Hidrobiologia

Lejeune, Luiza e a ilha do Pinheiro: uma experiência pioneira na Baía de Guanabara

Lise Sedrez, 28/06/2023

Foto: Luiz Bhering

Em 1958, os cientistas Lejeune de Oliveira e Luiza Krau viam com preocupação as condições ambientais da Ilha do Pinheiro, na Baía de Guanabara. Ambos trabalhavam no Laboratório de Hidrobiologia, localizado na Ilha, e que por vinte anos fornecera espécimes para estudo de vida marinha ao Instituto Oswaldo Cruz. Mas alguma coisa tinha mudado. O camarão alfeu calara seus estalinhos. O siri azul já quase não se encontrava, e o manguezal parecia definhar. Tainhas, bagres e aves marinhas haviam migrado para áreas mais promissoras. Ora, Luiza e Lejeune não podiam migrar, e não queriam que o laboratório definhasse. Restava-lhes, portanto, somente uma alternativa darwiniana: adaptação.

A Ilha já vira tempos melhores. Lejeune visitara o local pela primeira vez em 1939 quando, ainda estudante de medicina, vinculado ao prestigiado curso de Aplicação do Instituto Oswaldo Cruz, participou de uma expedição de coleta com Henrique de Baurepaire Aragão, importante pesquisador do Instituto e entusiasta da Hidrobiologia. A Ilha do Pinheiro tinha então um frondoso manguezal, com rica fauna e flora. Era parte do principal arquipélago da Baía de Guanabara, com nove ilhas de tamanhos variados e um ativo regime de águas.

O mesmo Baurepaire Aragão tornou-se o diretor do Instituto poucos anos depois e, em 1942, propôs a criação de um laboratório de Hidrobiologia na Ilha do Pinheiro. No início, havia somente modestas instalações — alguns tanques para camarões, energia elétrica, uma cabine para equipamentos básicos — e a presença do jovem Lejeune de Oliveira, que ali chegava de barco, um serviço contratado junto à comunidade de pescadores da enseada de Inhaúma — praticamente os únicos habitantes humanos da região. As ilhas eram para eles o quintal de casa: local de pesca, base para os currais de peixe, e fonte da preciosa lama do mangue, que os pescadores juravam ter virtudes medicinais.

Em 1947, Henrique Aragão colocou a Ilha em rotas acadêmicas internacionais. Convidou o biólogo francês Pierre Drach para uma estadia de seis meses. Drach proporcionou valiosa consultoria para a reestruturação do Laboratório de Hidrobiologia, e treinou vários cientistas em novas técnicas de observação de vida marinha. Entre eles estava Luiza Krau, egressa do curso de História Natural, com pouca vontade de lecionar para adolescentes e muita de mergulhar no mundo da pesquisa — um caminho então com raras oportunidades para mulheres. Mas Luiza era persistente e tinha uma memória prodigiosa para identificação de organismos marinhos — o que lhe facultou uma vaga de estagiária no Instituto Oswaldo Cruz.

Mesmo então já se via sinais de vulnerabilidade da Ilha às mudanças ambientais na Baía da Guanabara. Periodicamente, uma combinação de correntes e maré alta trazia para os aquários de crustáceos a poluição do canal de Sapucaia, bem onde se localizava um lixão. Isto era suficiente para que todos os camarões morressem — apenas a água subia aos tanques.

Paralelamente, o entorno da Ilha mudava. Suas ilhas irmãs foram aterradas para a criação de uma única ilha, onde se instalaria a nova Universidade do Brasil. A Ilha do Pinheiro deveria ter o mesmo fim. Mas além de Lejeune e Luiza, a Ilha também abrigava desde os anos 30 uma população de macacos rhesus, usados em experiências no Instituto Oswaldo Cruz. Os macacos vagavam livres na Ilha, mergulhavam para colher mexilhões e por vezes criavam caos, se conseguissem entrar no Laboratório. Mas a ideia de que macacos rhesus poderiam abordar estudantes e professores, caso a ilha fosse incorporada, acabou por garantir sobrevida ao Laboratório. A Ilha do Pinheiro continuou uma ilha — agora cercada pela grande artificial Ilha do Fundão. Seu regime de águas nunca mais seria o mesmo.

Durante a década de 50, Lejeune e Luiza documentaram a deterioração das águas da enseada de Inhaúma, na Baía de Guanabara, até que em 1958 pouco podiam duvidar que o Laboratório estava numa situação crítica. Em 1950, Lejeune listara mais de 100 espécies de invertebrados marinhos que o Laboratório de Hidrobiologia podia fornecer ao Instituto Oswaldo Cruz. Já em 1959, Luiza tinha dificuldades em localizar suficientemente exemplares de seus amados equinodermas.

A adaptação do Laboratório foi drástica — e necessária. Se a poluição impedia o estudo dos organismos marinhos em si, então Lejeune e Luiza estudariam a poluição marinha. Os dois cientistas desenvolveram uma escala de seis graus de poluição usando como indicadores biológicos espécies que se encontravam na Baía de Guanabara. O Laboratório de Hidrobiologia se tornou um centro de estudos e monitoramento de poluição marinha.

Era necessário encontrar novas redes e novos apoios institucionais. Luiza e Lejeune estabeleceram múltiplas conexões com a Universidade de São Paulo, com a Petrobrás — que construía a Refinaria Duque de Caxias nas proximidades, em 1961 —, com a Marinha do Brasil, na figura do oceanógrafo Paulo Moreira da Silva. A parceria mais profícua, porém, foi com Fausto Guimarães, fundador do Instituto de Engenharia Sanitária do Estado da Guanabara. Se o interesse de Guimarães por Hidrobiologia era limitado às conexões com a saúde pública, ainda assim a relação abriu novas portas. Guimarães convidou Lejeune e Luiza para ministrar seminários para os técnicos do Instituto de Engenharia Sanitária, e as pesquisas da Ilha do Pinheiro logo passaram a fazer parte da formação de quem quer que se interessasse por poluição de águas marinhas.

Adaptações darwinianas funcionam — mas até certo ponto. O golpe militar de 1964 trouxe mudanças significativas para o Instituto Oswaldo Cruz, como o conhecido “Massacre de Manguinhos”: a demissão de dez cientistas nos termos do Ato Institucional 10 em 1970. Igualmente relevante foi a reestruturação da missão científica, reduzindo a pesquisa em chamada “ciência pura”, em prol de trabalhos de produção de vacina e estudo de doenças endêmicas. Em 1976, Lejeune foi avisado que o Laboratório seria fechado por um ano. O Laboratório de Hidrobiologia tornara-se redundante para as práticas do Instituto e, com ele, o trabalho de Luiza Krau e Lejeune de Oliveira.

Lejeune e Luiza finalmente migraram para a ilha ao lado. Ambos solicitaram cessão do Ministério da Saúde para o Ministério da Educação, e criaram a disciplina de Limnologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lejeune foi o titular da disciplina até falecer, em 1982, sendo sucedido por Luiza Krau até a aposentadoria em 1984. Luiza faleceu aos 102 anos, em 2020.

E a Ilha do Pinheiro? Finalmente aterrada, hoje faz parte da paisagem da Linha Amarela, a Vila Pinheiro, e talvez sonhe com seus antigos mangues…

Adaptado de Sedrez, Lise F. The Bay of All Beauties’: State and Environment in Guanabara Bay, Rio de Janeiro, Brazil, 1875-1975. Tese de Doutorado. Stanford University: Stanford, CA, EUA, 2005.

Lise Sedrez

Professora associada do Instituto de História da UFRJ. Possui graduação em História do Brasil pela PUC-Rio, mestrado em Estudos de Políticas Ambientais pelo New Jersey Institute of Technology, mestrado e doutorado em História da América Latina pela Stanford University. Concluiu seus estudos de pós-doutorado no Rachel Carson Center for Environment and Society, em Munique, Alemanha. De 2017 a 2021, participou do projeto multidisciplinar Occupy Climate Change!, coordenado pelo Laboratório de Humanidades Ambientais do Real Instituto de Tecnologia, Estocolmo, Suécia. Realizou estágio pós-doutoral pela UFMG em 2022, que incluiu uma Landhaus Fellowship do Rachel Carson Center.

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