Comunicação

De que jornalismo precisamos?

Marcelo Kischinhevsky, 28/06/2023

Foto: Luiz Bhering

Os manuais de redação de jornalismo costumam condenar textos jornalísticos que recorrem a perguntas logo na abertura. A justificativa, permeada de uma visão positivista da atividade profissional, é que jornalistas devem dar respostas, e não levantar dúvidas. Mas, hoje, diante da pandemia de desinformação e dos abalos à credibilidade de tradicionais veículos jornalísticos, ainda faz sentido vender certezas?

Seria muito cômodo reduzir a crise do jornalismo ao colapso de seu modelo de negócios, até o século XX bancado pela publicidade massiva, que nas últimas décadas migrou para o comércio eletrônico. A crise é muito mais profunda e tem relação direta com a fragmentação social, com o enfraquecimento de instâncias de mediação estabelecidas ao longo de séculos. Com a monetização inescrupulosa oferecida pelas plataformas digitais, discursos negacionistas, que atacam os saberes estabelecidos (como a ciência e o jornalismo profissional), circulam livremente, protegidos sob o manto da liberdade de expressão, ainda que colocando em xeque a própria democracia.

Nesse contexto, em que opiniões pessoais e perspectivas subjetivas são usadas como régua para medir a veracidade dos fatos e, por tabela, a credibilidade das mídias, de que jornalismo precisamos? Como aparar arestas e construir novos consensos sociais e políticos, que permitam avançarmos em políticas públicas visando ao desenvolvimento sustentável?

A resposta está longe de ser trivial. Não é prudente acreditar que pessoas defendem pautas retrógradas, como o crescimento econômico à custa de desmatamento, simplesmente por estarem desinformadas. Claro, há uma extrema-direita solidamente financiada propalando mentiras e informações distorcidas visando a se contrapor a pautas progressistas, que promovem inclusão social e redução das desigualdades. Mas talvez haja algum nível de representatividade: parcelas significativas da população miram em interesses comezinhos em vez de pensarem no bem comum; farinha pouca, meu pirão primeiro; se é pra achar ouro e ficar rico, por que não usar mercúrio para garimpar pepitas na bateia, mesmo que isso contamine os rios e deixe outras pessoas doentes?

Daí a importância de recuperarmos o papel do jornalismo como espaço de reconhecimento, de conciliação de interesses, como forma de mediação social. E, nesse contexto, a cobertura dos acontecimentos relativos ao ambiente em que vivemos ganha caráter cada vez mais estratégico, ainda mais em tempos de mudanças climáticas, que impulsionam eventos extremos.

Esse foi o foco da mesa “Desenvolvimento sustentável em pauta: A cobertura dos ODS e os desafios do jornalismo ambiental”, promovida no âmbito da exposição “Futuros da Baía de Guanabara”, no Auditório da Central de Produção Multimídia (CPM) da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), campus Praia Vermelha.

O evento, realizado no dia 8 de maio de 2023, reuniu os especialistas Agostinho Vieira, criador do Projeto #Colabora, e Anápuàka Muniz Tupinambá, conselheiro do É Nóis — Laboratório de Jornalismo, com mediação do autor deste artigo e de Patrícia da Veiga.

Para Agostinho Vieira, que dirigiu o jornal O Globo, o Sistema Globo de Rádio e a Rádio CBN, e hoje cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, a cobertura do meio ambiente deveria estar em todas as editorias. À frente do #Colabora, o jornalista pauta o noticiário do portal pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), agenda global formulada no âmbito das Nações Unidas que propõe 17 metas a serem atingidas até 2030, como a erradicação da pobreza, a proteção ao meio ambiente e o enfrentamento das mudanças climáticas.

“Essa discussão [de sustentabilidade] tem mais ou menos 50 anos, e o jornalismo veio junto. A pergunta que se coloca é: será que esse termo ‘jornalismo ambiental’ não ficou velho? Existe hoje uma fusão muito grande entre o social, o ambiental, o ético. Talvez a gente tenha que criar outra coisa, um jornalismo que tenha uma visão mais holística do problema, que é o que os ODS têm”, defende.

Fundador da primeira web rádio indígena do país, a Yandê, e do Open Banking Indígena, Anápuàka Muniz Tupinambá advoga por uma cobertura ambiental de caráter transversal, que não leve em conta somente aspectos econômicos. “Quantos carros eu tenho que ter, quantos celulares? Como mídias indígenas, que estamos no território, a gente busca o tempo todo as pautas do meio ambiente, a gente compreende que o rio, a mata são seres vivos. Mas cobrir e pensar ODS o tempo todo é muito novo, mesmo para as mídias étnicas, mídias de movimentos sociais, ativistas”, afirma Anápuàka, que dá aulas de empreendedorismo em comunidades carentes do Rio e insiste na importância dos ODS e dos princípios ESG (sigla em inglês para meio ambiente, sustentabilidade e governança), adotados por empresas e cada vez mais cobrados pelo mercado financeiro global.

No entanto, apesar do aumento do número de eventos extremos, como enchentes e secas, e da degradação ambiental, os ODS atraem pouca atenção midiática e, consequentemente, têm impacto limitado em políticas públicas. Precisamos repensar o papel do jornalismo e construir mídias universitárias empenhadas em fazer a diferença nessa arena simbólica. Só assim poderemos pautar temas como mudanças climáticas e construir um jornalismo que não restrinja a cobertura ambiental a uma única editoria. A Rádio UFRJ tem buscado fazer a sua parte, afirmando seu compromisso com ODS como Educação de qualidade, Saúde e bem-estar, Igualdade de gênero e Redução das desigualdades.

Em tempo: a mesa “Desenvolvimento sustentável em pauta: A cobertura dos ODS e os desafios do jornalismo ambiental” foi gravada, e a íntegra se tornou um episódio especial do programa Papo Federal, veiculado na Rádio UFRJ. Clique aqui para ouvir e participe desse debate. É hora de repensar o jornalismo e de formular novas perguntas.

Marcelo Kischinhevsky

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e dos cursos de Jornalismo e Radialismo da Esola de Comunicação da UFRJ. É doutor e mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição e bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, dirige o Núcleo de Rádio e TV (NRTV), órgão suplementar do Fórum de Ciência e Cultura, responsável pelo desenvolvimento da Rádio UFRJ.
Contato: marcelok@forum.ufrj.br

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