Memória

Baía arqueológica: vislumbres do passado na Baía de Guanabara

Claudia Carvalho, 28/06/2023

O cotidiano, a vida e a morte a partir da ótica de três grupos de pesquisa arqueológica e seus colaboradores

A Baía de Guanabara tem muitas faces, muitas vozes, muitos mundos contidos num único, imenso espaço geográfico repleto de possibilidades presentes, carregado de histórias, promessa árdua de um futuro que se poderá construir com boa dose de lucidez. Universo cuja importância simbólica, do mundo das ideias, e concreta, do mundo da realidade factual, transcende a cidade do Rio de Janeiro. Uma parte deste universo, a da entrada da baía, com o Pão de Açúcar em destaque, chega mesmo a ter a força de ícone que materializa visualmente, no exterior, uma das imagens do Brasil. (Lima, 9:1994)

Foi assim que, em 1994, Edvaldo Pereira Lima inicia seu texto “Mapa de Universo Múltiplo” na obra “Retratos da Baía”, editado sob os auspícios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), reunindo diferentes visões e percepções da Baía da Guanabara por jornalistas devotados às pautas científicas e tecnológicas.

Quase trinta anos depois dessa publicação, a exposição Futuros da Baía de Guanabara: Inovação e Democracia Climática retoma a temática complexa e diversa, trazendo renovados olhares, preocupações persistentes no tempo, ampliando perspectivas e expectativas, num diálogo estendido com o público por meio das diferentes ações e iniciativas satélites construídas para acompanhar e agregar reflexões e ações à exposição e sua experiência imersiva.

A baía que emoldura parte da metrópole, que já foi corte e capital do país, é também a baía de belos mangues de outrora, obliterados e sufocados pela poluição e pelo adensamento humano. É a baía de golfinhos resilientes, de pescadores, de multidões que a cruzam diariamente, muitas vezes indiferentes, seja por mar, terra ou mesmo pelo ar.

Essa baía, que pode ser caminho, abrigo, paisagem, espaço de lazer e de contemplação, de sustento, também é espaço de embates ideológicos, econômicos, ecológicos, entre outros. É o espaço que extrapola seus limites geográficos que abarca uma multiplicidade simbólica, que é campo de disputa, de separação e de união. É a Baía, retornando a inspiração de Edvaldo, o “Mapa de universo múltiplo”.

Pensar seus futuros possíveis não seria completo sem vislumbrar e dialogar com diferentes aspectos de seu passado e os enlaces e imbricamentos com nosso presente.

Nesse sentido, o minicurso Baía Arqueológica foi construído como uma proposta de iniciar e incentivar esses diálogos e reflexões. Sem a pretensão de esgotar assuntos, a proposta do evento em suas três seções foi apresentar diferentes possibilidades de investigação do passado desse espaço/entidade icônica que é a Baía — a partir de três grupos distintos de pesquisadores os quais, em suas visões multifacetadas, apresentaram parte de seus estudos e reflexões, dividindo com o público entendimentos, perguntas e desafios na recolha de aspectos e momentos da dinâmica humana na Baía da Guanabara em tempos pretéritos.

Trazer ao diálogo grupos de pesquisa e pesquisadores implica que olhares e temporalidades podem não ser claramente lineares, ainda que ordenáveis. Convidamos para compor o minicurso, como coordenadores de cada uma das sessões, três professores do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGARQ) do Museu Nacional (MN) da UFRJ, cujas pesquisas se relacionam com a Baía de Guanabara. Cada coordenador estruturou sua sessão livremente, instados a construir seus próprios roteiros e convidar colegas de outras instituições, alunos e ex-alunos para apresentar suas contribuições à temática.

Dessa forma, a primeira sessão contou com a organização da professora Madu Gaspar, que coordenou os trabalhos sobre a Baía e seus primeiros ocupantes do litoral. Em sua fala, foram apresentados os sambaquis, estruturas monticulares geralmente de grande visibilidade na paisagem, que tinham nas conchas seu principal material construtivo. Tais estruturas são testemunhos da ocupação de grupos humanos que escolheram o litoral para viver há pelo menos seis mil anos, permanecendo nestes espaços até cerca de mil anos atrás.

Em torno da Guanabara, sambaquis de diferentes dimensões e de diferentes períodos foram construídos, muitos deles funerários, revelando aspectos gerais dos modos de viver e morrer dessas populações. Essa panorâmica, com as principais características desses sítios, permitiu situar o público no universo dos construtores de sambaquis.

Condições de vida e saúde desses grupos foi a temática expandida pela pesquisadora Sheila Mendonça de Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), ao falar sobre os remanescentes humanos recuperados nesses sítios arqueológicos e sobre os diferentes estudos e informações que podem ser obtidos a partir da análise dos indivíduos sepultados nos sambaquis e seus contextos funerários.

Presente e passado se conjugaram na apresentação de Michelle Mayumi Tizuka, do Museu de Arqueologia de Itaipu (MAI/IBRAM), ao discutir as datações de grande antiguidade para a ocupação no litoral fluminense e nos sítios arqueológicos da região Oceânica de Niterói, uma das “portas” de entrada para a baía. Também trouxe à conversa a luta pela preservação do patrimônio arqueológico de Itaipu, como um exemplo de questões que reverberam ou que deveriam reverberar por toda a Guanabara quanto aos desafios de preservação de seu patrimônio.

Por fim, o professor Anderson Marques Garcia, do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas Indígenas (NuPAI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), trouxe importantes discussões sobre sambaquis residuais, obliterados pela ocupação urbana carioca, como o Sambaqui da Prainha, bem como apresentou as possibilidades de informações obtidas através do estudo da história de vida dos artefatos líticos encontrados nesse sambaqui. Finalizou estabelecendo diálogos envolvendo outros sítios, como Camboinhas e Duna Pequena, pensando as interlocuções possíveis entre contextos de baía e os sítios costeiros de mar aberto.

A segunda sessão introduziu a Baía em tempos históricos e esboçou o que podemos pensar a partir da materialidade remanescente. Esta sessão foi coordenada pelo professor Marcos André Torres de Souza e contou com a participação de diferentes integrantes do Laboratório de Arqueologia Histórica do MN/UFRJ. A sessão foi dividida em três grandes eixos. O primeiro tratou das cartografias arqueológico-históricas da Baía de Guanabara e seu entorno. Este eixo contou com uma importante reflexão de Marina Miranda sobre os sítios de contato entre europeus e indígenas e a difícil visibilidade arqueológica desse momento na baía.

Pedro Soares discorreu sobre os sítios históricos e suas representações cartográficas de época, enquanto Marcos Andre Souza e Lucia Brito apresentaram um mapa do potencial arqueológico-histórico na Ilha do Governador como um instrumento de pesquisa e gestão.

O segundo eixo tratou da diversidade de contexto e práticas materiais, e, nessa temática, Lucia Brito retornou para discutir o Recolhimento de Santa Tereza de Itaipu e suas implicações enquanto recolhimento mais afastado em operação entre meados do século XVII e início do XIX. O contraponto é apresentado por Anna Moni ao discutir as dinâmicas portuárias da baía a partir dos vidros reciclados recuperados no Cais do Valongo, associados a africanos escravizados.

O último eixo delimitou o principal projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo, o projeto Ilha do Governador. O próprio professor Marcos André apresenta as discussões referentes às práticas materiais, o ambiente e a paisagem setecentista da Aldeia Tupi da Estação Rádio da Marinha, enquanto Luan Ouverney introduz os ouvintes à arqueologia da fazenda São Sebastião, do período oitocentista. Integrando passado e presente, Karla Almeida apresenta suas ações e reflexões entre arqueologia e memória na contemporaneidade, desenvolvidas a partir de sua pesquisa sobre a colônia de pescadores Z-10.

A terceira e última sessão do minicurso também se insere em tempos históricos. A baía dos escravizados, trabalho coordenado pela professora Andrea Lessa, teve como foco a cidade do Rio de Janeiro sem esquecer que o comércio escravagista também se distribuiu por outros pontos e entrepostos da Guanabara. Reinaldo Tavares uniu arte e cartografia para reconstruir paisagens relativas ao comércio negreiro do século XIX.

A partir dessa contextualização, são apresentados estudos desenvolvidos a partir das pesquisas arqueológicas no Cemitério dos Pretos Novos, na Gamboa. A apresentação do sítio e dos desafios da pesquisa ficou por conta da coordenadora, enquanto Andrei Santos discorreu sobre a queima dos corpos no cemitério e a o modo como se dão os estudos em remanescentes humanos afetados pelo fogo, mostrando ao público parte da rotina de estudos comuns a análises arqueológicas e forenses.

Gustavo Chá Chá apresentou seu estudo sobre as contas de vidro unindo estudos de proveniência das peças com análises de sua manufatura para comparar as contas encontradas no cemitério com outros contextos de época, demonstrando como diferentes aspectos da materialidade contribuem para o entendimento do passado.

Estes foram os vislumbres sobre diferentes “baías” que se sobrepõem e se interpõem nas reconstruções de um passado recontado por meio de materialidades que representam temporalidades e contextos socioculturais específicos, quer sejam três séculos, três milênios ou mesmo três décadas.

Dessa forma, o curso contribuiu não apenas para uma aproximação com as pesquisas e questões arqueológicas em um espaço tão familiar para cidadãos cariocas e fluminenses, mas também para fazer refletir sobre o potencial informativo, os papéis e impactos dessa materialidade em suas diferentes manifestações.

Da materialidade das ações perdidas no tempo, cujos vestígios e remanescentes nos ajudam a reconstruir aspectos do passado, à materialidade de nossas ações presentes, construtoras da Baía do futuro: cabe a nós decidir e agir para que esse futuro não seja um lamento e que as marcas da poluição, da degradação ambiental e da precariedade de assentamentos humanos, que tanto vemos hoje, não sejam mais do que objeto de estudo de arqueólogos futuros, buscando entender as idiossincrasias e paradoxos de nossa sociedade atual.

Claudia Carvalho

Arqueóloga pela Universidade Estácio de Sá, doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ, possui especialização em Paleopatologia e mestrado em Saúde Pública também pela mesma instituição. É professora do Setor de Antropologia Biológica do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e responsável por disciplinas no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia e no curso de especialização em Geologia do Quaternário desta instituição. É docente da graduação em Ciências Biomédicas da UFRJ, habilitação forense. Foi diretora do Museu Nacional e da Casa da Ciência. Atualmente coordena o Núcleo de Resgate de Acervos do Museu Nacional e dirige o Sistema de Museus Acervos e Patrimônio da UFRJ (SIMAP).

Compartilhe

Leia também