Como surgiu o Universo? Existe vida fora da Terra? Quantos planetas existem fora do Sistema Solar? Tais questionamentos, ligados à nossa própria existência e ao nosso lugar no Universo, fazem da Astronomia uma disciplina das mais motivadoras para o ensino de ciências. Além disso, a astronomia encontra-se incorporada ao nosso cotidiano, nos auxiliando na compreensão do mundo em que vivemos e do qual fazemos parte como observadores e agentes modificadores.
A Terra como planeta e sua movimentação no espaço, o dia e a noite, as estações do ano e o tempo são questões mais rotineiras ligadas à Astronomia. Por seu caráter atrativo, a Astronomia tem se mostrado uma das disciplinas mais motivadoras para despertar o interesse de jovens para as áreas de ciência e tecnologia, além de popularizar a ciência nas diversas camadas da população.
Quando pensamos em Astronomia logo nos vem à mente imagens fantásticas difundidas pela mídia e imaginamos que seria impossível passar tais sensações para pessoas cegas. Isso não é verdade. Se pensarmos que todos nós temos limitações causadas pela atmosfera terrestre – o que nos faz ver somente uma minúscula faixa do espectro eletromagnético – e que dependemos de satélites, telescópios espaciais e detectores específicos para enxergar o Universo, percebemos que é possível sim ensinar Astronomia para cegos. Temos apenas que desenvolver “filtros específicos” para que o universo seja revelado para quem não enxerga. Nossos “filtros específicos” são materiais táteis adaptados, livros falados, jogos, objetos 3D, textos escritos em braille e em formato ampliado. Desse modo o universo se abre também para quem não pode ver.
O projeto Universo Acessível nasceu para tornar o Observatório do Valongo acessível para receber pessoas com deficiência visual. O início da produção de material foi intuitivo e tornou-se mais adequado graças à parceria com o Instituto Benjamin Constant (IBC). Os componentes são professores do IBC e estudantes de diferentes cursos de graduação da UFRJ. São alunos de Astronomia, Física, Arquitetura, Terapia Ocupacional, Design e Geologia, mostrando o caráter multidisciplinar não só do projeto em si, mas da própria Astronomia.
De fato, esse caráter interdisciplinar envolve conhecimentos de Química (Astroquímica), Física (Astrofísica), Matemática, Geologia (Astromineralogia, Geologia Planetária, por exemplo) e até mesmo Biologia (Astrobiologia), abrindo perspectivas para um trabalho transversal tanto no Ensino Fundamental, quanto no Ensino Médio.
No entanto, ainda há muitos problemas com o ensino de Astronomia no ensino básico e esse problema se acentua para o caso de alunos cegos, com baixa visão e visão monocular, pois falta material adaptado para atender às necessidades educacionais específicas deste público.
Desde 2017, o grupo de pesquisa Universo Acessível, do Observatório do Valongo da UFRJ, junto com o grupo Ciência ao Alcance das Mãos, do IBC, tem desenvolvido diversos materiais acessíveis a fim de contornar a problemática apresentada no ensino de Astronomia para pessoas com deficiência visual.
Nosso objetivo central é levar o conhecimento da Astronomia para pessoas com deficiência visual, tanto ao público visitante no Observatório do Valongo quanto aos estudantes do ensino básico. O apoio do IBC é fundamental, uma vez que o Instituto é referência nacional em questões relacionadas à deficiência visual. Possui escola, oferece formação continuada a profissionais na área de deficiência visual, assessora escolas e instituições, produz material especializado, impressos em braille, e publicações científicas.
Além disso, o IBC pode distribuir, mediante solicitação, material didático adaptado para instituições públicas de ensino no Brasil, que atendam alunos com deficiência visual. Com o apoio de professores e profissionais cegos do IBC, desenvolvemos e testamos material 3D, utilizando papel machê e recursos didáticos em relevo, os quais abordam diferentes aspectos da Astronomia. Também contamos com o apoio dos professores do IBC para realizar testes do material produzido em sala de aula.
Todo material desenvolvido no projeto segue as diretrizes apresentadas na Base Nacional Comum Curricular. Assim, cada material desenvolvido poderá ser aplicado em diferentes anos da Educação Básica. Uma vez escolhido o tema e escrito o texto e figuras a serem adaptadas, passamos aos professores do IBC para que verifiquem a adequação das escolhas. Uma vez aprovado, iniciamos o processo de texturização. Um dos tipos de material que desenvolvemos são cadernos didáticos grafotáteis, que utilizam a técnica de termoformagem. Sobre folhas previamente texturizadas são “impressas” folhas de PVC, deixando figuras e texto em alto revelo. Esse trabalho é desenvolvido pelo IBC.
Os cadernos são separados por temas e, paralelamente, desenvolvemos material 3D, a fim de complementar o aprendizado. Uma vez finalizado, levamos o material ao IBC para teste com revisores cegos capacitados para verificar o Sistema Braille presente no material e também a texturização das figuras que foram realizadas e, depois de aprovado, este é avaliado em sala de aula.
Utilizamos metodologia científica para os testes e resultados. Todo material segue o mesmo ritual: desenvolvimento, testes, ajustes, testes em sala de aula, aprovação/novos ajustes, finalização. Os estudantes de Astronomia, Geologia e Física produzem o conteúdo, as alunas de Terapia Ocupacional indicam materiais e texturas e a aluna de Design produz os desenhos e a diagramação dos cadernos e jogos. No entanto, é incentivado que todos os estudantes trabalhem com as texturizações e apresentem propostas de materiais, temas e produtos a serem desenvolvidos.
Faz parte do escopo do trabalho que os estudantes tenham um maior contato com a deficiência visual a fim de proporcionar uma formação mais completa na área da Educação Especial e Educação Inclusiva. Já foram criados quatro recursos didáticos grafotáteis, dois testados e registrados com número ISBN, um texturizado, mas ainda não testado, e outro ainda por texturizar.
Os temas abordados envolvem conteúdo curricular aplicado nos anos finais do Ensino Fundamental. São eles: Caderno grafotátil “Astronomia I – Terra à Lua e seus movimentos”, em que são abordados os movimentos Terra-Sol-Lua, eclipses, estações do ano e formação da Lua. A Figura 1 apresenta uma das páginas do material. O segundo caderno grafotátil aborda o nosso Sistema Solar e sistemas extrassolares. O terceiro recurso didático fala sobre os diferentes tipos de estrelas, de galáxias e também apresenta um resumo sobre a evolução do Sol. O quarto caderno é, na verdade, a versão braille-tinta do livro falado sobre Astronomia nas culturas e tem o intuito de ensinar sobre o que os povos antigos viam no céu e como isso se relacionava com suas culturas.
Destacamos que o recurso pedagógico abrange alunos cegos, com baixa visão e visão monocular. Sendo assim, antes da transcrição textual para o Sistema Braille, há a preocupação em atender pessoas que ainda possuem resíduo visual. Para isso, utilizamos fonte ampliada e específica a esse público – APHont (desenvolvida pela American Printing House for the Blind) –, além de cores e contrastes adequados em figuras.
A adaptação da parte em tinta dos materiais é feita utilizando-se o software CorelDRAW. Posteriormente, é realizada a adaptação para os cegos com a transcrição em braille, por meio do software Braille Fácil, e é iniciado o processo de texturização das figuras em relevo, utilizando-se diferentes linhas, papéis, tecidos etc.
Durante a pandemia, no período de isolamento social, tivemos algumas dificuldades para dar continuidade ao projeto, pois todo material para texturizar encontrava-se no Observatório do Valongo. Mas, após algum (curto espaço de) tempo, reiniciamos nossa produção, agora com livros falados. Os livros falados têm seu conteúdo produzido por nós e depois seguem ao IBC. Eles são enviados para a Coordenação do Livro Falado do IBC, onde são gravados pela radialista do setor. O setor possui três estúdios com isolamento acústico e equipamentos profissionais para uma gravação e edição de qualidade. Após a edição, o material gravado em áudio é inserido no acervo do IBC para ampla distribuição nacional neste formato. A gravação é realizada utilizando uma leitura branca, onde não há dramatização.
Já se encontram publicados, registrados com número ISBN e dispostos no acervo de distribuição, três livros falados: “Desvendando o satélite natural da Terra”, onde descrevemos desde a formação da Lua, nosso satélite natural, até eclipses, fases da Lua e as missões espaciais que foram dedicadas a ela, bem como futuras missões. O livro falado “Astronomia nas Culturas” apresenta algumas das principais constelações e as lendas a elas relacionadas, sob o ponto de vista dos gregos. No livro também apresentamos algumas das constelações utilizadas por diferentes populações indígenas brasileiras. O terceiro livro falado, “História da Astronomia”, nos leva a uma viagem através dos séculos, recontando a astronomia sob o ponto de vista de gregos e egípcios, passando pela revolução copernicana até os dias atuais, com o telescópio James Webb.
Temos ainda mais dois livros na fila da gravação: “Tateando Marte”, que fala sobre o planeta vermelho e as principais descobertas feitas através de inúmeras missões espaciais dedicadas a ele e “Um guia sobre pequenos corpos do Sistema Solar”, onde apresentamos, além dos pequenos corpos propriamente ditos (asteroides e cometas e suas classificações), uma seção sobre meteoritos.
A fim de tornar o aprendizado mais lúdico, o Universo Acessível também vem desenvolvendo jogos. São quatro jogos até o momento: Astrodicas, um jogo de tabuleiro de perguntas sobre objetos astronômicos e astrônomas e astrônomos famosos; Unidade astronômica (o nome faz referência à distância Terra-Sol), foi desenvolvido para ser jogado com o auxílio do celular, em que são realizadas perguntas sobre o nosso Sistema Solar. Além desses, temos dois jogos de cartas, o CombinAstro e o DescubrAstro.
Além dos jogos, os objetos 3D têm se mostrado eficientes para fixar o aprendizado. O primeiro objeto criado foi a Lua. Sobre uma esfera de isopor de 70 cm colamos o mapa real da superfície da Lua, em gomos. Sobre esse mapa foram criadas as texturas, identificando as principais crateras e os mares lunares – na verdade são planícies que levam o nome de mar. Usamos papel machê e camurça em pó para diferenciar as planícies das crateras.
A Lua finalizada foi testada em sala de aula e depois doada ao IBC onde é usada nas aulas (Figura 2). Também criamos o kit Lua que ensina como fazer uma Lua com papel machê. O kit Lua é composto por um caderno com um texto descrevendo a Lua, sua formação, fases e eclipses. Adicionalmente, há um mapa da superfície da Lua montado em gomos e a lista de material utilizado, além de descrição detalhada para texturizar uma Lua em 3D.
Como complemento ao recurso didático grafotátil que aborda o Sistema Solar e sistemas extrassolares, desenvolvemos o sistema TRAPPIST-1 em papel machê. Tal sistema é real e conta com sete planetas orbitando uma estrela com temperatura mais baixa que o Sol. Destacamos que todo material desenvolvido é inclusivo, mas não exclusivo, podendo ser utilizado por qualquer aluno, com ou sem deficiência visual.
O trabalho desenvolvido pelo Universo Acessível promove educação inclusiva, igualitária e de qualidade. O material produzido utiliza material de baixo custo, facilitando a replicação. Além disso, transmite conhecimento astronômico, a Astronomia age como mecanismo motivador para o ensino de outras ciências, incentivando os estudantes a seguirem carreira nas áreas de ciências, promovendo um impacto científico e social.
Para conhecerem um pouco mais sobre os trabalhos desenvolvidos, os interessados podem seguir as redes sociais dos grupos de pesquisas Universo Acessível e Ciência ao Alcance das Mãos. Lá são encontradas fotos de alguns dos materiais produzidos, dicas e publicações científicas na temática descrita neste artigo.
- Silvia Lorenz-Martins
Professora associada do Observatório do Valongo-UFRJ. Graduada em Astronomia (UFRJ), tem mestrado em Astronomia pelo Observatório Nacional e doutorado em Ciência Físicas pela Universidade de Nice, França. Coordenadora do projeto Universo Acessível. Contato: slorenz@ov.ufrj.br
- Aires da Conceição Silva
Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico/Química do Instituto Benjamin Constant atuando no Ensino Básico e no Ensino Superior. Licenciado, Mestre e Doutor em Química pela UFRJ. Tem experiência na área de Ciências, atuando no Ensino de Química com ênfase na produção de material didático especializado para pessoas com deficiência visual. Coordena o grupo de pesquisas Ciência ao alcance das mãos. Contato: airessilva@ibc.gov.br
- Priscila Alves Marques
Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico/Ciências Físicas e Biológicas do Instituto Benjamin Constant. Licenciatura em Ciências Biológicas pela UERJ e Mestrado em Ciências Biológicas (Botânica) pelo Museu Nacional – UFRJ. Contato: priscilamarques@ibc.gov.br