Democracia Climática

Um rio, uma baía, um oceano: visões

Ana Célia Castro, Estela Maria S. C. Neves, Luiz Firmino Martins Pereira, Luiz Paulo de Freitas Assad e Luiz Landau, 28/06/2023

Foto: Luiz Bhering

Em junho de 2021, na Semana do Meio Ambiente (Rio 2030), aconteceu o primeiro seminário “Um Rio, Uma Baía, um Oceano Horizontes”, no AquaRio. Reuniram-se, sob a coordenação de Ana Laronda Asti (Subsecretária de Recursos Hídricos e Sustentabilidade), os professores Estela Neves, Luiz Paulo de Freitas Assad, Manuel Heitor e Marta Irving para compartilhar visões sobre a gestão dos oceanos, das águas doces, do saneamento básico e da biodiversidade da Mata Atlântica, no entorno das bacias hidrográficas. 

Por ocasião da importante exposição “Futuros da Baía de Guanabara Inovação e Democracia Climática”, organizada pelo Fórum de Ciência e Cultura, o grupo voltou a reunir-se sob o pretexto dos mesmos temas, agora olhando para o futuro. 

Os participantes dos dois eventos, que são renomados especialistas nesses temas, compartilharam reflexões sobre a densidade e o caráter articulador de suas agendas de pesquisa. Entendemos ser esse um dos objetivos do Fórum UFRJ em Revista, “espaço de promoção e publicização das pesquisas científicas e dos conhecimentos produzidos na Universidade. Com proposta interdisciplinar, a publicação acolhe contribuições de todas as áreas do saber e tem como objetivo incentivar a criação de pontes e diálogos entre a comunidade acadêmica e a sociedade”. 

Inspirados pela relevância dos temas em debate, sua complexidade, alcance e visão estratégica, especialmente pela possibilidade de pensar futuros e amanhãs desejáveis, decidimos durante a exposição Futuros da Baía de Guanabara elegê-la como o primeiro projeto vitrine do Programa Futuros do CBAE. 

O Programa Futuros tem entre seus objetivos: o estabelecimento de uma plataforma para a colaboração criativa comum entre a academia, o governo, empresas públicas e privadas e a sociedade civil; oferecer serviços especializados de assessoramento, avaliação de projetos portadores de futuro; articular e potencializar o alcance das redes nacionais e internacionais de pesquisa; promover a inovação, inclusive por meio da pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico, de caráter disruptivo; promover intercâmbio com outras entidades e instituições correlatas, nacionais ou internacionais. 

Como tema de grande interesse na comunidade acadêmica da UFRJ e em outras instituições parceiras, nacionais e internacionais, o CBAE abraça a Baía e a missão de articular ações e pensamentos em benefício do nosso bem comum. 

1. Governança da água e agenda 2030

Estela Maria S. C. Neves

O foco de hoje são as águas doces, o legado que deixamos às futuras gerações. O planeta vive mudanças cada vez mais rápidas e profundas. É próprio da época que se quer designar por Antropoceno a velocidade, a escala e o escopo das pressões humanas sobre o ambiente.  O contexto global se caracteriza por múltiplas crises em situação inédita, destacando-se a emergência climática, a crise hídrica, a crise sanitária, a crise ambiental e o aprofundamento das desigualdades. No que diz respeito à crise hídrica, o estresse hídrico, mensurado essencialmente pelo uso da água em função do suprimento disponível, afeta diversas partes do mundo. Mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo vivem em países em situação de estresse hídrico (United Nations, 2018). Estima-se que 4 bilhões de pessoas vivem em áreas que sofrem grave escassez física de água por pelo menos um mês ao ano (Mekonnen; Hoekstra, 2016).

Agrava-se a tensão entre valores: por um lado, a água foi reconhecida como direito humano pela Assembleia das Nações Unidas, em 2010. Por outro, a água se juntou ao ouro, prata, petróleo e outras commodities e começou a ser negociada em contratos futuros na bolsa americana Nasdaq, em 2021. Conforme revelou a Bloomberg, a criação do produto aconteceu pelo aumento das preocupações com a possível escassez do recurso natural ao redor do mundo.

A ideia-mestra que apresento para discussão é que, para enfrentarmos a crise hídrica, precisamos fortalecer ao mesmo tempo (a) as políticas públicas que interferem na governança da água que construímos ao longo dos últimos 40 anos; e (b) a democracia — em particular, os espaços de participação cidadã de forma qualificada e de controle social das políticas que compõem esse sistema de governança. No Brasil, essas demandas se enquadram em um processo de reconstrução de capacidades e de políticas públicas decorrente de um processo de desmonte, em curso há sete anos.  

Em outras palavras, sem o Estado não enfrentaremos a crise hídrica. Ele é o agente fundamental para formular e implementar políticas públicas. É agente fundamental, mas não o único: é crucial fortalecer também participação cidadã qualificada nos espaços de deliberação e no controle social. Políticas de gabinete, top-down, já mostraram seus limites e suas falhas. Para tal, há que fortalecer as instituições democráticas: fora do campo democrático não há saída para a governança da água como um bem comum. 

No Brasil, a governança das águas consiste na coordenação e articulação entre as áreas de política interferentes na qualidade e quantidade de água. Em particular, há seis áreas-chave — seus regimes, arenas, coalizões e interesses diversos. São elas a defesa do meio ambiente (incluindo a mudança de clima), a gestão de recursos hídricos, o saneamento, a saúde, a energia e a segurança hídrica. Enfrentar os desafios de cada um desses campos de política não esgota a agenda, pois o que caracteriza a governança da água é ser multidimensional. É crucial reconstruir a capacidade de coordenação e conexão entre estas áreas de política para que objetivos sejam realmente alcançados.

O coração da governança está no campo da política ambiental, responsável pela proteção dos sistemas hídricos superficiais e subterrâneos, a recuperação dos sistemas degradados, o firme controle das atividades poluidoras, degradadoras e desperdiçadoras das águas, elaboração de estratégias de mitigação e adaptação à mudança de clima. 

Trata-se de uma agenda caracterizada por diretrizes cooperativas globais e por soluções locais. Assume-se que a governança da água deve se situar de uma forma estratégica, na perspectiva da escassez, das incertezas de um clima cambiante, dando prioridade à reconstrução das capacidades estatais nas áreas-chave, produção e reprodução da água, combate ao desperdício, incentivo ao reuso e garantia de acesso. 

2. Políticas para a Baía de Guanabara

Luiz Firmino Martins Pereira

A poluição da Baía de Guanabara é bastante conhecida da população carioca. Uma coleção de frustrações marca o histórico de iniciativas de recuperação das águas da Baía. Nas últimas décadas, dois grandes programas foram desenvolvidos para o enfrentamento da problemática ambiental da Baía de Guanabara: o Programa de Despoluição da Baia de Guanabara, iniciado em 1994; e o Programa de Saneamento dos Municípios do Entorno da Baia de Guanabara, lançado em 2010. Ainda que, em ambos os casos, não se possa atribuir os seus resultados insatisfatórios a um único fator, a desconsideração dos sistemas de drenagem nas ações de saneamento explica em boa parte o desfecho dos referidos Programas.  

Na prática, essa componente do saneamento afasta os esgotos em áreas urbanizadas, seja por ausência de redes separativas para esgotos, seja por dificuldades em se ligar às redes separativas, ou por ligações de efluentes sanitários e outras fontes às galerias pluviais. Apesar desta realidade fática, a engenharia brasileira resiste ao reconhecer apenas o esgotamento sanitário realizado por meio de sistemas separadores absolutos como solução técnica. Em consequência, negligenciam-se as soluções combinadas, que admitem também a condução de efluentes sanitários via galerias pluviais. Tais soluções têm grande potencial de acelerar o acesso universal ao saneamento na medida em que permitem tirar proveito de infraestrutura já existente e que na prática já conduzem esgoto sanitário em tempo seco. 

Os contratos de concessão dos serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário — recém firmados, no Estado do Rio de Janeiro — representam oportunidade ímpar para a implantação da interceptação em tempo seco e combate à poluição hídrica, ao defini-la como estratégia prioritária de curto prazo (cinco anos)1 e ao alocar recursos para tanto. O presente artigo sugere como poderiam ser essas interceptações, que neste documento são consolidadas no termo “cinturão metropolitano da Guanabara”, bem como estima a sua capacidade de redução da carga orgânica lançada na Baía de Guanabara.

Em vermelho, representação esquemática dos cinturões de tempo seco propostos sobre mapa de troncos e ETEs existente (Fonte: Elaboração própria adaptada sobre mapa do PSAM)
Expectativa de carga orgânica retirada da BG, com a intervenção em tempo seco – Fonte: Elaboração própria. O resultado indica potencial para reduzir em cerca de 60% a carga orgânica lançada na BG, por meio de um conjunto de intervenções em tempo seco factíveis. Em alguns casos, é requerida ampliação da ETE, embora dentro dos limites do seu projeto original.

O resultado indica potencial para reduzir em cerca de 60% a carga orgânica lançada na BG, por meio de um conjunto de intervenções em tempo seco factíveis.  Em alguns casos, é requerida ampliação da ETE, embora dentro dos limites do seu projeto original.

3. A Baía de Guanabara: desafios e oportunidades para o desenvolvimento sustentável

Luiz Paulo de Freitas Assad, Luiz Landau

Sustentabilidade nos oceanos

Os oceanos com seus mares, baías e demais ecossistemas representam uma fundamental fonte de serviços e benefícios para a humanidade, tais como regulação do clima do planeta, provimento de alimentos, fonte de energias e de inúmeros recursos naturais. Torna-se, portanto, de fundamental importância mapearmos as ameaças existentes à saúde dos oceanos de forma a assegurar a manutenção de sua sustentabilidade. Os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas definidos pela Agenda 2030 vêm se constituindo em importante ferramenta para implementação e manutenção do desenvolvimento sustentável. Pode-se enfatizar de forma mais direta o objetivo 14, que trata especificamente da proteção à vida marinha a partir da gestão baseada em boas práticas. Mais recentemente foi criado pelas Nações Unidas o grupo dedicado à Década dos Oceanos (2021-2030). Basicamente, esse grupo busca incentivar e promover a criação de pontes que integrem diferentes atores como comunidade científica, setor de negócios, tomadores de decisão e sociedade civil, minimizando os hiatos entre a ciência oceânica e a sociedade, de forma a promover a gestão sustentável dos oceanos.  

A Baía de Guanabara: serviços e ameaças

A Baía de Guanabara constitui um dos mais importantes ambientes marinhos costeiros do Estado do Rio de Janeiro. Tal fato é evidenciado por vários fatores como, por exemplo, os inúmeros benefícios e serviços providos por esse ambiente de forma direta para a sociedade do Estado do Rio de Janeiro. Do ponto de vista econômico, ressalta-se a presença de dois aeroportos, um dos maiores portos do país, transporte hidroviário urbano e a presença de refinarias e outras indústrias em suas margens. Destaca-se também a atividade pesqueira artesanal e industrial. Do ponto de vista social, destaca-se a sua utilização para prática de diferentes esportes náuticos, lazer e turismo. Do ponto de vista ambiental, é possível citar diferentes ecossistemas marinhos costeiros, com destaque às grandes extensões de manguezais, principalmente nas áreas localizadas no fundo da Baía. Tais ambientes, além de constituírem-se em berçários naturais para inúmeras espécies animais, também oferecem um importante serviço associado à proteção costeira contra processos de inundação oriundos de eventos extremos, bem como da elevação do nível dos oceanos associada às mudanças climáticas.

Infelizmente, nas últimas décadas, a Baía de Guanabara vem sendo fortemente ameaçada e pressionada ambientalmente por diferentes processos, como a poluição marinha inerente à falta de saneamento básico, os derramamentos de óleo e outros produtos químicos, a poluição atmosférica e o processo de urbanização desordenada de seu entorno. Tais processos precisam ser mitigados e geridos de forma responsável para que possamos assegurar o desenvolvimento sustentável dessa região e a manutenção dos inúmeros serviços e benefícios desse ambiente para a sociedade.

Desafios e oportunidades à implementação para o desenvolvimento sustentável na Baía de Guanabara

Um dos grandes desafios quanto à implementação e manutenção do desenvolvimento sustentável de uma região está diretamente ligado ao próprio conceito de sustentabilidade, o qual possui três grandes pilares, a saber: social, econômico e ambiental. Tais pilares devem ser monitorados e avaliados de forma absolutamente transversal e integrada. Por isso é fundamental a comunicação entre profissionais de diferentes áreas da ciência de forma inteligível e fluida, quanto mais em ambientes marinhos costeiros como a Baía de Guanabara, em que o entendimento das condições e dos impactos ambientais é absolutamente indissociável das características sociais e econômicas da região e de seu entorno. Esforços que ampliem a base de conhecimento local, como a aquisição e a organização de dados de diferentes naturezas, tornam-se cruciais para o planejamento estratégico-científico local.

Outro aspecto importante a ser mencionado e que deve ser visto como grande oportunidade para o desenvolvimento sustentável da região é a presença de múltiplos atores (sociedade civil, comunidade científica, setor de negócios e órgãos governamentais e não governamentais) operando com algum nível de interação. Essas interações devem ser incentivadas e impulsionadas para que sejam criadas redes colaborativas que promovam de forma sólida o desenvolvimento sustentável da região. Tais redes devem, essencialmente, minimizar os hiatos existentes entre cientistas e sociedade, de forma que haja benefício mútuo, ampliando o conhecimento científico da Baia de Guanabara, fortalecendo o atendimento a demandas da sociedade e dando suporte ao desenvolvimento de políticas públicas que mantenham esse círculo virtuoso. Nesse sentido, o processo de digitalização de dados e informações pode fortalecer e agilizar o processo de comunicação entre setores da ciência e da sociedade civil.

Um dos grandes desafios a ser enfrentado por toda a humanidade são as mudanças do clima. Especificamente, ambientes marinhos costeiros como a Baía de Guanabara sofrerá impactos associados à alteração da dinâmica marinha e à elevação do nível do mar. Nesse sentido, surge a necessidade de se ampliar o conhecimento ambiental, social e econômico atual para que se possa mitigar e se adaptar a impactos futuros associados ao aquecimento global. 

Um rio, uma baía e um oceano

A busca pela sustentabilidade na Baía de Guanabara não é restrita apenas ao entendimento das características sociais, econômicas e ambientais locais, mas também pela compreensão das mesmas características em toda a bacia hidrográfica que influencia a região. Intervenções nos cursos fluviais impactam diretamente em aspectos da saúde da Baía de Guanabara. Por outro lado, as interconexões da Baía de Guanabara não se fazem apenas em sua interface com o continente, mas também em sua fronteira com o Oceano Atlântico. Além de exportar propriedades físico-químicas associadas às suas águas para o oceano, a Baía de Guanabara também recebe a influência de processos e fenômenos que ocorrem em escalas espaciais maiores na bacia do Oceano Atlântico. É fundamental que a Baía de Guanabara seja compreendida como um corpo integrado ao seu entorno continental e oceânico, compreendendo diferentes escalas espaciais e temporais. Essa compreensão é fundamental não apenas para a implementação de boas práticas locais, mas também para que essas práticas possam impactar globalmente o desenvolvimento sustentável.

 

Notas

  1.  O item 12.1.2. dos contratos de concessão dos serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário referentes aos blocos 1, 2 e 4 do Estado do Rio de Janeiro estabelece que: “12.1.2. Nos MUNICÍPIOS em que a CONCESSIONÁRIA se compromete a realizar investimentos em tempo seco, a obrigação da ampliação do sistema de esgotamento sanitário em seu território somente terá seu início após o prazo de 5 (cinco) anos do CONTRATO.” [voltar]
Ana Célia Castro

Diretora do Colégio Brasileiro de Altos Estudos, Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (CBAE/FCC/UFRJ) e Vice-Coordenadora do INCT de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento).

Estela Maria S. C. Neves

Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED/ IE-UFRJ), assessora  do CBAE/FCC/UFRJ.

Luiz Firmino Martins Pereira

Pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura – FGV/CERI, autor do livro Controle Social das Águas.

Luiz Paulo de Freitas Assad

Professor do Departamento de Meteorologia (IGEO/UFRJ), professor do Programa de Engenharia Civil (COPPE/UFRJ). Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia (COPPE/UFRJ).

Luiz Landau

Professor do Programa de Engenharia Civil (COPPE/UFRJ). Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia (COPPE/UFRJ).

Leia também