Biodiversidade

Tecendo redes de conhecimento entre pessoas e peixes através da extensão universitária

Karla D. A. Soares e Elisabeth Henschel, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

Atualmente, existem mais de 60 mil espécies conhecidas de peixes, que são divididas em três grupos principais: Cyclostomata (lampreias e feiticeiras; peixes agnatos), Chondrichthyes (tubarões, raias e quimeras; peixes cartilaginosos) e Osteichthyes (peixes ósseos e tetrápodes).

Evolutivamente, o termo ‘peixes’ refere-se tanto aos organismos vertebrados aquáticos estudados por ictiólogos(as) quanto aos demais vertebrados (geralmente terrestres) que possuem quatro membros, como os anfíbios, tartarugas, crocodilos, lagartos, aves e mamíferos (incluindo os seres humanos). Tal equivalência entre os termos ‘peixes’ e ‘vertebrados’ deve-se ao fato de que nós, seres humanos, e todos os demais vertebrados descendemos de um mesmo ancestral comum.1

Os vertebrados não-tetrápodes, ou seja, os organismos popularmente conhecidos como ‘peixes’, interagem de maneiras variadas com os seres humanos através de atividades como a pesca, o aquarismo e a culinária. Quem nunca ouviu falar sobre tubarões e assistiu a algum dos filmes e documentários sobre esses animais? Quem nunca se deparou com peixes com nadadeiras raiadas (como, por exemplo, carpas, tetras, cascudos e betas) e sua miríade de cores e formas, dispostos em aquários, prateleiras de mercados e feiras? Apesar de passarem despercebidos na maior parte dos casos, diversas espécies de peixes permeiam nosso dia a dia de diversas formas.

Esses animais representam uma importante fonte de alimento, correspondendo a cerca de 7% de toda proteína consumida no mundo. No Brasil, o consumo anual de carne de peixes gira em torno de 10kg por pessoa. Estima-se que só em 2020, cerca de 178 milhões de toneladas de animais aquáticos foram pescadas e cultivadas, sendo uma grande parcela referente a espécies de peixes teleósteos e condrictes.2

Avanços tecnológicos no setor pesqueiro e da aquicultura, bem como iniciativas para promover um manejo sustentável das populações, têm contribuído para a recuperação dos estoques e dos ecossistemas aquáticos. Apesar disso, ainda há um longo caminho pela frente para melhor compreendermos as espécies e suas características. Pesquisas recentes revelam que muitas espécies se encontram ameaçadas de extinção em decorrência da intensa (e por vezes desenfreada) atividade pesqueira e das drásticas alterações dos ambientes aquáticos devido a eflúvio de esgoto, desmatamento, mineração, queimadas, alterações na paisagem dentre outras ameaças antropogênicas.2 3 4

Porém, apesar desse cenário preocupante, centenas de novas espécies marinhas e de água doce continuam sendo descritas ano a ano, revelando as várias lacunas persistentes no conhecimento da biodiversidade.

Além de consumidores de carne e subprodutos de ‘peixes’, nós também interagimos com esses animais através do entretenimento e da cultura. Representações culturais e símbolos importantes para diversas sociedades humanas são baseados nesses organismos, que figuram em mitologias, músicas e mídias visuais. Tais representações permeiam o imaginário coletivo, perpetuando impressões e por vezes falácias que podem ser prejudiciais à conservação das espécies e conscientização ambiental.

Um exemplo claro dessa situação é o caso dos peixes popularmente conhecidos como ‘piranhas’. As piranhas são altamente estigmatizadas como organismos agressivos e que atacam outros animais (inclusive humanos) a qualquer custo, o que não ocorre de fato na natureza. Esses peixes, em situações propícias e livres de estresse, são pacíficos e tendem a evitar contato com humanos. 

Buscando divulgar o conhecimento científico produzido na Academia e diminuir a disseminação de desinformação sobre esses animais tão diversos, surgiu a ideia de criar um projeto de extensão, o Peixe nas Redes. Tal projeto teve início em fevereiro de 2019, quando a página homônima (@peixenasredes) foi criada no Instagram para difusão de curiosidades do universo dos peixes e da ictiologia. Com o passar do tempo, diferentes ferramentas do Instagram foram utilizadas, tais como lives, reels e stories, diversificando os tipos de interação dos(as) seguidores(as) com os assuntos divulgados. 

A partir de agosto de 2022, o projeto “Das redes às ruas: difusão e troca de conhecimentos sobre peixes” passou a figurar como uma das tantas iniciativas de extensão universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O que antes era um projeto de divulgação científica tocado de maneira voluntária e independente por ictiólogos e ictiólogas, passou a ser um espaço institucionalizado de formação para discentes e docentes, possibilitando a atuação conjunta de todos em prol da extensão universitária.    

Para além da divulgação científica realizada no Instagram, perfis em outras duas redes sociais foram criados (TikTok e Twitter), ampliando assim o alcance dos conteúdos difundidos e diversificando a divulgação de informações a respeito de diversos aspectos sobre os peixes, como diversidade, evolução, conservação e importância econômica/social/cultural em formatos de vídeos e mensagens curtas.

Elementos midiáticos de grande expressão como os filmes ‘Pequena Sereia’ e ‘Megatubarão’ serviram e têm servido como temas de postagens, aproximando a cultura pop e os dados científicos sobre esses animais. Além disso, competições ictiológicas inspiradas em eventos esportivos mundiais como as Ictiolimpíadas e a Copa do Mundo dos Peixes foram realizadas, promovendo assim o engajamento e a divulgação de conhecimentos diversos sobre peixes. 

Uma nova frente de atuação também foi adicionada ao escopo do projeto. O subprojeto ‘Peixe nas Ruas’ é voltado à realização de atividades presenciais em escolas públicas do Rio de Janeiro e eventos de extensão promovidos por universidades. Em um ano, o projeto contabiliza participações em pelo menos dez eventos institucionais de extensão, dentre eles a XIX Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) da UFRJ, o III Simpósio ELASMulheres e a 3ª edição do Festival Museu Nacional Vive.

Tabela 1 Lista de eventos de extensão institucionais nos quais o projeto “Das redes às ruas: difusão e troca de conhecimentos sobre peixes” realizou atividades desde sua formalização

Em tais eventos, roteiros de atividades sobre diferentes conteúdos foram construídos em conjunto entre discentes e docentes participantes ao longo das reuniões semanais realizadas no âmbito do projeto, focando em temas como ‘Diversidade de peixes’, ‘Biologia e diversidade de Chondrichthyes’ e ‘Peixes da Baía de Guanabara’, todos cuidadosamente planejados considerando a duração dos eventos e seus respectivos públicos-alvo.

Em todas as atividades realizadas, espécimes de peixes cartilaginosos e ósseos preservados em álcool e pertencentes às coleções didáticas do Departamento de Zoologia IB/UFRJ e do Setor de Ictiologia do Museu Nacional/ UFRJ foram mostradas ao público, possibilitando a manipulação de exemplares de espécies pouco conhecidas e a aproximação com aquelas por vezes preteridas e/ou temidas por muitos (tubarões e piranhas, por exemplo).

Figura 1 Atividade do projeto de extensão “Das redes às ruas: difusão e troca de conhecimentos sobre peixes”. 3ª edição do Festival Museu Nacional Vive, 2023.

Aqui, apresentaremos a dinâmica e os resultados de duas atividades presenciais desenvolvidas no escopo de ação desse projeto de extensão.  Primeiramente, durante a XIX SNCT da UFRJ, apresentamos a atividade “Peixes como ferramenta para a aprendizagem de taxonomia e sistemática”, propondo a seguinte sequência de atividades:

1) observação e interação com exemplares de peixes cartilaginosos e ósseos, com posterior agrupamento das diferentes espécies de acordo com alguma característica selecionada pelos(as) participantes;

2) diálogo sobre os critérios escolhidos e as hipóteses de relacionamento entre aquelas espécies que são atualmente aceitas pela comunidade científica;

3) discussão de conceitos sobre evolução, sistemática filogenética e construção de árvores filogenéticas a partir de um cladograma simplificado;

4) avaliação da atividade através de um questionário com cinco alternativas definidas e uma de livre escolha acerca da atividade e dos conhecimentos dos(as) participantes. De acordo com as respostas obtidas (n=26), 70,4% dos estudantes conheciam “um pouco” sobre o tema, seguido de 18,5% que não conheciam “quase nada”.

Em segundo lugar, uma oficina sobre peixes cartilaginosos foi realizada na Escola Municipal Vereador João da Silva Bezerra (Maricá), contando com a participação de 90 estudantes do 7º ano do Ensino Fundamental. Nela, cinco perguntas sobre o tema foram introduzidas no início da atividade, visando a realizar um levantamento dos conhecimentos prévios dos(as) estudantes e a iniciar o diálogo sobre os Chondrichthyes. Apesar de sua grande popularidade, tubarões e raias foram descritos apenas como “peixes”, “animais aquáticos” ou “animais” em 56,8% das respostas, enquanto 27% não sabiam o que era uma quimera.

Os resultados prévios das primeiras avaliações de ambas as atividades, ou seja, antes da apresentação do conteúdo em si para os(as) participantes e posterior interação e consolidação do conhecimento, demonstram como o conhecimento sobre peixes ainda é superficial nas faixas etárias analisadas, restringindo-se àquilo que lhes é apresentado em filmes e desenhos — independentemente de ser um conteúdo fidedigno ou equivocado.

Porém, o panorama muda após o desenvolvimento das atividades e contato dos(as) participantes com os(as) extensionistas: no caso da atividade desenvolvida na SNCT, após a apresentação do conteúdo, quando perguntados sobre “O quanto você aprendeu com essa atividade?”, 69,2% dos participantes responderam “muito”, enquanto os restantes 30,8% responderam “bastante”. Do total de envolvidos nessa atividade, 73,1% avaliaram a atividade como “excelente”, 23,1% como “muito boa” e 3,8% como “ótima”.

No que se refere à atividade realizada em Maricá, ao fim da troca de conhecimentos entre extensionistas e participantes, pudemos avaliar qualitativamente a assimilação de conteúdos: grande parte dos estudantes conseguiram identificar quimeras, desmistificar conhecimentos equivocados sobre tubarões e indicar as preferências alimentares e hábitos de vida das espécies apresentadas.

Percebe-se que em todos os eventos, os(as) participantes têm se beneficiado do contato com os animais e o aprendizado de novos termos. Quando perguntados sobre “palavras e conceitos novos aprendidos durante a atividade”, nomes de peixes, estruturas e termos científicos associados à ictiologia são mencionados pelos(as) participantes, indicando a ampliação de seus repertórios e apropriação de novas palavras e significados.

Esses eventos são de suma importância para todos os agentes envolvidos, não só para o público em si; ao avaliarem o projeto e refletirem sobre as ações realizadas, os(as) extensionistas também relatam novos aprendizados que não se restringem a peixes, mas também referentes à comunicação com público, à apresentação e elaboração de trabalhos e peças de divulgação científica, ao desenvolvimento de autonomia e responsabilidade com a transmissão de conhecimentos acessíveis e fidedignos. Tais conclusões reforçam a importância deste projeto de extensão como difusor de conhecimentos sobre biodiversidade, e norteiam extensionistas e orientadoras sobre as próximas atividades.

Notas

  1. Hennig, W. (1999). Phylogenetic systematics. University of Illinois Press. [voltar]
  2. FAO. 2022. The State of World Fisheries and Aquaculture 2022. Towards Blue Transformation. Rome, FAO. https://doi.org/10.4060/cc0461en [voltar] [voltar]
  3. Dulvy, N.K., Pacoureau, N., Rigby, C.L., Pollom, R.A., Jabado, R.W., Ebert, D.A., Finucci, B., Pollock, C.M., Cheok, J., Derrick, D.H., Herman, K.B., Sherman, C.S., VanderWright, W.J., Lawson, J.M., Walls, R.H.L., Carlson, J.K., et al. 2021 Overfishing drives over one-third of all sharks and rays toward a global extinction crisis. Current Biology 31, 4773–4787. [voltar]
  4. IUCN. 2022. The IUCN Red List of Threatened Species. Version 2022-2. https://www.iucnredlist.org. [voltar]
Karla D. A. Soares

Professora Adjunta no Departamento de Zoologia da UFRJ. Graduada em Ciências Biológicas, mestra pela UERJ e doutora pela USP. Tem se dedicado a pesquisas sobre evolução de peixes cartilaginosos e atuação em diversos projetos de extensão. Atualmente coordena o projeto de extensão “Das redes às ruas: difusão e troca de conhecimentos sobre peixes”. Contato: karlad.soares@biologia.ufrj.br

Elisabeth Henschel

Professora Substituta no Departamento de Zoologia da UFRJ e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Biologia da UFRJ. Bióloga, mestra e doutora pela UFRJ. Sua pesquisa utiliza abordagens multidisciplinares para desvendar a evolução de bagres amazônicos. É uma das coordenadoras do projeto de extensão “Das redes às ruas: difusão e troca de conhecimentos sobre peixes”. Contato: elisabeth.henschel@hotmail.com

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