Ancestralidade

As águas, o ambiente e os povos de religião de matrizes africanas

Marcia Cabral da Costa, Rosângela Omimrenã, Iyalorixá Marlise Vinagre, Mãe Manu da Oxum, IyaOlorixa Roberta de Yemonja, Iyá Marli, Pai Caio e Rodrigo Carneiro Rosa/Iwin L´Orun Egbé Tayó, 28/06/2023

Foto: Eneraldo Carneiro (FCC/UFRJ)

Para ela a senhora da vida, iremos falar, são palavras escritas, nem sempre entendidas e só aprendidas por quem quer voar… Suas cores diversas e suas formas incertas a nos embriagar com a transparência e o perfume do mar… para as águas corremos, pelas águas nos vemos e com as águas crescemos até separar, o fora de dentro o dentro de fora, assim como o próprio ar… O seu colo é perfeito e só acolhe com jeito a quem lhe respeitar.

Trecho de “O Sal que não vai nos salgar”, poesia de Rosângela Omimrenã, escritora e Ialorixá dirigente do Ilê Axé Oxum Omim Igbó.

À convite da Superintendência de Saberes Tradicionais (SuperSaberes), nova Superintendência do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, sete sacerdotes de casas de Candomblé e de Umbanda do estado do Rio de Janeiro compuseram a mesa “As águas, o ambiente e os povos de religião de matrizes africanas”.

O debate — presente na programação científica e cultural da exposição Futuros da Baía da Guanabara — teve como ponto central o papel dos povos de terreiro e o cuidado com o meio ambiente. Os fragmentos das narrativas de mães e pais de santo, como costumam ser chamadas/os essas lideranças religiosas, são convites à percepção sobre os valores afro-civilizatórios que constituem os modos de ser e estar no mundo das populações pertencentes às tradições de matrizes africanas. Tradições que estabelecem relações harmoniosas e respeitosas com os elementos naturais, porque, para os povos de terreiro, as águas, por exemplo, são divindades, e por isso seus posicionamentos em relação a esse elemento sagrado são de total reverência e preservação.

A mesa trouxe também a materialidade das estratégias criadas para uma educação ambiental pautada nos saberes tradicionais. As discussões sobre racismo estrutural, religioso e ambiental dialogaram de modo diferencial com o tema da exposição.

Este manuscrito, a 16 mãos, é parte dos feitos que lideranças espirituais de matrizes africanas têm realizado junto à SuperSaberes. Um trabalho que, junto aos demais grupos pertencentes às comunidades tradicionais e de culturas populares brasileiras, vem construindo na SuperSaberes orientações para políticas de inclusão de mestras e mestres, e seus saberes tradicionais, na UFRJ — não mais como objetos de pesquisa, mas como sujeitos e coletivos com agências próprias. Seguindo a metodologia dos terreiros, ou seja, a de fazer atividades em formatos de roda, ou de giras, como se falam em muitas casas, as narrativas aqui memoráveis convidam o leitor a refletir sobre cada fragmento, seguindo uma circularidade, como afirma o mestre quilombola Nêgo Bispo, de início-meio-início.

Assim, o convite é de que essas narrativas possam ecoar no leitor a urgência do cuidado com o planeta, a importância dos povos das tradições de matrizes africanas (potmas) para a preservação do meio ambiente, e a premência de se romper com o racismo religioso — racismo perpetuado por povos de bases ideológicas/religiosas que alimentam práticas de extermínio de vidas e culturas ligadas às matrizes africanas.

Odoya mãe Iemanjá
Mãe sereia a me guiar
No balanço, ondas do mar
Faz sereno navegar
Somos filhos em evolução
Sua morada é a nossa proteção
Nos ensine a preservar
Pois quem ama cuidará
“Sobre ofertas no mar vou lhe explicar”
Farei da areia meu altar
Como humilde filha preservar
Minha tradição é com Iemanjá
Ofereço nessa areia meu barquinho, fruta e amor
E jogo em suas águas gratidão, pois me guardou
Farei da areia meu altar.

Composição e canto de abertura da mesa
Mãe Manu da Oxu

Figura 1 Escultura da Orixá Yemonja confeccionada a partir de materiais recicláveis (Terreiro Sustentável)

A água como fonte da vida e da existência da pessoa, segundo os Povos do Tronco Linguístico Yorùbá

Debaixo d’água protegido.
Salvo, fora de perigo, aliviado, sem perdão e sem pecado.
Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar.
(…)
Debaixo d’água tudo era mais bonito.
Mais azul, mais colorido, só faltava respirar.
Tinha que respirar, todo dia.

Trecho de canção de Arnaldo Antunes

A água é tudo, pois convida-nos à contemplação e às memórias afetivas; dela provém os mitos e divindades. Ela é a fonte de bem-estar gratuito, que está presente em tudo que cresce e que é natural. Insubmissa, incontrolável, geradora e mantenedora da vida. É também causadora de morte por sua falta e assim torna-se disputada e amada. Aquela de onde surge a Vida.

Ìyá Marli Ògún Méjìre, Ekéji Ethel Ramos de Oliveira Ode Kewála
Centro Cultural Rouxinol

O sistema capitalista vigente no Brasil caracteriza-se como um modelo de exploração e de opressões – decorrentes do patriarcado e do racismo estrutural sistêmico, institucional e religioso -, extremamente colonizador, eurocêntrico, violento, predador e destrutivo da natureza, com prevalência de interferência de ações de desmatamento e poluição ambiental em nascentes, rios, mares, solo e animais, seja pela ação descontrolada das indústrias, do agronegócio ou da mineração. Este quadro compromete gravemente as condições de vida e saúde da população, impactando especialmente determinados grupos. Dentre estes, se encontram as populações periféricas (na maioria constituída por negros e adeptos de comunidades tradicionais de religiões de matrizes africanas), os povos originários, povos quilombolas, e outros em condições de maior vulnerabilidade econômica, como as mulheres e a população lgbtqiap+ e não binários. Estes grupos ficam expostos a condições indignas de vida e saúde física, mental/espiritual, à exclusão do trabalho e do acesso a serviços e a bens socialmente produzidos, à insegurança alimentar, desnutrição ou fome.

As mudanças climáticas se tornaram uma das maiores preocupações globais da atualidade, e as ações antrópicas, como o desmatamento de áreas protegidas, contribuem significativamente para esse problema. O desmatamento aumenta a liberação de gases de efeito estufa na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global. Além disso, o uso indevido do espaço público e a extração irregular de areia dos leitos dos rios também afetam diretamente a qualidade da água e a vida aquática, impactando todo o ecossistema local. Especificamente em relação aos povos tradicionais de religiões de matrizes africanas, os efeitos da degradação ambiental e das alterações climáticas atingem diretamente o legado dos saberes/fazeres litúrgicos, uma vez que se tratam de práticas sócio-religiosas voltadas à Natureza (nossa Casa), onde a água, a fauna, as árvores e as folhas ocupam posição de centralidade nesse patrimônio. Segundo a cosmo-percepção dos chamados “povos tradicionais de terreiro” a natureza é sagrada!”. 

Iyalorixá Marlise Vinagre
Dirigente da Comunidade Tradicional de Terreiro Ile Axé Egbé Iyalode Oxum Kare Ade Omi Aro (Prados Verdes, Nova Iguaçu/RJ)

Figura 4 Mesa “As águas, o ambiente e os povos de religião de matrizes africanas” reuniu sete sacerdotes de casas de Candomblé e de Umbanda do estado do Rio de Janeiro. Foto: Luiz Oliveira

O elemento água é elo que une toda a diversidade dos povos e comunidades tradicionais de matrizes africanas. A partir dela ocorre toda a manutenção necessária das tradições. A preservação e conservação das fontes de água, rios, mares estão presentes nos saberes e fazeres ancestrais dos potmas. Compartilhando dos mesmos objetivos que a Organização das Nações Unidas (ONU), o Instituto Terreiro Sustentável, juntamente com 270 representantes potmas de todos o território brasileiro, organiza uma Agenda 2030 dos povos de terreiros traduzindo para uma linguagem tradicional as metas a serem alcançadas. As divindades Oxum e Yemoja representam em todos os seus principios os ODS 06 (Água potável e Saneamento) e o ODS 14 (Proteger a vida marinha), respectivamente. O reconhecimento dessa similaridade contribui para resgate dos saberes ancestrais, assim como o combate ao racismo religioso e ambiental.

Figuras 2 e 3 ODS dos Povos de Terreiro (Instituto Terreiro Sustentável)

Rodrigo Carneiro Rosa / Iwin L´Orun Egbé Tayó
Babalorisá do Terreiro de Obatalá – Ile Omi Orun. Presidente do Instituto Terreiro Sustentável

O meio ambiente precisa ser respeitado e preservado. Minha fala se atenta à zona oeste do Rio de Janeiro, onde a contaminação da Baía de Sepetiba causou desgastes e perdas significativas para a população pesqueira local. Hoje em dia, é raro encontrar marisqueiras, infelizmente, devido à grande contaminação na Baía. O desrespeito à natureza gera impactos violentos em toda a sociedade. Como sacerdotisa de umbanda, sempre ensinei os médiuns do Templo de Umbanda Tsara Paixão Cigana a não fazerem descartes de alguidar, garrafas, taças e louças na natureza. Sempre mencionei que esses lugares são casas sagradas de nossos orixás. Há dois anos, quando encontrei o projeto do Terreiro Sustentável, fiquei muito feliz, especialmente porque veio de outra religião de matriz africana. Meu coração se encheu de esperança e cada vez mais acreditei que a espiritualidade trabalha em harmonia com a natureza. Como mencionei em minha própria canção, criada para o Presente à Iemanjá de Sepetiba, é muito importante que essa conscientização seja levada ao nosso povo, mesmo que de forma suave, harmoniosa e respeitosa. Precisamos entender que cada religioso tem seu próprio tempo para compreender que não é necessário colocar uma oferenda na cachoeira, na estrada, na encruzilhada ou dentro do mar para que a entidade receba aquele agrado.

Mãe Manu da Oxum

Figura 5 Debatedores relacionaram o cuidado das religiões de matriz africana com a preservação do meio ambiente. Foto: Luiz Oliveira

Não existe debate sério sobre crise climática sem falar dos mais afetados por ela, e de seus motivos. Historicamente, os protagonistas na preservação do meio ambiente são os povos originários e os povos tradicionais. Se quisermos dar consequência às medidas de proteção à vida na Terra, com o combate ao desmatamento e à poluição das águas, precisamos então colocar os povos originários e os povos tradicionais no orçamento da União.

Pai Caio
Tenda de Umbanda Falangeiros de Luanda

É necessário refletir que se hoje nós estamos de pé, é porque houve uma ancestralidade que esteve de joelho por nós. E nós somos responsáveis por fazer esse legado acontecer e dar conta desse legado. E o que nós queremos deixar para os nossos filhos, que virão para o futuro, é agir no presente para que o futuro seja promissor dentro do nosso sagrado, louvando e honrando os nossos ancestrais, mas não nos abdicando da responsabilidade de cuidar desse meio ambiente, de cuidar dessas águas, e de pensar que, sem essas águas saudáveis limpas e límpidas, nós não chegaremos a lugar nenhum. Porque eu não posso querer agradar Iemanjá ou Minha Mãe Oxum ou outras divindades ligadas à água sem cuidar do seu principal elemento, Omi. A água sempre acha caminho. Que as Águas da Baía de Guanabara, da Baía de Sepetiba e tantas outras achem caminho para futuro!

Roberta de Yemonja 
Yalorixa do Ile Alaketu Ase Awon Omi Yemonja/Casa das Águas de Yemonja e Caboclo Cobra Coral. Fundadora e presidente do Espaço Sociocultural Águas do Amanhã. (Colaboração de Ekedji Magda de Ossãe)
.

Marcia Cabral da Costa

Superintendente de Saberes Tradicionais do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e docente do Departamento de Terapia Ocupacional da UFRJ (superintendencia.saberestradicionais@forum.ufrj.br).

Rosângela Omimrenã

Escritora e Ialorixá dirigente do Ilê Axé Oxum Omim Igbó (rosangela@kirsch.com.br).

Iyalorixá Marlise Vinagre

Dirigente da Comunidade Tradicional de Terreiro Ile Axé Egbé Iyalode Oxum Kare Ade Omi Aro (Prados Verdes, Nova Iguaçu/RJ) e professora associada aposentada da UFRJ, doutora em Ciências Sociais (@omilewa08) (ya.marlise@gmail.com).

Mãe Manu da Oxum

Sacerdotisa de Umbanda do Templo de Umbanda Tsara Paixão Cigana (manucarvalho28@gmail.com).

IyaOlorixa Roberta de Yemonja

Yalorixa do Ile Alaketu Ase Awon Omi Yemonja/Casa das Águas de Yemanja e Caboclo Cobra Coral. Fundadora e presidente do Espaço Sociocultural Águas do Amanhã (aguasdoamanhaprojeto@gmail.com).

Iyá Marli

Centro Cultural Rouxinol – Ekéji Ethel Ramos de Oliveira e Ode Kewála (azevedo.marli@yahoo.com.br).

Pai Caio

Tenda de Umbanda Falangeiros de Luanda (caiobayma@gmail.com).

Rodrigo Carneiro Rosa/Iwin L´Orun Egbé Tayó

Babalorixá do Terreiro de Obatalá – Ile Omi Orun. Presidente do Instituto Terreiro Sustentável (terreirosustentavel@gmail.com)

Leia também