Especial Covid-19 | Crônicas

Poema para a catástrofe do nosso tempo (fragmento)

Alberto Pucheu, 22/07/2020

Foto de Dids no Pexels

Pucheu no momento escreve o poema-livro in progress, em 21 partes, Poema para a catástrofe do nosso tempo, concebido a partir do governo de Bolsonaro e da pandemia que assolam o Brasil. Aqui, um de seus movimentos

XVII

Como quem busca um mínimo
vestígio dos mortos, uma linha
que nos possibilite algum modo
de convívio, ainda que mínimo
e desigual, um horizonte qualquer
de memória, uma contemporaneidade,
um caminho que nos leve até eles
ou os traga até nós, de todo modo,
que não os permita ir completamente
embora, que não nos permita ficar
para sempre sem suas histórias,
sem seus afetos, sem o que
pensaram, sem o que sonharam,
sem o em nome de que e contra
o que lutaram, sem seus testemunhos,
procuro, sem as encontrar, listas
com seus nomes, levando-me a crer
que eles são a cada vez anonimizados,
desprezados, relegados imediatamente
ao esquecimento. Há milhares de nomes
que deveriam estar disponíveis
em algum lugar para sabermos
quem são os mortos diretos e indiretos
pelo vírus e, sobretudo, pelo presidente
que se aproveita do vírus para matar,
mas, além de não sabermos seus nomes,
não sabemos, tampouco, e menos ainda,
os nomes dos subnotificados, daqueles
que passam por fora dos dados
oficiais, daqueles que o governo
não testa e que, mesmo se os testasse,
esconderia os resultados de todos nós.
Enquanto pesquisadores dizem que, aqui,
se sabe apenas algo em torno de 8%
dos casos de contágio e de morte
pela Covid-19, uma pesquisa
nos cartórios mostra que o número
de mortos pelo vírus é 154%
dos anunciados. Com sua política
de extermínio, o governo, que,
atuando e falando como quer
sem que ninguém o limite,
controla os dispositivos
sobre os vivos e os mortos, não fabrica
apenas os modos de matar, mas, agindo
segundo uma lógica da desaparição,
faz de tudo para apagar
a memória dos que morrem,
seus nomes, seus sobrenomes,
suas histórias, algo de suas vidas,
seus vestígios… Temos notícias
de pessoas que, como poucas
outras na história, nem podem ser
veladas por quem mais as ama,
nenhuma irmã, nenhum irmão,
nenhum pai, nenhuma mãe,
nenhum filho, nenhuma filha,
nenhum amigo, nenhuma amiga,
nenhum ou nenhuma amante
pode derramar suas últimas lágrimas
diante dos corpos nem as pode enterrar,
delas, dessas pessoas sem rituais
fúnebres, mortas em leitos de hospitais,
em quartos domésticos, pelo meio
das ruas, quase nada sabemos
senão, quando muito, suas inclusões
nas estatísticas, e, quanto à maioria,
nem nas estatísticas elas cabem.
Chega-nos a notícia de que um tio
da minha companheira morreu,
de que o pai de uma amiga morreu
e, assim por diante, as notícias
vão chegando, de pessoas que
seguem para a vala do esquecimento
público, para a vala da ignorância
política, para a perda dos laços
sociais que há muito, induzidos,
vamos vivendo. O tio falecido
da minha companheira, que morava
em Duque de Caxias, cujo índice
de mortalidade já é o dobro do da Itália,
e cujos cadáveres se acumulam no necrotério
do hospital pois os parentes não têm
condições de arcar com os sepultamentos,
chamava-se Barbosa, nem sabemos
exatamente o nome completo dele,
ele se chamava alguma coisa Barbosa,
José Barbosa Salles, descubro, agora,
o pai da minha amiga se chamava
Seu Tuninho, ou Antônio Luiz Pereira,
descubro igualmente agora,
eles foram as duas primeiras pessoas
próximas, bem próximas, que faleceram.
Seja nos navios negreiros, no genocídio
colonial de escravos negros e indígenas,
nos desaparecidos da ditadura
militar, nos assassinados pela polícia,
pela milícia, pelo narcotráfico, em todos
que acabam nas valas comuns,
no cemitério de escravos,
no cemitério de indigentes,
no cemitério de subversivos,
no cemitério de homicídios,
essas vidas perdidas, largadas
e não veladas foram sempre vidas
não contabilizadas. Do cozimento
em vida dos escravos aos micro-ondas
do tráfico passando pelos fornos
incineradores de corpos nas usinas
de cana-de-açúcar usadas pela ditadura,
com essas e todas as outras técnicas
conhecidas de desaparecimento
que nossa história cruelmente
foi capaz de produzir, poderia dizer
que, para nós, digo, para mim
e para você, tanto os desaparecidos
quanto os relegados – em vida e em morte –
ao esquecimento são aqueles
que diariamente nos fazem falta.


Texto recebido em 7 de maio de 2020.

Alberto Pucheu

Poeta e professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como poeta, publicou, dentre outros, Mais cotidiano que o cotidiano (2013), Para que poetas em tempos de terrorismos? (no Brasil e em Portugal, 2017) e Poemas para serem lidos nas posses de presidentes (2019).

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