Artigo

Baía da Guanabara: a ciência por baixo de suas águas

Paulo Cesar de Paiva, 28/06/2023

Conhecida por sua beleza, definida como “mui formosa e ampla” por José de Anchieta — a despeito de sua forma de “boca banguela”, segundo Lévi-Strauss1 —, imponente e circundada por milhares de pessoas que dela usufruem, incluindo as que a consideram somente mais um corpo de água, a Baía de Guanabara resiste. Quando nos referimos a sua resistência, estamos considerando também a vida aquática que sobrevive apesar dos percalços: (1) grandes aterros que diminuíram a circulação das águas; (2) construções e outras intervenções civis ao longo das margens; (3) destruição dos seus imensos manguezais, reduzidos de uma área original de 250 km2 para os atuais 74 km2;2 (4) o aporte de esgotos e outros resíduos industriais e domésticos diretamente pelos sete municípios ao seu redor ou em sua ampla bacia de drenagem que abarca cerca de 16 municípios do estado do Rio de Janeiro, cujos rios nela deságuam.3  A vida nas águas da Baía é constituída por uma combinação de animais residentes, típicos deste tipo de ambiente caracterizado como um sistema estuarino, com animais de natureza mais oceânica que  visitam a região ou têm nela uma área de berçário ou de alimentação. 

Não obstante a antiga ocupação humana da Baía, o conhecimento sobre sua fauna e flora ainda é recente. Relatos e registros mais antigos estão menos no campo das ciências biológicas do que da historiografia, o que restringe a maior parte do material a alusões esporádicas provenientes de expedições. Mais recentemente, ao longo do século XX, houve um esforço de pesquisadores que, com uma profícua mistura de paixão e rigor científico, estudaram a Baía em seus diversos aspectos, como a biodiversidade4, ou, de forma integrada e com enfoque geográfico5, a qualidade6 e a complexa dinâmica7 de suas águas, alcançando sua interação com o oceano. 

Na década dos Oceanos, é fundamental que saibamos que o que acontece com a Baía de Guanabara terá consequências para o oceano adjacente, seja pela exportação de contaminantes, seja pela perda das funções de retirada do excesso de carbono atmosférico e de produção de oxigênio, alterando, portanto, o clima.  Pesquisadores de diversas instituições do Brasil8 e, especialmente, do Estado do Rio de Janeiro têm se debruçado sobre a Baía, procurando conhecer sua biodiversidade e compreender sua saúde, principalmente nas últimas décadas em que projetos ambiciosos de despoluição e conservação foram propostos enquanto grandes desastres ambientais ocorriam — como o vazamento em 2000 de 1,3 milhões de litros de óleo cru na sua porção mais interna devido ao rompimento de um oleoduto. 

Entretanto, após mais de 20 anos do vazamento, ainda há muito óleo cru nos sedimentos da Baía e, com algumas variações, os indicadores de poluição por esgotos domésticos são muito altos — sugerindo que, apesar da construção e implementação de um número maior de usinas de tratamento, elas não deram conta do aumento de descarga devido ao aumento da população humana no entorno.  As respostas da fauna e flora em termos de biodiversidade demonstram que a qualidade da água nas áreas mais internas da Baía continua muito preocupante, enquanto as áreas mais externas, próximas à entrada da Baía, ao largo dos municípios do Rio de Janeiro e de Niterói, apresentam melhor qualidade — mesmo que algumas áreas mais internas destas regiões, onde a circulação de água é muito restrita, sejam muito degradadas, como as enseadas de Jurujuba e de Botafogo. 

Estudos realizados em longa escala de tempo sugerem uma Baía que ainda resiste em função da entrada de águas oceânicas limpas e oxigenadas provenientes da mesma massa de água que aflora na região de Cabo Frio e que, de certa forma, “lavam” a Baía. Esta influência é maior na área do canal central, mas atinge mesmo áreas mais internas próximas da Área de Proteção Ambiental de Guapimirim (APA-Guapimirim) e a Estação Ecológica da Guanabara (ESEC-Guanabara) (Figura 1).  Estas áreas se destacam como berçário para diversos animais marinhos, incluindo peixes de importância comercial. A complexa dinâmica do ecossistema da Baía de Guanabara leva à presença de peixes e crustáceos de importância comercial típicos das regiões estuarinas; além de espécies marinhas que são visitantes comuns da região; ou mesmo espécies marinhas mais esporádicas. Com isso, temos uma intensa produção pesqueira que varia de 200 a 1000 toneladas por mês de pescado.9 Essa complexidade também se reflete na manutenção de uma pesca artesanal consistente na região, com impactos socioeconômicos para comunidades tradicionais do seu entorno, que têm nela sua subsistência, a despeito de demandas conflitantes como a restrição de atividade pesqueira em mais de 80% da área da Baía de Guanabara.10 

Entretanto, na região intermediária entre as áreas externa e interna é que os estudos recentes têm demonstrado uma piora na qualidade em termos de biodiversidade e de indicadores ambientais baseados na ocorrência de espécies de invertebrados marinhos mais sensíveis.

Condição ambiental das principais áreas marinhas da Baía de Guanabara. As barras indicam escala de valores  (tons de azul indicam indicadores positivos, tons de vermelho, negativos). Biodiversidade: número de espécies habitantes; Hidrocarbonetos: hidrocarbonetos derivados de petróleo;  Esgoto: indicadores de esgoto doméstico. Dados baseados nos dados brutos obtidos de Fries et al.3 e Valentin et al.7 

Áreas próximas aos municípios de São Gonçalo e Itaboraí, onde haviam localidades com biodiversidade relativamente alta  e indicadores bióticos adequados há 15 anos, hoje se encontram em um estado bem crítico, similar às áreas mais impactadas das áreas mais internas da Baía.

Embora os estudos de longo prazo tenham se concentrado mais em poluentes de petróleo e resíduos orgânicos de esgotos domésticos, estudos mais recentes têm focado na presença de microplásticos no sedimento, na água e nos organismos. 

Os resultados indicam que a Baía de Guanabara é uma das mais poluídas do mundo quanto à quantidade de microplásticos nos sedimentos.  Em algumas áreas da baía, as fibras plásticas são mais abundantes que anelídeos11, item dominante na dieta de alguns peixes, como corvinas e bagres. Portanto, aumentando as chances de estas fibras serem consumidas por animais que se alimentam no sedimento.

Outra preocupação recente que vem sendo abordada e que se relaciona, não apenas à Baía, mas à costa brasileira como um todo, é a perda da biodiversidade, bem como uma mudança no panorama atual com a chegada de espécies exóticas — possivelmente, em alguns casos, devido à substituição das espécies nativas. Entre os invertebrados se destacam, pela dominância, espécies exóticas de ostras, crustáceos e anelídeos. Entretanto, este é um processo demorado e o estabelecimento, há quase uma década, de algumas destas espécies ainda não nos permite afirmar qual o real impacto destas invasões para além da alteração da paisagem marinha, das praias e de costas rochosas da Baía. Não obstante, já se nota que a facilitação da entrada de algumas espécies exóticas e a redução das formas nativas podem estar associadas às mudanças ambientais.12 Ou seja, sendo um ambiente diferente, espécies diferentes acabam por substituir  as nativas sem que, no entanto, haja alguma competição entre elas. Entre as alterações, merece destaque o aquecimento das águas superficiais na costa sudeste do Brasil (Figura 2). Anomalias de até 2o C nos últimos 20 anos nas águas que banham a Baía de Guanabara devem, além de levar à expansão de espécies de águas mais quentes, também afetar as condições ecológicas locais. O aquecimento associado ao excesso de matéria orgânica (eutrofização), natural ou causado pela poluição orgânica, e ao déficit de oxigênio (demanda bioquímica de oxigênio) podem alterar profundamente as condições de vida, especialmente nas áreas mais internas da Baía (Figura 1). Processo este que afeta a capacidade de remoção ou “sequestro” de CO2, tornando algumas áreas verdadeiros pântanos, como se observa na porções mais próximas do município de Duque Caxias, ou entre a Ilha do Fundão e a costa. Tal sequestro é um dos papéis fundamentais dos ambientes marinhos para frear o aquecimento global.

Anomalia térmica das águas superficiais na região oceânica na costa sudeste do Brasil (24oS 44oW Fonte: NOAA NCDC ERSST version5)

Em síntese, esta Baía complexa que interage com o entorno e com o oceano adjacente, afetando e sendo afetada por ambos, fornece uma série de serviços ecossistêmicos importantes, como amenização do clima, alimento, transporte, lazer, não apenas para a população do seu entorno, mas também para o estado do Rio de Janeiro ou mesmo para o país, considerando o impacto para o turismo deste singular e “formoso” cartão-postal brasileiro. 

Notas

  1. https://riomemorias.com.br/memoria/da-mais-bela-a-boca-banguela-a-baia-de-guanabara-sob-olhares-do-mundo/ Visitado em 10/06/2023. [voltar]
  2.  Soares, M.L.G. et al. (2018). Caracterização e conservação das florestas de mangue.  In: Valentin, J.L.; Paiva, P.C. & Salomon, P.S (Org.). A Baía de Guanabara: passado, presente e futuro de um ecossistema ameaçado. Curitiba, CRV.p. 235-254. [voltar]
  3. Fries, A.S. et al. (2019) Guanabara Bay ecosystem health report card: Science, management, and governance implications, Regional Studies in Marine Science, vol. 25, 100474. [voltar]
  4. de Oliveira, L. (1950). Levantamento Biogeográfico da Baía de Guanabara. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 48, p. 1 -35.  [voltar]
  5. da Silva Amador, E. (2013). Baía de Guanabara: ocupação histórica e avaliação ambiental. Rio de Janeiro.  Editora Interciência. [voltar]
  6. Mayr, L.M et al (1989). Hydrobiological Characterization of Guanabara Bay. In Magoon O.T. and Neves, C.  (Eds), Coastlines of Brazil, New York: American Society of Civil Engineering, p. 124-139 [voltar]
  7. Kjerfve, B. et al (1997). Oceanographic characteristics of an impacted coastal bay: Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, Brazil. Continental Shelf Resesearch 17: 1609-1643. [voltar]
  8. Valentin, J.L. Paiva, P.C. & Salomon, P.S. (2018). A Baía de Guanabara: passado, presente e futuro de um ecossistema ameaçado. Curitiba. Editora CRV. [voltar]
  9. Vianna, M. & Mattos, F.P. (2018). Pesca estuarina metropolitana. In: Valentin, J.L.; Paiva, P.C. & Salomon, P.S (Org.). A Baía de Guanabara: passado, presente e futuro de um ecossistema ameaçado. Curitiba, CRV. 259-274. [voltar]
  10. Neffa, E. et al. (2018). Conflitos socioambientais da Baía de Guanabara. In: Valentin, J.L.; Paiva, P.C. & Salomon, P.S (Org.). A Baía de Guanabara: passado, presente e futuro de um ecossistema ameaçado. Curitiba, CRV.p. 291-300. [voltar]
  11.  Figueiredo, G.M. et al. (2023). Ecological status of the highly impacted estuary Guanabara Bay assessed using macrofaunal indicators. Regional Studies in Marine Science, 57, 102745 [voltar]
  12. Puga, C.A. et al. 2019.  Multi-year changes of a benthic community in the mid-intertidal rocky shore of a eutrophic tropical bay (Guanabara Bay, RJ – Brazil). Estuarine Coastal and Shelf Science, v.226, 106265  [voltar]
Paulo Cesar de Paiva

Professor Titular do Departamento de Zoologia do Instituto de Biologia da UFRJ. Graduado em Ciências Biológicas com pós-graduação em Oceanografia (USP). Tem se dedicado ao estudo da biodiversidade, biogeografia e ecologia da fauna de invertebrados marinhos ao longo da costa brasileira. Atualmente é vice-coordenador do Programa Ecológico de Longa Duração da Baía de Guanabara (PELD). Contato: paulo.paiva@gmail.com

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