocorrerá – assim como Ghandi não conseguiu extirpar da cabeça dos assassinos a obsessão por seu assassinato. Trump não é o único responsável, é claro. Mas a paranoia e a debilidade intelectual desse presidente louco (“America first”) é a causa do rebaixamento imprevisível dos Estados Unidos, o que reduz ainda mais as chances de uma organização mundial.

Robert Antelme falava da “espécie humana”. É hoje no plural que devemos considerar esse termo: como se as espécies humanas, que são enumeráveis1, fossem entre si tão heterogêneas quanto as animais. O sonho da mestiçagem e da adoção não dissipará o pesadelo da inacessibilidade do Gênero … O “gênero”? “Gender”? A questão não é mais a das diferenças sexuais e do transgênero. Mas, antes, a da animalidade humana, e da pulsão de morte, psicanalizável, decaindo da crueldade à ferocidade. Como se “em algum lugar” a identidade humana permanecesse irredutível à ficha biológica do DNA – insolúvel na “Gestell”. Todo mundo diz “meu DNA, seu DNA”… Mas não é um Mesmo científico que anularia as alteridades.2

*

De “fim de” em “fim de”, terminamos por terminar. “Finalmente”, a hominização só terá durado algumas dezenas de milênios?

  • Fim da morte? Esse objetivo último da Pesquisa programa o fim do conviver.
  • Fim da procriação? A igualdade homem-mulher (cuja “paridade” terá sido a agradável premissa) requer a desuterização das mulheres.
  • Fim do trabalho? O fim do apartheid entre a força de trabalho e os que dão ordens (a cozinheira e o maestro) externaliza o regime “Law and Order” como Autômato supremo sem sujeito; fim do Leviatã, até mesmo no planeta China. O sem-fim (atélico) e o sem-fim (eterno presente) se sinonimizam.
  • Fim das línguas; fim da arte, transmutada em cultural multiculturalista monotonizado no Triturador mundial da “música”, da performance e da instalação.
  • Fim do sonho “Cohn-Bendit”; ou da democracia em tréguas de compromissos negociados. Por quê? Porque os adversários são inimigos que compartilham “os mesmos valores”.

Quando dois inimigos se encaram no espelho, estão em enantiomorfia: não podem ser superpostos, cada um é a imagem inversa do outro. Seria “necessário” que o mesmo fosse exterior a ambos para que um acordo a seu respeito fosse encontrável: uma meta comum diante dos dois. Um desejável inacessível para ambos: e não “o mesmo”. Escutemos as potências inconciliáveis:3 cada uma quer a paz, a prosperidade, na “transparência” da mesma boa-fé sem “segundas intenções”.4 Mas logo a trégua é rompida pelo outro,5 que não “respeitou os valores”.

A crença “Cohn-Bendit” baseava-se em duas condições:

a) somos todos o que não somos, por exemplo, “todos judeus alemães”;

b) podemos nos pôr à mesa em extraterritorialidade.

*

Se concluir o niilismo é a tarefa, seu impulso (o da energia do desespero) a transporta da constatação de que “não temos nada em comum” para esse opcional “temos o Nada em comum”. Mas como desdobrar convivialmente essa condição, que poderíamos chamar de “mallarmeana”?

O Nada em comum é o que preserva as espécies animais em seu lado a lado. Nada – exceto o ar e a alimentação. A gaivota e o tubarão não incomodam muito um ao outro; nem a girafa e o leopardo. Vida comum, mas sem mundo comum: sem guerra dos mundos.

A Esperança de comissões “Verdade e reconciliação” comparáveis à mudança de eixos na matemática para um novo ponto O, ou origem? Origem do gênero não darwiniano…

Mas o niilismo realizado abandona por demais a alteridade… Como compô-lo com a intuição e a resolução de Lévinas? A condição humana assumida, como o romancista a chamava, requer os saberes antropológicos em que a alteridade dos outros insiste infinitamente … na esperança de acabar com a guerra dos mundos.


Original publicado em 4 de maio de 2020.

Notas

  1. Há muito mais espécies humanas do que raças e muito menos do que línguas, e mais do que nações. Seu mapa pode ser traçado. [voltar]
  2. A alteridade, não solúvel na amizade nem no amor. “Quem és?”, perguntavam a fé e sua teologia. “O incognoscível”? Não Deus, mas sua imagem, o Homem. [voltar]
  3. Kant: o rei da França e o imperador da Áustria querem a mesma coisa: Milão. [voltar]
  4. Reler as páginas de Jacques Derrida sobre a promessa e a crença, em Foi et savoir, região das páginas 88-98. [voltar]
  5. Rússia/Ucrânia; e passim. [voltar]
Michel Deguy

Poeta, filósofo e professor emérito da Universidade de Paris 8. É autor de inúmeros livros de poesia e de ensaios e editor da revista Po&sie (https://po-et-sie.fr/), fundada por ele em 1977. Presidiu o Collège International de Philosophie e a Maison des Écrivains. Recebeu importantes prêmios literários franceses, entre os quais o Grand Prix National de Poésie (1989), o Grand Prix de Poésie de l’Académie Française (2004) e o Prix Goncourt de Poésie (2020).

Traduzido por Marcelo Jacques de Moraes

Professor de Literatura Francesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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