Nos vários textos que compõem “A caminho do Fundão”, Godofredo de Oliveira Neto traz um retrato particular do cotidiano na Universidade. Nesta crônica inédita, um congresso realizado na Faculdade de Letras, uma professora aposentada por problemas mentais e um particular objeto encontrado nas casas cenário dos romances de Machado de Assis são os elementos para a narrativa de um acontecimento pouco comum
Já tinha, de fato, ouvido falar que ela não batia bem. Mas era uma pesquisadora de mão cheia, uma das maiores especialistas do mundo em energia solar, orgulho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas endoidecera. Uma pena. E por qual razão ela apareceu na Letras ninguém nunca soube. Bando de imbecis, vociferou do fundo do auditório E1. Cem cabeças se viraram, assustadas, perguntando quem é essa aí? A resposta não demorou saiu. Dois rapazes fortes, de jaleco branco, entraram às pressas no auditório e foram céleres até ela. Gentilmente a empurravam para fora. Um tinha as duas mãos nas suas costas, o outro a segurava pelo ombro direito. Ela saiu à sorrelfa do Pinel, explicou o enfermeiro mais velho. Acho que usou à sorrelfa porque viu a palavra Letras na entrada da Faculdade e imaginou que era jogo falar bonito. A professora aposentada por problemas mentais (soube-se depois) saiu devagarzinho, falando sem parar. O que ela ensinou em voz alta deixou todos pasmos: se tinha escarradeira nas casas cenário dos romances de Machado, vocês acham que não tinha um jeito de usá-las, bando de babacas? As moças diziam olha lá o fulano vai cuspir, ele fica lindo cuspindo na escarradeira, não é como esses pobretões que cospem sem estilo, ele puxa o catarro lá de baixo, dá uma rabanada com os cabelos e manda ver. Senão não teria escarradeira com friso de ouro, bando de imbecis! É a estética.
Silêncio na sala. O Congresso Loucura e Literatura se encerrava no silêncio do escracho. Depois foi a mesma coisa do Congresso anterior, já comentado na vez passada. Almoço no Fiorentina, no Leme, o mar pertinho, lindo. Dez pessoas à mesa, onze comigo. A frase da professora pirada estava dentro dos onze. O estudo da obra deve ultrapassar o triângulo obra, autor e psicanálise, berrou uma professora engraçadinha recém ingressa na Universidade. Como sempre falei para os alunos que os fantasmas na obra de arte são gerados por ela própria e ela não é o locus de projeção dos grilos do autor, caí na asneira de criticá-la: Você está equivocada, minha amiga. A frase, confesso, saiu arrogante, professoral, logo me arrependi. Ela, para minha surpresa, subiu nas tamancas: Intelectualzinho de m…, respondeu, espumando. Meu Deus, aquela jovem afetuosa, cortês, meiga, querida, de repente aquela reação! Terá a pesquisadora de energia solar do Pinel mexido com a cabeça da gente?
Me calei, claro, vi o estrago que podia sair dali. Ninguém abriu a boca. O macarrãozinho com frutos do mar, o prato do convênio da UFRJ com a Fiorentina, era mais gostoso do que aquela discussão chata. Pedi desculpas mas não me dei por vencido e repeti, dessa vez em tom de pergunta: A literatura é o espelho dos grilos do escritor ou o texto cria fantasmas novos conforme a trama do romance?
Então, não sei se vocês já passaram por isso, você o errado, o vilão: vinte pupilas, de cor indefinida, me responderam como seres de outro planeta ou espíritos malignos. De cada uma delas vinha um raio difuso, ofuscante, algo ruim, de dar medo. Tive a clara sensação de que os fantasmas se criaram ali na mesa e a mesa não foi espelho dos grilos anteriores da galera. Olhei em volta, não há mais escarradeiras no século XXI, claro. Como ficariam aqueles colegas cuspindo? Mais bonitos, mais feios, mais elegantes?
P.S.: a nova colega na Casa pediu desculpas à noite por telefone. Disse que foi como se um espírito tivesse tomado conta dela, ainda brincou. Estamos juntos, respondi.
Texto original publicado em 7 de agosto de 2020.
- Godofredo de Oliveira Neto
Professor Titular de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ. Cronista e romancista com quinze livros publicados, entre os quais: O bruxo do Contestado (1996), Menino oculto (2005), Amores exilados (2011), Marcelino (2008), A ficcionista (2013) e Grito (2016). Escreve periodicamente a crônica “A caminho do Fundão”. E-mail: godolive@uol.com.br.