O mundo em 2050 – e além

Martin Rees, 23/09/2020

Guerra nuclear, mudança climática, biotecnologia, inteligência artificial e aventura espacial são alguns dos temas abordados neste artigo inédito em que o mundialmente renomado cientista e autor Martin Rees traz novas previsões sobre o futuro do planeta e da humanidade para as próximas décadas

Neste artigo vou especular sobre as próximas décadas – claro que com certa modéstia. Cientistas carregam um histórico fraco como videntes – tudo que podem alegar é que são melhores do que os economistas. Então minhas previsões serão bastante cautelosas. Elas se basearão no meu livro recente On the future: prospects for humanity, em que ofereço uma mistura de otimismo científico e pessimismo político.

[…] nossa Terra tem existido por 45 milhões de séculos. Mas este século é especial: é o primeiro em que uma espécie, a humana, controla o destino do planeta. Estamos mergulhados no antropoceno. Humanos possuem uma pegada coletiva cada vez mais pesada sobre o planeta – suficiente para alterar toda a biosfera.

O tema do livro é este: nossa Terra tem existido por 45 milhões de séculos. Mas este século é especial: é o primeiro em que uma espécie, a humana, controla o destino do planeta. Estamos mergulhados no antropoceno. Humanos possuem uma pegada coletiva cada vez mais pesada sobre o planeta – suficiente para alterar toda a biosfera. Nosso mundo é tão interconectado que nossos sistemas de suporte – financeiro, alimentar, comunicativo e de transporte aéreo – abrangem todos os continentes. E, assim como nos tornamos dolorosamente conscientes com a disseminação da Covid-19, essa conectividade significa que pandemias, apesar de terem ocorrido com impactos devastadores ao longo da história humana, podem agora espalhar infecções globalmente na mesma velocidade de uma aeronave e transportar o mundo inteiro a uma quase paralisia. Além disso, estamos vulneráveis a novas ameaças globais que não são naturais, mas são as desvantagens de tecnologias cada vez mais poderosas – biotecnologia, cibernética e inteligência artificial. Avanços tecnológicos podem ser extremamente benéficos – de fato, sem eles nunca haveria prosperidade para uma população mundial em constante crescimento. Mas se essas tecnologias forem mal aplicadas, elas podem produzir contratempos catastróficos para a civilização.

Faz 75 anos desde que o bombardeio de Hiroshima inaugurou a era em que a tecnologia nuclear configurou uma ameaça global. Na era da Guerra Fria – quando o nível de armamento escalou para além de toda razoabilidade – as superpotências poderiam ter esbarrado no Armagedom por confusão ou erro de cálculo. Foi a era dos “abrigos nucleares”. Durante a crise dos mísseis de Cuba, meus estudantes e eu participamos de vigílias e manifestações. Mas ficaríamos ainda mais assustados se tivéssemos verdadeiramente percebido o quão perto estávamos da catástrofe. Mais tarde, o presidente Kennedy foi citado como tendo dito que as probabilidades estavam “algo entre um em três”. E apenas depois de estar aposentado por muito tempo que Robert McNamara, então secretário de Defesa dos EUA, declarou francamente que: “chegamos a um passo da guerra nuclear sem perceber. Não é nenhum crédito para nós que tenhamos escapado – Khrushchev e Kenedy tiveram sorte e prudência”.

Muitos na Europa e nos Estados Unidos agora afirmam que a dissuasão nuclear funcionou. Até certo ponto, funcionou. Mas isso não significa que era uma política prudente. Se você joga roleta-russa com uma ou duas balas no cilindro, é mais provável que você sobreviva do que não; mas os lances precisariam ser surpreendentemente altos – ou o valor que você atribui a sua vida excessivamente baixo – para ser uma aposta prudente. Aqueles de nós na Europa e na América do Norte fomos arrastados para essa aposta ao longo da Guerra Fria – e, se o “inverno nuclear” tivesse sido acionado, também poderia ter ocorrido uma perturbação maciça no hemisfério sul.

[…] existem agora nove potências nucleares, e uma chance maior do que nunca de que arsenais nucleares menores sejam usados regionalmente, ou mesmo por terroristas. Além disso, não podemos descartar, mais adiante neste século, um realinhamento geopolítico direcionando para um impasse entre novas superpotências.

A aniquilação nuclear ainda paira sobre nós: o único consolo é que, graças aos esforços de controle de armas entre as superpotências, existem hoje muito menos armas do que durante a Guerra Fria – a Rússia e os Estados Unidos têm cerca de sete mil – e poucas estão sob alerta de lançamento.

No entanto, existem agora nove potências nucleares, e uma chance maior do que nunca de que arsenais nucleares menores sejam usados regionalmente, ou mesmo por terroristas. Além disso, não podemos descartar, mais adiante neste século, um realinhamento geopolítico direcionando para um impasse entre novas superpotências. Uma nova geração pode enfrentar sua própria “Cuba” – e uma que pode não se sair tão bem (ou com menos sorte) do que a crise de 1962. Uma ameaça nuclear sobre a própria existência está apenas em suspenso.

Armas nucleares são baseadas na ciência do século XX. Na terceira cessão vou focar na ciência do século XXI – biotecnologia, cibernética e inteligência artificial – que oferecem um grande potencial de benefícios, porém criam vulnerabilidades. Mas primeiro vamos nos debruçar brevemente sobre como nosso mundo está sendo ameaçado pela pegada, nunca antes tão pesada, da humanidade sobre a biosfera.

O impacto coletivo da humanidade

Ainda que com uma bola cristal nebulosa, existem tendências globais que podemos prever. Por exemplo, o mundo está se tornando mais populoso. Cinquenta anos atrás, a população mundial estava em torno de 3,5 bilhões. Hoje está em torno de 7,8 bilhões. O crescimento ocorreu principalmente na Ásia; sendo agora mais rápido na África.

O número de nascimentos por ano está realmente diminuindo na maioria dos países. No entanto, a previsão é de que a população mundial suba para cerca de 9 bilhões em 2050. Isso por conta de a maioria das pessoas nos países em desenvolvimento serem jovens. Elas ainda terão seus filhos e viverão mais tempo. O histograma da idade nos países em desenvolvimento se tornará mais parecido com o da Europa. Além disso, a transição demográfica ainda não ocorreu na África.

O crescimento populacional me parece pouco discutido. Em parte, talvez, por conta de sua associação com a eugenia, as políticas da Senhora Gandhi, e a política de filho único na China. Mas também porque as previsões apocalípticas – propostas, por exemplo, por Paul Erlich e pelo Clube de Roma – se provaram incorretas. Como se viu, a produção de alimentos acompanhou o crescimento populacional; a fome ainda ocorre, mas deve-se a conflitos ou má distribuição, e não à escassez geral.

Alimentar 9 bilhões deveria ser possível. Mas para que isso aconteça sem que se prejudiquem florestas naturais, e sem emissão excessiva de CO2 por ruminantes pastando, vamos precisar, por todo o planeta, de uma agricultura ainda mais desenvolvida – plantio direto, conservação de água e transgênicos.

Alimentar 9 bilhões deveria ser possível. Mas para que isso aconteça sem que se prejudiquem florestas naturais, e sem emissão excessiva de CO2 por ruminantes pastando, vamos precisar, por todo o planeta, de uma agricultura ainda mais desenvolvida – plantio direto, conservação de água e transgênicos. Talvez também haja necessidade de inovações alimentares: converter insetos – altamente nutritivos e ricos em proteínas – em alimentos palatáveis e comer carne artificial. Para citar Mahatma Gandhi, haverá o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a voracidade de todos.

Os dados demográficos para além de 2050 são incertos – não está claro se a população global continuará a crescer ou se vai começar a cair (como já ocorre, por exemplo, no Japão e em partes da Europa). O declínio da mortalidade infantil, a urbanização e a educação das mulheres desencadeiam uma transição em direção a taxas de natalidade ainda menores – mas poderia haver influências culturais contrárias que mantenham a taxa de natalidade alta. Se, por qualquer motivo, famílias na África permanecerem grandes, então a população desse continente poderia dobrar novamente em 2100, para 4 bilhões. Só a Nigéria teria então uma população tão grande quanto a da Europa e a da América do Norte juntas.

Otimistas dizem que cada nova boca traz duas mãos e um cérebro. Porém, as tensões geopolíticas são certamente preocupantes. Quanto maior a população se torna, maior será a pressão sobre os recursos. E mais difícil será para a África escapar da “armadilha da pobreza”. Aqueles em países pobres agora sabem, via internet, o que estão perdendo – eles não são fatalistas sobre a injustiça de seu destino. E a migração se torna mais fácil. Além disso, o desenvolvimento da robótica, e o remanejamento de manufaturas, significa que países ainda pobres não serão capazes de desenvolver suas economias oferecendo trabalho qualificado barato, como os Tigres Asiáticos fizeram. É um presságio para descontentamento e instabilidade – múltiplas megaversões das trágicas embarcações que cruzam o Mediterrâneo hoje do Norte da África para Europa.

E outra coisa: se a marca coletiva da humanidade pressionar muito, o “choque ecológico” resultante poderia causar extinções em massa – estaríamos destruindo o livro da vida antes de termos lido. A biodiversidade é um componente crucial do bem-estar da humanidade. Ficaremos claramente prejudicados se os estoques de peixes se reduzirem à extinção; existem plantas na floresta tropical cujo gene poderia ser útil para nós. E insetos são cruciais para a cadeia alimentar e a fertilização. Mas para muitos ambientalistas, preservar a riqueza de nossa biosfera tem valor por si só, além do que significa para muitos de nós, humanos. Para citar o grande ecologista E. O. Wilson: “Extinção em massa é o pecado pelo qual gerações futuras menos nos perdoarão por termos cometido”.

[…] se a marca coletiva da humanidade pressionar muito, o “choque ecológico” resultante poderia causar extinções em massa – estaríamos destruindo o livro da vida antes de termos lido. A biodiversidade é um componente crucial do bem-estar da humanidade.

Mais ainda, essas pressões ambientais são agravadas pelas mudanças climáticas – uma questão que não é pouco discutida, embora ainda pouco abordada. A concentração de CO2 no ar está em ascensão, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis. O quinto relatório do IPCC (atualizado em 2018) apresentou uma série de projeções, para diferentes suposições sobre taxas futuras de uso de combustíveis fósseis (e aumentos associados na concentração de CO2). Ainda é incerto o quanto os efeitos climáticos do CO2 são amplificados por mudanças associadas no vapor de água e nas nuvens – essa é uma incerteza em todos os modelos climáticos, embora esteja sendo reduzida por avanços na física das nuvens e maior poder computacional. Podemos esperar atualizações a tempo para a conferência COP26 no Reino Unido em 2021.

Contudo, apesar das incertezas, existem três mensagens com as quais a maioria pode concordar:

  1. O impacto de eventos de “clima extremo” – tornados, ondas de calor, etc. – estão se tornando piores.
  2. As rupturas regionais nos padrões climáticos nos próximos 20-30 anos agravarão as pressões sobre alimentos e água e aumentarão a pressão de migração.
  3. No cenário de continuidade das políticas vigentes, não podemos descartar, no final do século, um aquecimento realmente catastrófico e momentos críticos desencadeando tendências de longo prazo, como o derretimento da calota polar na Groenlândia.

Mas mesmo aqueles que aceitam essas declarações têm opiniões divergentes sobre responsabilidade política. As divergências decorrem de diferenças na economia e na ética – em particular, em quanta obrigação devemos sentir para com as gerações futuras.

O ativista dinamarquês Bjorn Lomberg é conhecido como bicho-papão entre os ambientalistas – um tanto injustamente, já que ele não contesta a ciência. Seu Consenso de Economistas de Copenhague minimiza a prioridade de se abordar mudanças climáticas em comparação com os esforços de curto prazo para combater a pobreza no mundo. Mas isso é porque ele aplica uma taxa de desconto “padrão” – e, na verdade, ignora o que vai acontecer depois de 2050. Mas se levarmos em consideração aqueles que viverão até o século XXII e além, então, como economistas como Stern e Weitzman argumentaram, podemos dizer que vale a pena pagar um seguro agora, para proteger essas gerações contra o pior dos cenários.

Então, mesmo aqueles que concordam que há um risco significativo de catástrofes climáticas daqui a um século vão diferir em quão urgente eles defendem que tomemos uma atitude hoje. A avaliação dependerá das expectativas de crescimento futuro e do otimismo sobre as soluções tecnológicas. Mas, acima de tudo, depende de uma questão ética: ao otimizar as chances de sobrevivência das pessoas, devemos discriminar com base na data de nascimento?

[…] mesmo aqueles que concordam que há um risco significativo de catástrofes climáticas daqui a um século vão diferir em quão urgente eles defendem que tomemos uma atitude hoje. A avaliação dependerá das expectativas de crescimento futuro e do otimismo sobre as soluções tecnológicas

(Como parêntesis, devo observar que há um contexto político no qual uma taxa de desconto essencialmente zero é aplicada – descarte de lixo radioativo, onde os depósitos são necessários para evitar vazamentos por 10 mil ou até mesmo um milhão de anos –, um tanto irônico quando não podemos planejar o resto da política energética mesmo com 30 anos de antecedência.)

O momento para uma ação urgente para lidar com as mudanças climáticas é incontornável. Mas políticos não ganharão muita repercussão defendendo sacrifícios agora – quando os benefícios se acumulam principalmente em partes distantes do mundo e décadas no futuro.

A não ser que exista um clamor proveniente dos votos, governantes não vão priorizar medidas cruciais para as gerações futuras. Para sustentar esse clamor precisamos de campanhas efetivas – alistando indivíduos carismáticos para mudar a mentalidade do público. Por exemplo, a encíclica papal Laudato Si facilitou o caminho para o consenso na conferência sobre o clima de Paris em 2015. O Papa foi aplaudido de pé na ONU. Ele tem um bilhão de seguidores, principalmente na América Latina, na África e no Leste Asiático, e não há como negar o alcance global da Igreja, a visão de longo prazo e a preocupação com os pobres no mundo. E é encorajador testemunhar mais ativistas entre os jovens – eles esperam viver até o final do século. Sua campanha é bem-vinda. Seu compromisso é motivo de esperança.

É claramente um desafio livrar o mundo da dependência de combustíveis fósseis, especialmente quando nações menos desenvolvidas têm uma necessidade manifesta por maior produção de energia per capita e podem alegar com razão que não causaram o problema.

É claramente um desafio livrar o mundo da dependência de combustíveis fósseis, especialmente quando nações menos desenvolvidas têm uma necessidade manifesta por maior produção de energia per capita e podem alegar com razão que não causaram o problema. Mas, mesmo com essa perspectiva desafiadora, há um roteiro benéfico para todos em direção a um futuro de baixa produção de carbono. As nações devem – de preferência colaborativamente – expandir a pesquisa e o desenvolvimento de todas as formas de geração de energia de baixo carbono e sobre outros avanços tecnológicos cujo desenvolvimento é igualmente crucial, especialmente a respeito de armazenamento (baterias, hidrogênio, armazenamento por bombagem) e redes inteligentes. Quanto mais rápido essas tecnologias “limpas” avançam, mais cedo seus preços vão se tornar acessíveis para, por exemplo, a Índia, onde mais capacidade de produção será necessária, onde a saúde dos pobres é ameaçada por fogões com fumaça que queimam lenha ou esterco e onde, de outra forma, haveria pressão para construir usinas elétricas a carvão.

Seria difícil pensar em um desafio mais inspirador para jovens engenheiros do que conceber sistemas econômicos de energia limpa para o mundo.

Tecnologias do século XXI: oportunidades e riscos

Devemos ser devotos de novas tecnologias – sem elas o mundo não pode prover energia limpa para uma população em expansão e com uma demanda crescente, sem comida suficiente, nem saúde melhor. Mas tecnologia deve ser sabiamente direcionada. Na verdade, muitos estão ansiosos que a biotecnologia, a cibernética e a robótica estejam avançando de forma tão imprevisível que talvez não possamos lidar adequadamente – e teremos uma jornada acidentada ao longo deste século.

O progresso esplêndido da microbiologia oferece perspectivas de conter pandemias e melhorar a saúde e a produção de alimentos. Mas este mesmo progresso fortalece preocupações sobre a segurança dos experimentos e a disseminação de “conhecimento perigoso”, bem como nos confronta com dilemas éticos.

Por exemplo, em 2012, grupos nos EUA e na Holanda mostraram que era surpreendentemente fácil tornar o tão estudado vírus influenza mais virulento e transmissível. Esses pesquisadores argumentaram que seria vantajoso para o desenvolvimento de vacinas estar um passo à frente da mutação natural. Mas esse tipo de pesquisa levanta preocupações sobre um possível erro (liberação acidental de patógenos do laboratório) ou mesmo terrorismo internacional. O governo federal estadunidense estava tão preocupado que parou de financiar esses experimentos de “ganho de função” por vários anos. Felizmente, o coronavírus é mais complexo e não pode ser “projetado” – mas tem-se o pressentimento de que algum dia isso também será possível.

As novas técnicas de edição de gene CRISPR Cas 9 são extremamente promissoras, mas elas já levantaram preocupações éticas – por exemplo, sobre experimentos chineses modificando embriões humanos. E há muita ansiedade sobre as possíveis consequências incontroláveis de programas de “estímulo genético” para exterminar espécies, tornando-as estéreis – embora devamos certamente acolher, por exemplo, tentativas cuidadosamente planejadas para eliminar a espécie de mosquito que carrega o Zika vírus.

O progresso esplêndido da microbiologia oferece perspectivas de conter pandemias e melhorar a saúde e a produção de alimentos. Mas este mesmo progresso fortalece preocupações sobre a segurança dos experimentos e a disseminação de “conhecimento perigoso”, bem como nos confronta com dilemas éticos.

Os governos (especialmente a União Europeia) estão adotando uma atitude rigorosa e cautelosa em relação à biotecnologia – indevidamente, do meu ponto de vista, pois isso impede, por exemplo, a edição de genes de plantações, o que reduziria a necessidade de pesticidas. Mas algumas técnicas potenciais, especialmente quando aplicadas a humanos, são manifestamente perigosas ou antiéticas. Eu me preocuparia que quaisquer regulamentos que sejam impostos não possam ser cumpridos em todo o mundo – não mais que as leis de drogas podem, ou as leis fiscais. O que quer possa ser feito será feito por alguém, em algum lugar. E isso é um pesadelo. Considerando que uma bomba atômica não pode ser construída sem instalações conspícuas para fins especiais que podem ser inspecionadas e monitoradas, a biotecnologia envolve equipamentos de dupla utilização em pequena escala. Na verdade, o biohacking está crescendo até mesmo como um hobby. (E há preocupações semelhantes no avanço rápido da ciência da computação: a “corrida armamentista” entre os hackers e a segurança cibernética se tornará mais cara e vexatória – essa é uma desvantagem do avanço da inteligência artificial.)

A aldeia global terá seus idiotas, e suas ações podem ter impacto global. A crescente capacitação de grupos de especialistas em biotecnologia representará um desafio intratável para os governos e agravará a tensão entre a liberdade, a privacidade e a segurança. É uma máxima que “o desconhecido não é o mesmo que o improvável”.

Deixe-me oferecer mais algumas reflexões sobre redes de computador e a inteligência artificial. É claro que é a velocidade dos computadores que lhes permite ter sucesso por métodos de “força bruta”. Eles aprendem a traduzir lendo milhões de páginas de texto multilíngue. E se eles apenas recebem as regras de um jogo como xadrez ou Go, levam-se apenas algumas horas até que eles aprendam o suficiente, jogando milhares de jogos contra si mesmos, para vencer um campeão mundial.

É bem conhecido que haverá grandes perturbações no mercado de trabalho. Os robôs assumirão grande parte da fabricação e distribuição no varejo. As máquinas também podem complementar, se não substituir, muitos empregos de colarinho-branco: trabalho jurídico de rotina, contabilidade, codificação de computador, diagnósticos médicos e até cirurgias.

Consequentemente, a inteligência artificial pode lidar melhor do que humanos com redes complexas que mudam rapidamente – fluxo de tráfego ou redes elétricas. Os chineses poderiam administrar uma economia planejada eficiente com a qual Marx apenas poderia sonhar.

É bem conhecido que haverá grandes perturbações no mercado de trabalho. Os robôs assumirão grande parte da fabricação e da distribuição no varejo. As máquinas também podem complementar, se não substituir, muitos empregos de colarinho-branco: trabalho jurídico de rotina, contabilidade, codificação de computador, diagnósticos médicos e até cirurgias. Em contraste, alguns trabalhos não rotineiros do setor de serviço – encanamento e jardinagem, por exemplo – estarão entre os mais difíceis de automatizar.

A revolução digital gera uma enorme riqueza para inovadores e empresas globais, mas preservar uma sociedade saudável certamente exigirá a redistribuição dessa riqueza – eu diria que deveria ser implantada para criar muitos empregos atualizados, em que a empatia humana é crucial. A maioria de nós deseja um verdadeiro cuidador quando estamos velhos e doentes; desejamos que crianças aprendam e escutem histórias contadas por pessoas reais, não autômatos. Esses empregos são vergonhosamente escassos e pouco valorizados hoje em dia. Porém, se houvesse vontade política, esse tipo de trabalho “centrado no ser humano” poderia fornecer empregos gratificantes para todos aqueles que foram deslocados de empregos entorpecentes na indústria ou na agricultura.

As implicações sociais da inteligência artificial já são ambivalentes. Torna-se mais intrusiva e abrangente. Registros de todos os movimentos, nossa saúde e nossas transações financeiras estarão na “nuvem”. Os dados podem ser usados por razões benignas (por exemplo, para pesquisas médicas ou para nos alertar sobre riscos incipiente à saúde), mas sua disponibilidade para empresas e internet já está mudando o equilíbrio de poder dos governos para conglomerados globais.

Se formos condenados a uma pena de prisão, recomendados para cirurgia ou mesmo recebermos uma classificação de crédito ruim, esperaríamos que os motivos fossem acessíveis a nós – e contestáveis por nós. Se tais decisões fossem inteiramente delegadas a um algoritmo, teríamos o direito de nos sentir desconfortáveis; mesmo se aposentados com evidências convincentes de que, em média, as máquinas tomam decisões melhores do que os humanos dos quais usurparam a posição. Haverá outras questões de privacidade. Você ficará feliz se o reconhecimento facial permitir ao governo, a um conglomerado ou mesmo a um estranho aleatório identificar você e invadir sua privacidade? Ou se os vídeos “falsos” se tornarem tão convincentes que as evidências visuais não serão mais confiáveis?

A sociedade certamente será transformada pela inteligência artificial e por robôs autômatos, mas o juízo decidirá se os robôs algum dia manifestarão as capacidades humanas e o bom senso.

Os computadores são bem-sucedidos no “aprendizado reforçado” para um grande conjunto de treinamentos. Mas aprender sobre o comportamento humano envolve observar pessoas reais em casas ou locais de trabalho reais. A máquina pareceria sensorialmente privada pela lentidão da vida real – seria como, para nós, ver as árvores crescerem. Até mesmo o programa GTA3 mais recente, que foi treinado em bilhões de páginas de texto e pode gerar trechos de texto aparentemente inteligentes, pode ser frustrado por perguntas simples sobre o mundo. Rodney Brooks (criador do robô Baxter e o aspirador de pó Roomba) pensa que por muitas décadas precisaremos nos preocupar menos com a inteligência artificial do que com a estupidez real.

Em contraste, existem entusiastas, como o futurologista Ray Kurzweil. No livro chamado The age of spiritual machines, ele prevê que os humanos irão transcender a biologia e se fundir com os computadores. A visão de Kurzweil pode ser ficção científica, mas é certamente crível que a vida
humana possa ser estendida – com consequências drásticas para as tendências populacionais e a estrutura familiar. E que nossa mentalidade e nosso físico podem se tornar maleáveis por meio de tecnologias genéticas e ciborgues – levando, se mal conduzidas, a novos e fundamentais tipos de desigualdade.

No futuro, o “design inteligente secular” nos modificará mais rápido do que a evolução darwiniana fez. Essa é uma virada de jogo. […] A natureza humana não mudou por milênios. Mas podemos ter confiança zero de que as inteligências dominantes daqui a alguns séculos terão qualquer ressonância emocional conosco […]

No futuro, o “design inteligente secular” nos modificará mais rápido do que a evolução darwiniana fez. Essa é uma virada de jogo. Quando admiramos a literatura e os artefatos que sobreviveram desde a antiguidade, sentimos uma afinidade, através de um abismo de tempo de milhares de anos, com aqueles artistas antigos e suas civilizações. A natureza humana não mudou por milênios. Mas podemos ter confiança zero de que as inteligências dominantes daqui a alguns séculos terão qualquer ressonância emocional conosco – embora possam ter uma compreensão algorítmica de como nos comportamos.

E agora me volto rapidamente para minha tecnologia favorita – a espacial. Aqui é onde certamente robôs terão um futuro, e onde mudanças acontecerão mais rapidamente e devem nos preocupar menos. Dependemos do espaço todos os dias para navegação por satélite, comunicações, previsão climática, monitoramento ambiental, etc. Microssatélites baratos em órbitas baixas abrem novos mercados comerciais para o monitoramento ambiental e para levar a internet de banda larga a regiões remotas. E, longe da Terra, enxames de minúsculas sondas, interagindo entre si como bando de pássaros, explorarão o Sistema Solar. A próxima etapa será a implementação no espaço de fabricantes robóticos, que podem construir grandes estruturas sob gravidade zero, por exemplo, coletores de energia solar ou antenas de rádio gigantes.

E quanto ao voo espacial tripulado? A maior conquista, o pouso da Apollo na Lua, parece uma história antiga para os jovens de hoje. Mas o motivo para esse empreendimento maciço foi a rivalidade de superpotências. Apollo absorveu 4% do orçamento federal dos EUA no final dos anos 1960. Tendo “derrotado os russos”, os americanos não tinham motivo para mais um “espetáculo espacial”; a participação do orçamento da NASA agora é cerca de 0,6%. Na verdade, o caso prático do voo espacial tripulado fica cada vez mais fraco a cada avanço da robótica e da miniaturização.

Se eu fosse americano, não apoiaria de forma alguma o programa tripulado da NASA; argumentaria que empreendimentos privados como Space X, de Elon Musk, e Blue Origin, de Jeff Bezos, – trazendo uma cultura do Vale do Silício para um campo há muito dominado pela NASA e algumas empresas aeroespaciais gigantes – devem “liderar” todas essas missões. Eles podem assumir riscos maiores do que um país ocidental pode impor a astronautas civis com financiamento público. Ainda haveria muitos voluntários – alguns possivelmente até aceitando “passagens só de ida”. Tais empreendimentos deveriam ser chamados de aventura espacial, não de turismo espacial.

É uma ilusão perigosa pensar que o espaço oferece uma fuga dos problemas da Terra. Nenhum lugar de nosso Sistema Solar é tão ameno quanto a Antártica ou o topo do Everest. Lidar com as mudanças climáticas na Terra é uma tarefa muito mais fácil em comparação com a terraformação de Marte.

Em 2100, corajosos caçadores de emoções podem ter estabelecido “bases” independentes da Terra. Elon Musk diz que quer morrer em Marte – mas não com o impacto.

Mas nunca espere uma emigração em massa da Terra. Nesse ponto, eu discordo de Musk e do meu falecido colega Stephen Hawking. É uma ilusão perigosa pensar que o espaço oferece uma fuga dos problemas da Terra. Nenhum lugar de nosso Sistema Solar é tão ameno quanto a Antártica ou o topo do Everest. Lidar com as mudanças climáticas na Terra é uma tarefa muito mais fácil em comparação com a terraformação de Marte. Não existe “plano B” para as pessoas avessas ao risco comum.

No entanto, devemos torcer para os aventureiros pioneiros que escapam da Terra, pois eles podem ser cosmicamente importantes. Esse é o motivo. Eles estarão mal-adaptados a um ambiente marciano. Eles terão uma motivação convincente para usar todos os recursos da genética e da tecnologia ciborgue para se adaptar; eles estarão além das garras dos reguladores terrestres que (espera-se) proibiriam essas técnicas na Terra. Seus descendentes podem, dentro de algumas gerações, se tornar uma nova espécie. São esses pioneiros, não aqueles de nós confortavelmente adaptados à Terra, que vão liderar a evolução pós-humana.

Nós, humanos, levamos cerca de 4 bilhões de anos para evoluir, via seleção darwiniana, a partir das primeiras formas de vida na jovem Terra. Mas certamente não somos o auge da evolução – talvez nem mesmo o estágio intermediário. O Sol tem 6 bilhões de anos pela frente antes de ficar sem combustível. E o universo pode se expandir para sempre – para citar Woody Allen, a eternidade é muito longa, especialmente para o fim. Há muito tempo para a descendência da humanidade – provavelmente eletrônica (e quase imortal) em vez de carne e sangue – se espalhar pela galáxia e além. Isso, claro, levanta a pergunta mais comum feita aos astrônomos: existe vida lá fora ou o cosmos está esperando por nossa progênie? Não sabemos. Esse é um tópico para um artigo diferente!

Comentários finais

Portanto, concluo focalizando novamente o momento presente. Estamos profundamente envolvidos no antropoceno. As apostas para a humanidade são maiores do que nunca – a tecnologia oferece um enorme potencial, mas traz enormes riscos. Nossa sociedade – com uma população crescente e mais exigente – é frágil, interconectada e vulnerável.

As apostas para a humanidade são maiores do que nunca – a tecnologia oferece um enorme potencial, mas traz enormes riscos. Nossa sociedade – com uma população crescente e mais exigente – é frágil, interconectada e vulnerável.

Os cientistas devem a seus concidadãos maximizar os benefícios sociais de suas descobertas e minimizar as desvantagens.

A ciência é uma cultura universal, abrangendo todas as religiões e divergências políticas. E, claro, a maioria dos desafios que abordei são globais. Contornar a potencial escassez de alimentos, água, recursos – realizando a transição para uma matriz energética de baixo carbono – não pode ser resolvido por cada nação separadamente. Nem a redução de ameaças. De fato, uma questão chave é se precisamos de mais organizações supranacionais nos moldes da OMS e da AIEA – principalmente para monitorar e restringir empresas globais cada vez mais dominantes.

A “nave espacial Terra” está voando através do vazio. Seus passageiros estão ansiosos e rebeldes. Seu sistema de suporte de vida é vulnerável a perturbações e colapsos. Mas há pouquíssimo planejamento – muito pouco mapeamento do horizonte. Precisamos pensar globalmente, precisamos pensar racionalmente, precisamos pensar a longo prazo – fortalecidos pela tecnologia do século XXI, mas guiados por valores que a ciência sozinha não pode fornecer.

Originalmente publicado sob o título The world in 2050 – and beyond.

Texto recebido em 4 de agosto de 2020.

Martin Rees

Cosmólogo e astrofísico britânico, é professor de Cosmologia e Astrofísica em Cambridge e Sussex, entre outras universidades. Foi presidente da Royal Society, entre 2005 e 2010, diretor do Institute of Astronomy, professor visitante do Imperial College London e da Universidade de Leiscester, fellow do Darwin College, em Cambridge, e honorary fellow do King’s College, do Clare Hall e do Jesus College, em Cambridge. Faz parte do Conselho Científico do Institute for Advanced Study, Princeton, da Oxford Martin School, do Gates Cambridge Trust, do Institute for Advanced Study, Princeton, e do Conselho Científico do Future of Life Institute, Oxford. É cofundador do Centre for the Study of Existential Risk, e também esteve na administração científica do British Museum, do Science Museum e do Institute for Publich Policy (IPPR). Além das suas inegáveis contribuições científicas, tem publicado e participado de encontros sobre os desafios do século XXI e as interfaces entre ciência, ética e política. É nesse contexto que publicou, em 2018, o livro On the future (Princeton University Press), que terá em breve sua versão em português.

Traduzido por João Victor Machado

Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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