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Universalização da saúde: conquistas do SUS, desafios e reforma sanitária em tempos de COVID-19

Cristina Possas, 22/07/2020

Foto de SJ Obijo no Unsplash

A necessidade de uma nova reforma sanitária a partir dos desafios postos pela Covid-19 e pela possibilidade de novas pandemias

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) emergiu como resultado de um movimento social de sanitaristas e profissionais de saúde, o “Movimento da Reforma Sanitária”, iniciado na década de 1980, com amplo apoio social em uma conjuntura política complexa de início de processo de redemocratização no país que culminou com a sua inserção na Constituição de 1988. Esse movimento, liderado por Sergio Arouca, sanitarista e presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e inspirado na experiência de universalização da saúde da reforma sanitária italiana, permitiu, a partir da mobilização social contra um sistema de saúde até então excludente, a inserção na Constituição de 1988 de um novo sistema nacional de saúde, público, descentralizado, unificado e universal.

A estratégia adotada para consolidar esse projeto radicalmente transformador do sistema de saúde em nosso país foi a criação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), constituída por representantes ministeriais de diversas áreas, por representantes dos profissionais de saúde e da sociedade civil. Os trabalhos dessa Comissão foram subsidiados por documentos elaborados pelos oito grupos técnicos de apoio à CNRS, integrados por destacados especialistas de diversas áreas, criados e coordenados por Cristina Possas, recém-chegada de pós-graduação na Clinica del Lavoro, em Milão, Itália, a convite de Giovanni Berlinguer, médico que liderou a reforma sanitária naquele país.

…a reforma sanitária brasileira finalmente surgiu com a incorporação do SUS à Constituição de 1988, ainda que nem sempre fosse formulada e entendida nesses termos. Ela se impôs à época como necessidade premente para expressivas parcelas da população brasileira, que cada vez mais exigiam medidas concretas e imediatas em relação à conquista da saúde e à melhoria da qualidade de vida dos serviços a que tinham direito. A representatividade social e a capilaridade de sua abrangência são, portanto, as marcas dessa extraordinária conquista social brasileira.

Ao retornar da Itália, Possas ressaltou em seminário realizado no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), em outubro de 1985, a necessidade de implantação urgente de uma reforma sanitária no país, proposta recebida com grande receptividade pelo clima político favorável entre profissionais de saúde e na sociedade, já propício a essa mudança. Conforme depoimento da pesquisadora Sonia Fleury, uma das principais lideranças desse processo de construção do SUS, “o conceito de reforma sanitária, apesar de seu referencial teórico advir do modelo italiano, surgiu no auditório térreo da ENSP, pronunciado pela pesquisadora da Fiocruz Cristina Possas” (Fleury, 2013). A proposta nesse seminário foi então encampada pela presidência da Fiocruz, que elaborou uma estratégia para a sua implementação.

Em março de 1986 ocorreu finalmente a tão esperada 8ª Conferência Nacional de Saúde, presidida pelo presidente da Fiocruz, Sérgio Arouca. Essa conferência destacou-se pela ampla representatividade social, com a presença de 5 mil participantes, e seu relatório final serviu de base para o capítulo sobre saúde na Constituição Federal de 1988, resultando na criação do SUS. A principal recomendação dessa conferência foi a de que se constituísse uma CNRS.

Com essa finalidade foi então constituída a CNRS. Nomeada por Portaria Interministerial ‒ ministros da Saúde, Previdência e Assistência Social e Educação ‒, numa conjuntura política de transição, a Comissão era representativa de diferentes setores da sociedade brasileira e do Estado, com a incumbência de formular propostas para o reordenamento institucional e jurídico no país.

A CNRS contou para tanto com o apoio não só dos ministros que a constituíram, mas como a do próprio Presidente da República à época, José Sarney, que reiterou o seu firme posicionamento assumido perante os participantes da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Em reunião com ministros de Estado no início de 1986, reiterou mais uma vez o seu enfático comprometimento com a proposta para a nova Constituição:

Considero um dever do Estado proporcionar meios para que a saúde seja efetivamente um direito de todos. Faz-se necessária uma ampla reforma sanitária que expanda a capacidade de bom atendimento a toda a população, proporcione o acesso aos medicamentos essenciais e à vacinação, combata as grandes endemias, como a doença de Chagas, a malária e a esquistossomose, assim como elimine o risco de outras, como a dengue e a febre amarela. (CNRS, 1987)

Para apoiar tecnicamente a CNRS, foi então constituída uma coordenação técnica. Com essa finalidade, Cristina Possas foi nomeada logo após a conferência, em abril de 1986, por Sérgio Arouca, como coordenadora técnica da CNRS, com a missão de constituir, conduzir e integrar em um relatório final os trabalhos de oito grupos técnicos constituídos por especialistas de excelência, de diferentes instituições e distintas áreas do conhecimento: 1) proposta para a Constituição; 2) arcabouço institucional; 3) recursos humanos; 4) financiamento; 5) ciência e tecnologia; 6) saúde do trabalhador; 7) informação em saúde; 8) saneamento e meio ambiente.

A implementação e o fortalecimento de estratégias de impacto, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), a inovadora Estratégia de Saúde da Família (ESF) e o Programa Nacional de DST/Aids, reconhecidos internacionalmente pela sua abrangência e qualidade, entre inúmeras outras, contribuíram de forma expressiva para esses resultados.

O documento final, consolidando a contribuição desses oito grupos técnicos, resultou em extenso relatório da Coordenação Técnica (Possas et al., 1986), depois publicado pela CNRS, incorporando as contribuições recebidas pelos parlamentares Constituintes e pela sociedade, em três volumes, em uma edição de 20 mil exemplares (CNRS, 1987). Esse trabalho, que também tomou como base o relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, foi consolidado posteriormente pela Coordenação Técnica no documento-síntese “Reforma Sanitária: a hora da ação”, entregue pessoalmente ao senador Ulysses Guimarães, na qualidade de presidente da Constituinte, e aos Constituintes, por membros da CNRS, por integrantes dos grupos técnicos e por Cristina Possas, como coordenadora técnica. Posteriormente às contribuições recebidas desse documento-síntese, a versão final publicada incorporou uma proposta para o texto da Constituição e recomendações para um projeto de lei do SUS.

No entanto, como destacado no mencionado relatório final da Coordenação Técnica da CNRS, essa era uma tarefa bastante complexa. Não se tratava mais, naquela conjuntura, da mera formulação em gabinetes, de modelos de organização institucional, como objetivo a ser perseguido em perspectiva gradual e de longo prazo, como o foram anteriormente o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), criado em 1979, e o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAUDE), criado em 1981 (CNRS, 1987; Possas, 1986). As dimensões continentais do Brasil e a grande heterogeneidade entre os estados impediam que esse processo se realizasse como um pacote de medidas a serem implementadas segundo uma estrita racionalidade de planejamento. O principal desafio era, ao contrário, avaliar a viabilidade política do projeto de transformação do sistema de saúde e assegurar a sua representatividade social, com o envolvimento e a efetiva participação dos profissionais de saúde e das entidades representativas da população. Foi, portanto, necessário avaliar, em cada estado brasileiro, as peculiaridades e condições políticas locais para essa transformação, requisitos necessários para operacionalizar a descentralização e a democratização da saúde pretendidas (Possas, 1986; Possas et al., 1986; CNRS, 1987).

Apesar do amplo reconhecimento social do SUS, como a grande conquista da Constituição de 1988, existe hoje uma grande insatisfação da sociedade com relação às muito precárias condições de acesso e qualidade dos serviços, com profundas e graves distorções nos setores público e privado do sistema, que vem se mostrando incapaz de atender às crescentes e complexas demandas sociais.

Naquele cenário, a reforma sanitária brasileira finalmente surgiu com a incorporação do SUS à Constituição de 1988, ainda que nem sempre fosse formulada e entendida nesses termos. Ela se impôs à época como necessidade premente para expressivas parcelas da população brasileira, que cada vez mais exigiam medidas concretas e imediatas em relação à conquista da saúde e à melhoria da qualidade de vida dos serviços a que tinham direito. A representatividade social e a capilaridade de sua abrangência são, portanto, as marcas dessa extraordinária conquista social brasileira.

Conquistas do SUS

O SUS representou, desde a sua criação, uma mudança paradigmática pela sua dimensão ética e capilaridade social, atingindo as mais remotas e carentes localidades brasileiras, o que possibilitou um extraordinário avanço na conquista de direitos e redução das dramáticas desigualdades sociais no país. Desde então, o novo sistema contribuiu para a ampliação exponencial do acesso a serviços de prevenção e atenção à saúde.

A implementação e o fortalecimento de estratégias de impacto, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), a inovadora Estratégia de Saúde da Família (ESF) e o Programa Nacional de DST/Aids, reconhecidos internacionalmente pela sua abrangência e qualidade, entre inúmeras outras, contribuíram de forma expressiva para esses resultados.

O PNI brasileiro, reconhecido internacionalmente pela sua abrangência e pelo seu sucesso, é considerado um dos programas de saúde pública de maior efetividade e maior custo-benefício, com alta confiança da população em geral. É o programa de imunização considerado mais completo dentre aqueles dos países em desenvolvimento e mesmo de alguns países desenvolvidos. O programa permitiu drástica redução na morbimortalidade por doenças imunopreveníveis em crianças, adolescentes e adultos. Em setembro de 2016, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) o Certificado de Eliminação do Sarampo, em seguida ao Certificado de Eliminação da Rubéola, recebido em dezembro de 2015. O espetacular êxito dessas iniciativas possibilitou ao PNI evoluir e obter novas conquistas e a menor notificação de doenças imunopreveníveis da história de saúde pública do país.

O principal fator para a inviabilidade do SUS reside no fato de que o sistema, definido como universal e público, foi concebido na Constituição de 1988 e legislação subsequente de forma absurda, sem a necessária sustentação financeira, em desrespeito aos 10% do orçamento para a saúde então propostos pelos oito grupos técnicos da reforma sanitária coordenado por Possas

Ao longo do tempo, a atuação do PNI alcançou consideráveis avanços ao consolidar a estratégia de vacinação com os dias nacionais de vacinação e os crescentes investimentos governamentais no setor (Brasil, MS, 2013; Homma et al., 2013; Possas et al., 2020). O principal objetivo do programa é oferecer todas as vacinas de alta qualidade a todas as crianças em nosso país, buscando alcançar coberturas vacinais de 100%, com cobertura homogênea em todos os municípios e em todos os bairros do país, resultando em controle e eliminação/erradicação das doenças imunopreveníveis, estratégia que resultou em uma queda muito expressiva da taxa de mortalidade infantil, reduzida de 85 para 14 por mil nascidos vivos no período de 1980 a 2015.

Com relação internacionalmente reconhecida e inovador Programa de Saúde da Família, depois nomeado Estratégia da Saúde da Família (ESF), observou-se, em municípios com cobertura da ESF, drástica redução das taxas de mortalidade por doenças cardiovasculares e acidente vascular cerebral (AVC), de 31% e 36%, respectivamente, desde a sua implantação. Em 2012, a cobertura da ESF já era de 59,4%. E continuou crescendo até alcançar 70% em 2017. A ESF tem sido, portanto, o principal mecanismo para induzir a expansão da cobertura de Atenção Primária à Saúde (APS) no país, e mostra que esse modelo, quando comparado a outras formas de organização de atenção primária de saúde existentes no país, apresenta melhores resultados quanto à ampliação do acesso ao sistema de saúde e em indicadores como diminuição de internações por condições sensíveis à APS (internações evitáveis) e redução da mortalidade infantil, materna e por causas preveníveis (OPAS, 2018).

Destaca-se, finalmente, o Programa Nacional de DST/Aids, também internacionalmente reconhecido pelo extraordinário impacto das suas ações, pela excelência e mobilização social, com ativa participação da população afetada, o que permitiu a universalização do acesso à terapia antirretroviral (TARV). Essa estratégia inovadora assegurou de forma pioneira no mundo o acesso gratuito à TARV para todos os portadores de HIV/Aids, com importante impacto na evolução da epidemia no país e na redução da morbimortalidade na população vulnerável (Possas et al., 2011).

Financiamento e distorções do SUS: por uma nova reforma sanitária           

Apesar do amplo reconhecimento social do SUS, como a grande conquista da Constituição de 1988, existe hoje uma grande insatisfação da sociedade com relação às muito precárias condições de acesso e qualidade dos serviços, com profundas e graves distorções nos setores público e privado do sistema, que vem se mostrando incapaz de atender às crescentes e complexas demandas sociais. 

A institucionalização do SUS não foi suficiente, e permanecem profundas distorções que necessitam urgentemente ser superadas. Como bem ressalta Fleury, “perdemos a capacidade de sensibilizar, falta solidariedade com a população que chega ao hospital e não é atendida. Perdemos a ligação orgânica com a sociedade”. Apontando para os dilemas entre o instituinte, a sociedade civil organizada e o instituído, o SUS, a autora destaca ainda o fato de que “a Reforma Sanitária que culminou na criação do SUS não era setorial, mas sim um projeto de democracia, de sociedade e que só tem uma saída: radicalizar a democracia, radicalizar a Reforma Sanitária” (Fleury, 2013). A autora apresenta, em duas de suas publicações, uma discussão teórica mais aprofundada dessas questões (Fleury, 2009; Fleury, 2018).

Contudo, embora concebido constitucionalmente como uma política de Estado, e não de governos, o SUS ficou vulnerável aos embates políticos no seu processo de implantação. Paim oferece uma excelente retrospectiva histórica da Reforma Sanitária e desse processo de implantação do SUS nos diferentes governos desde o momento inicial de reflexão do movimento sanitarista e da criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), entidade nacional criada em 1976, cuja missão histórica é a luta pela democratização da sociedade e a defesa dos direitos sociais, em particular o direito universal à saúde (Paim, 2008).

…embora seja o maior sistema público de saúde do mundo, o gasto público do SUS fica muito aquém da média mundial, correspondendo a pouco mais da metade da média mundial conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018), 6,8%, contrastando com a média mundial de 11,7%.

O principal fator para a inviabilidade do SUS reside no fato de que o sistema, definido como universal e público, foi concebido na Constituição de 1988 e legislação subsequente de forma absurda, sem a necessária sustentação financeira, em desrespeito aos 10% do orçamento para a saúde então propostos pelos oito grupos técnicos da reforma sanitária coordenado por Possas (CNRS, 1986). Este percentual de 10% para a saúde, como já estava estabelecido para a educação, conforme proposto pelos referidos grupos técnicos, foi rejeitado por parlamentares integrantes da Constituinte. Estes parlamentares pressionaram a CNRS a retirar essa vinculação orçamentária, e a mesma não foi inserida no texto da Constituição de 1988 e nem na lei que criou o SUS. Atribuímos a essa omissão, na origem do SUS na Constituição e no posterior texto legal em 1990, da falta de uma adequada base sustentável de financiamento, todas as distorções que observamos hoje no financiamento do sistema.

A Constituição Federal de 1988 determina que as três esferas de governo, federal, estadual e municipal, são responsáveis pelo financiamento do SUS, gerando receita necessária para custear as despesas com ações e serviços públicos de saúde. Coordenar e planejar esse financiamento do sistema, promovendo a arrecadação e o repasse, assegurando a sua universalidade e integralidade, têm se mostrado, contudo, uma tarefa da maior complexidade. O subfinanciamento do sistema, agravado pela falta de recursos nos estados e municípios e pelas crescentes pressões da demanda por serviços de saúde, faz com que a questão do financiamento esteja no centro da agenda dos movimentos sociais que atuam em defesa do SUS. Em consequência, nos anos 1990, começou o subfinanciamento do SUS, quando metade da previsão orçamentária foi cortada, alegando-se, pela descentralização, que os estados seriam doravante responsáveis por parte expressiva do financiamento. Esse corte acarretou um drástico desinvestimento na capacidade instalada dos serviços de saúde no país.

Os percentuais de investimento financeiro dos municípios, estados e União no SUS são definidos atualmente pela Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, resultante da sanção presidencial da Emenda Constitucional nº 29. Por essa lei, municípios e Distrito Federal devem aplicar anualmente, no mínimo, 15% da arrecadação dos impostos em ações e serviços públicos de saúde, cabendo aos estados 12%. No caso da União, o montante aplicado deve corresponder ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido do percentual relativo à variação do Produto Interno Bruto (PIB) do ano antecedente ao da lei orçamentária anual.

Recentemente, o Ministério da Saúde, no cumprimento da Constituição Federal, da Lei Complementar nº 141/2012 e da Lei nº 8.142/90, submeteu para análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde a mudança de critério de transferência fundo a fundo para estados e municípios em dois blocos de financiamento (custeio e investimento) estabelecidos pela Portaria nº 3.992/2017, o que dificultava a transparência e o papel legal de fiscalização dos conselhos de saúde em relação à aplicação desses recursos.

É inadmissível que em um país como o Brasil, em que se paga impostos da ordem de 2 trilhões ao ano, correspondendo a uma carga tributária de cerca de 35% do PIB de uma das maiores economias do mundo, não se consiga oferecer à população um sis-tema de saúde universal mais eficaz, mais eficiente e ético, com uma adequada base de financiamento.

Outros avanços importantes também ocorreram. O Ministério da Saúde desenvolveu recentemente, em conjunto com o Conselho Nacional de Saúde, o desenho dos processos de trabalho, com os respectivos fluxos internos envolvendo esses dois órgãos, para a elaboração da Programação Anual de Saúde para 2021 e do capítulo saúde do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias da União (PLDO) para 2021, nos termos das diretrizes para o estabelecimento de prioridades para 2021 aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde. Adotou também o mesmo processo conjunto para a elaboração da programação da saúde no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2021, sendo que o PLDO e o PLOA foram submetidos à análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde previamente ao envio para o Congresso Nacional, em obediência à Constituição Federal, à Lei Complementar nº 141/2012 e à Lei nº 8.142/90.

Cabe destacar ainda que o Ministério da Saúde voltou a aplicar para ações e serviços de saúde o mesmo percentual da receita corrente líquida empenhado em 2017 (15,77%) e reduziu o saldo dos empenhos a pagar no final do exercício para 5% do total empenhado, conforme estabelece a Resolução nº 505/2015 aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde.

Contudo, em que pese esses avanços, persiste a grave questão estrutural do acentuado subfinanciamento do SUS, que precisa ser urgentemente equacionada. É interessante constatar que passados 32 anos da criação do SUS, diversas instituições organizadas em defesa do sistema reivindicam hoje que a União destine pelo menos 10% das receitas correntes brutas para a saúde pública brasileira, o mesmo percentual de 10% do orçamento da União reivindicado em 1986 pela Coordenação dos Grupos Técnicos de Apoio da CNRS e inserido no documento-síntese “Reforma Sanitária: a hora da ação”, o que acabou não se consolidando com a sanção da Lei Complementar nº 141/2012, que regulamentou a Emenda nº 29, de 2000.

Agravou esse quadro o fato de que, apesar de metade da população brasileira ter sido incorporada ao sistema de saúde em uma década, desde a criação do SUS, muitas distorções foram criadas no sistema de financiamento e pagamento pelos serviços, para o que contribuíram os impasses decorrentes do novo arcabouço jurídico.

O país deveria considerar também a criação no SUS de um seguro obrigatório de saúde nacional único (público, misto e privado, de acordo com o poder aquisitivo do segurado), reduzindo o atual ônus para a sociedade da oferta direta de serviços privados de baixa qualidade, sem controle, sujeitos a distorções e corrupção.

Outra questão levantada pelos movimentos sociais e de profissionais de saúde quanto ao subfinanciamento do SUS são as enormes distorções na relação público-privado, já que recursos públicos acabam sendo repassados ao setor privado.

A União, estados e municípios investem anualmente cerca de 240 bilhões de reais no sistema de saúde para atender a 150 milhões de brasileiros (75% não cobertos por seguros privados de saúde). Destaca-se ainda o fato de que embora seja o maior sistema público de saúde do mundo, o gasto público do SUS fica muito aquém da média mundial, correspondendo a pouco mais da metade da média mundial conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018), 6,8%, contrastando com a média mundial de 11,7%.

Pagamentos por procedimentos fizeram com que a média e alta complexidades se tornassem a entrada principal da população no sistema de saúde, com diagnósticos tardios e enormes desperdícios. As distorções nos repasses de recursos prosseguiram, com a rápida ampliação dos seguros de saúde, para o que contribuiu o fato de que a União assegura, através do Tesouro Nacional, o lucro e a rentabilidade dos planos privados.

Embora as classes média e alta e empregados de empresas estejam cobertos pelos planos privados de seguro-saúde e só a população carente esteja sendo na atualidade atendida pelo SUS, é interessante observar que é enorme a insatisfação com o modelo atual, mesmo entre as classes média e alta. Estas vêm reclamando de forma crescente nas redes sociais e na mídia dos seus elevados gastos com seguros-saúde e da baixa contrapartida na qualidade dos serviços na rede privada hospitalar por eles credenciada. Essa distorção decorre de um modelo de pagamento por procedimentos, que estimula procedimentos desnecessários naqueles que têm os melhores planos de saúde.

Quem tem um excelente plano de saúde está, portanto, muitas vezes em maior risco, para perplexidade de muitos, do que aqueles que são atendidos pelos hospitais públicos do SUS, apesar da precariedade destes. Ingressar hoje na emergência de um hospital privado com um plano de saúde caro, de alta cobertura, resulta em boa parte dos casos em internações e cirurgias desnecessárias, incentivadas por pagamentos por procedimentos. Pacientes de elevado poder aquisitivo com planos de alta cobertura lamentam com frequência nas redes sociais não terem se internado em hospital público, pois teriam sido liberados mais cedo e teriam sido poupados do sofrimento de irem para uma UTI sem necessidade ou de se submeterem a procedimentos e cirurgias desnecessários.

Uma pesquisa recente realizada pela OPAS no Brasil (OPAS, 2018) confirma a insatisfação social com o atual sistema de saúde e aponta a urgência de resposta a essas demandas. Realizada com atores estratégicos, gestores e ex-gestores do SUS, acadêmicos, parlamentares, dirigentes do setor privado de saúde e outros especialistas, essa pesquisa apresenta resultados em cinco blocos: (I) princípios do SUS; (II) modelo de atenção; (III) gestão; (IV) financiamento; e (V) relacionamento com o setor privado e dez aspectos detalhados no método relacionados à sustentabilidade. Concluiu, entre outros resultados, que a quase totalidade dos respondentes (97,68%) reconhece a necessidade de reformas no SUS. A maioria (77,91%) entende que essa reforma precisa ser radical, mas mantendo o caráter de sistema público universal e a garantia constitucional do direito à saúde, porém com mudanças profundas no sistema, abrangendo: relações interfederativas, relações público-privadas, modelo de atenção e marco legal. Quanto à gratuidade na prestação de serviços pelo SUS, a maioria (76,5%) acredita que a gratuidade é condição para a existência de um sistema universal e não pode ser alterada, e apenas 23,5% entendem que a gratuidade deve ser assegurada apenas para os mais pobres.

Além das questões já apontadas, relacionadas à ausência de bases de financiamento do SUS, à precariedade da sua política de recursos humanos e às graves distorções por desvios de recursos públicos e corrupção, a pandemia evidenciou também a enorme precariedade dos seus sistemas de informação em saúde em apoio à vigilância epidemiológica, laboratorial e sindrômica, essenciais para o enfrentamento de doenças emergentes como a COVID-19.

É inadmissível que em um país como o Brasil, em que se pagam impostos da ordem de 2 trilhões ao ano, correspondendo a uma carga tributária de cerca de 35% do PIB de uma das maiores economias do mundo, não se consiga oferecer à população um sistema de saúde universal mais eficaz, mais eficiente e ético, com uma adequada base de financiamento.

Como já observávamos na 8ª Conferência de Saúde, em 1986, tal forma de financiamento reflete uma concepção privada da política pública, construída sobre a noção de direito adquirido por contribuição sobre a renda – no caso, o salário –, e não sobre o conceito de bem-estar social ou de direito inerente à condição de cidadão (Possas, 1986; Possas, 1991), distorção que persiste apesar das conquistas na Constituição de 1988 e legislação subsequente.

Em síntese, são necessárias, em caráter de urgência, as seguintes medidas para redução da demanda ao sistema: maciços investimentos em medidas preventivas, como vacinas, kits para diagnóstico, educação para a saúde desde o nível elementar nas escolas e, sobretudo, ampliação da oferta de acesso à rede de esgoto, destacando-se o fato de que 40% da população e 49% das escolas no país não estão ligadas à rede de tratamento e coleta de esgoto (INEP, 2018). Finalmente, a criação de unidades intermediárias entre os postos de saúde e os hospitais, como as policlínicas, contribuiria para minimizar de forma significativa o impacto da demanda sobre os hospitais.

Quanto à má gestão, cabe destacar que as decisões no SUS são permeadas com frequência pelo imediatismo, por interesses de natureza privada e por variáveis de natureza político-partidária, ao contrário do processo decisório em países como o Canadá, a França e a Inglaterra, onde a alocação de recursos públicos se dá a partir de critérios bem definidos, transparentes e baseados em evidências (evidence-based medicine) e avaliações de custo-efetividade. É necessário, portanto, criar mecanismos de controle e fortalecimento da gestão que possibilitem a melhoria do processo decisório quanto à alocação de recursos no SUS. Por outro lado, quanto à corrupção, endêmica no sistema, é necessário e urgente criar instrumentos mais efetivos e centralizados de controle, com processos mais transparentes e mecanismos que permitam a participação mais ativa dos profissionais de saúde e dos usuários na avaliação cotidiana do sistema.

Esse tipo de estratégia securitária, unificada e centralizada, apoiada pela oferta de serviços públicos e privados sob rígido controle governamental, vigora atualmente na Alemanha, modelo que é considerado hoje um dos sistemas de saúde mais bem-sucedidos do mundo.

O país deveria considerar também a criação no SUS de um seguro obrigatório de saúde nacional único (público, misto e privado, de acordo com o poder aquisitivo do segurado), reduzindo o atual ônus para a sociedade da oferta direta de serviços privados de baixa qualidade, sem controle, sujeitos a distorções e corrupção. Essa estratégia securitária unificada, sob rígido controle governamental e social, evitaria os atuais desvios da oferta direta de serviços privados de média e alta complexidade pagos por procedimento e permitiria uma drástica redução das despesas com o SUS e com os planos privados de saúde. Esse tipo de estratégia securitária, unificada e centralizada, apoiada pela oferta de serviços públicos e privados sob rígido controle governamental, vigora atualmente na Alemanha, modelo que é considerado hoje um dos sistemas de saúde mais bem-sucedidos do mundo. Com essa estratégia, todos os brasileiros seriam usuários dos serviços do SUS, como prevê a Constituição de 1988, e não apenas os mais pobres.

Para tanto, seria necessário conceber uma estratégia de transição entre o sistema tal como está organizado atualmente e o desejado. Seria também necessário eliminar a reserva de mercado para os planos de saúde privados no país, abrindo-os à competição internacional. Essas medidas permitiriam minimizar as distorções mencionadas e maximizariam o impacto do gasto público. Contudo, serão ineficazes se não forem acompanhadas da necessária e urgente valorização da carreira do profissional médico e demais profissionais de saúde que se disponham à dedicação integral aos serviços, assegurando-se salários compatíveis com essas exigências.

Desafios: COVID-19 e preparo para pandemias

A rápida aceleração da avassaladora pandemia de COVID-19, com gigantesco impacto na economia e vida social em escala global, já resultou, até o final de maio de 2020, em cerca de 6 milhões de casos em todo o mundo e 370 mil óbitos. No Brasil, no mesmo período, a pandemia já resultou em cerca de 465 mil casos confirmados e 28 mil óbitos (WHO, 2020).

As lacunas anteriormente apontadas contribuíram para que o SUS se mostre, na quase totalidade dos estados brasileiros, muito despreparado para responder a essa rápida aceleração pandêmica, com elevadíssima morbimortalidade, em que pese o enorme esforço e dedicação dos seus profissionais de saúde nas mais recônditas localidades do país.

Além das questões já apontadas, relacionadas à ausência de bases de financiamento do SUS, à precariedade da sua política de recursos humanos e às graves distorções por desvios de recursos públicos e corrupção, a pandemia evidenciou também a enorme precariedade dos seus sistemas de informação em saúde em apoio à vigilância epidemiológica, laboratorial e sindrômica, essenciais para o enfrentamento de doenças emergentes como a COVID-19. Esses sistemas de informação encontram-se desatualizados e com péssima qualidade dos seus dados e indicadores, que não permitem ao governo brasileiro ter um panorama preciso do cenário epidemiológico atual e das tendências da pandemia.

Em termos absolutos, o país já é, em 10 de junho, com pouco mais de três meses desde o primeiro caso, o segundo do mundo quanto ao número de casos acumulados de COVID-19 desde o início da pandemia (739.503), perdendo apenas para os EUA, e já é o terceiro país do mundo quanto ao número de óbitos (38.406), perdendo apenas para os EUA e o Reino Unido (Johns Hopkins University, 2020). Em termos relativos, proporcionalmente à sua população, apresenta uma situação bem mais favorável, com a 34ª maior taxa de incidência no mundo e a 21ª maior taxa de mortalidade. No país, 1.821 municípios confirmaram óbitos por COVID-19 e 4.222 reportaram casos da doença (BRASIL, 2020). Contudo, considerando-se a ainda muito limitada capacidade de testagem no país, o altíssimo número de assintomáticos e a muito elevada subnotificação dos casos, esses indicadores podem estar mostrando apenas a ponta de um iceberg. Esse fato certamente aponta para uma posição bem menos favorável do país nesses indicadores relativos à sua população, em particular no que diz respeito à taxa de incidência. 

Neste momento de aceleração da pandemia da COVID-19, com graves consequências para a população brasileira, é urgente fortalecer, aprimorar e repensar o SUS, em um novo processo de reforma sanitária, preservando-se, como cláusulas pétreas, a sua concepção de sistema público, gratuito e universal de saúde e os direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988.

Previsões da evolução da pandemia para o Brasil e demais países vêm sendo feitas por modelagens matemáticas, como a da Universidade de Singapura, que trabalha com modelos de predictive monitoring por Inteligência Artificial e Machine Learning, utilizando grandes bases de dados (Big Data), em que os dados são diariamente atualizados, alterando a cada dia as predições. Essa estratégia inovadora tem permitido previsões bastante acuradas sobre a evolução da pandemia em países desenvolvidos, e mesmo alguns em desenvolvimento, que possuem dados de qualidade para alimentá-los. No caso brasileiro, essas previsões têm sido limitadas pela baixíssima qualidade dos dados que alimentam esses modelos.

O Brasil possui diversos sistemas de informação fragmentados sobre morbimortalidade, como o Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM), o Sistema de Informação sobre Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG) do SIVEP-Gripe e inúmeros outros, em diferentes níveis governamentais, mas, por deficiências históricas, nas três últimas décadas, o país não foi capaz de superar as enormes lacunas neles existentes, fazendo com que os dados registrados indiquem apenas a ponta do iceberg da pandemia.

Para compensar essas deficiências, foi realizada recentemente a primeira etapa do EPICOVID-19, estudo da prevalência da infecção pelo SARS-CoV-2 coordenado pela Universidade de Pelotas em parceria com diversas outras universidades e instituições de pesquisa e apoiado por OPAS/OMS. Esse, que é o primeiro estudo de prevalência da infecção realizado no país, é abrangente e cobre os assintomáticos, estimando que o número de casos é sete vezes maior que o confirmado. Seus resultados têm importantes implicações para a taxa de letalidade por COVID-19: se esses resultados forem confirmados nas próximas etapas do estudo, essa taxa deverá ser, pelo expressivo aumento da população infectada, bem menor do que a atualmente registrada. Se aos assintomáticos acrescentarmos a enorme subnotificação de casos no país, é possível que a taxa de letalidade seja bem menor do que a atualmente observada, podendo declinar de forma expressiva, dos atuais 5,2% para menos de 1%.

A justificativa do estudo EPICOVID-19 é que o número de casos notificados não reflete a real prevalência de COVID-19 na população, pois está suscetível a uma série de limitações, tendo em vista que pessoas com sintomas mais graves apresentam uma maior probabilidade de realizar o teste. Para identificar a magnitude do problema, é necessário que se tenha dados de uma amostra representativa da população, e não apenas de pessoas mais prováveis de testar positivo para o vírus. Esses resultados indicam que o Brasil precisa melhorar urgentemente os seus sistemas de informação para assegurar a resposta à pandemia fundamentada nas melhores evidências científicas.

Embora se deva reconhecer que sem o SUS, o maior sistema público de saúde do mundo, não haveria em nosso país a atual capilaridade social, que vem permitindo aos profissionais de saúde, nas mais distantes localidades do país, uma rápida resposta ao novo cenário epidemiológico da pandemia de COVID-19, é importante destacar que a gravidade dessa pandemia vem impondo com a maior urgência a necessidade de profundas mudanças na sua forma de operação e nas bases de financiamento do sistema.

Finalmente, outra questão crucial é a necessidade urgente de fortalecimento da capacidade nacional de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) em vacinas, kits para diagnóstico e monitoramento e medicamentos. É premente reduzir a elevada dependência nacional da importação desses insumos estratégicos, adotando estratégias nacionais que permitam ampliar exponencialmente o financiamento à PD&I nessa área, integrando universidades e institutos de pesquisas em um esforço nacional em parcerias público-privadas, nos moldes do modelo de operação do Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), organização definida pela revista Nature como a pioneira e maior iniciativa já criada voltada ao desenvolvimento de vacinas inovadoras contra a ameaça de vírus potencialmente epidêmicos (Butler, 2017).

O CEPI, lançado em 2017 no Fórum Econômico Mundial em Davos e sediado em Oslo, Noruega, é apoiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, The Wellcome Trust, Global Health Fund e governos e vem atuando na preparedness (preparação) para surtos epidêmicos e na pandemia de COVID-19, acelerando assim a disponibilidade de vacinas inovadoras para a população global.

É necessário destacar aqui a necessidade urgente, como resposta à atual pandemia, de se criar em países de renda média, como Brasil e Índia, estruturas locais nos moldes do CEPI e a ele articuladas, o que permitiria acelerar o desenvolvimento e a fabricação de vacinas em novas estruturas descentralizadas para inovação, desenvolvimento e produção. Complementando essa estratégia, é necessário enfatizar o papel crucial que a Developing Countries Manufacturing Network (DCVMN), rede de produtores de vacinas dos países em desenvolvimento, pode vir a desempenhar neste cenário de pandemia da COVID-19, através da ampliação da capacidade local para desenvolvimento e produção de vacinas para novas doenças com potencial pandêmico, apoiando fabricantes de vacinas nesses países, como Bio-Manguinhos/Fiocruz, no Rio de Janeiro, e Instituto Butantan, em São Paulo.

Conclusão

Neste momento de aceleração da pandemia da COVID-19, com graves consequências para a população brasileira, é urgente fortalecer, aprimorar e repensar o SUS, em um novo processo de reforma sanitária, preservando-se, como cláusulas pétreas, a sua concepção de sistema público, gratuito e universal de saúde e os direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988.

A construção do SUS foi uma grande conquista da sociedade brasileira e possibilitou avanços fantásticos. No entanto, há hoje um consenso na sociedade e entre os profissionais de saúde quanto aos graves impasses do sistema e mesmo quanto à sua inviabilidade, nos termos em que vem operando. Todas as avaliações, sejam elas governamentais, acadêmicas ou em pesquisas de opinião, apontam para uma profunda crise no SUS, como resultado da deterioração dos serviços, incapacidade dos hospitais de atender a quadros graves e emergenciais e abandono dos planos privados de saúde pelos usuários por incapacidade de pagamento, pelos elevados e crescentes preços cobrados. Esse quadro crítico aponta para a necessidade urgente de se identificar novos caminhos para o SUS que, preservando o conceito de universalização estabelecido na Constituição, permitam definir estratégias de impacto que assegurem a sua viabilidade.

Embora se deva reconhecer que sem o SUS, o maior sistema público de saúde do mundo, não haveria em nosso país a atual capilaridade social, que vem permitindo aos profissionais de saúde, nas mais distantes localidades do país, uma rápida resposta ao novo cenário epidemiológico da pandemia de COVID-19, é importante destacar que a gravidade dessa pandemia vem impondo com a maior urgência a necessidade de profundas mudanças na sua forma de operação e nas bases de financiamento do sistema. Para tanto, será necessário fortalecer ações preventivas e a atenção básica, evitando-se a grave distorção atual de entrada no sistema pela alta complexidade e repasses de recursos públicos sem critério ao setor privado.

Finalmente, é urgente uma mudança de paradigma na concepção e forma de operação do SUS, fortalecendo-o para que possa responder a novas doenças emergentes, superando as lacunas e distorções aqui apontadas.

Essas mudanças deverão ser acompanhadas por uma política efetiva de qualificação profissional dos recursos humanos no SUS, que permita assegurar aos seus profissionais de saúde programas de treinamento e atualização permanentes, salários compatíveis com as crescentes e complexas demandas pelos serviços, agravadas pela pandemia, e garantia de estabilidade, reduzindo-se com isso a elevadíssima rotatividade observada e a multiplicidade de vínculos empregatícios, que comprometem a qualidade dos serviços ofertados.

É necessário, portanto, ampliar exponencialmente e com urgência as bases de financiamento do sistema, assegurando-se a sua transparência, sustentabilidade e mecanismos rígidos de controle dos desvios dos recursos públicos e da corrupção, com profundas mudanças nos atuais padrões de relacionamento entre os setores público e privado. Essa estratégia deverá assegurar uma maior regulação e controle do SUS sobre a qualidade da oferta dos serviços públicos prestados e, sobretudo, sobre as graves distorções dos seguros de saúde privados, que constitucionalmente o integram, expondo-os à competição internacional. Somente dessa forma será possível mudar o padrão vigente de relacionamento público-privado, minimizando as profundas distorções dos atuais planos/seguros de saúde pelo seu elevado custo, baixa cobertura e baixa qualidade do atendimento por eles ofertados, sujeitos à estrita racionalidade do lucro em prejuízo da saúde da população.

Finalmente, é urgente uma mudança de paradigma na concepção e forma de operação do SUS, fortalecendo-o para que possa responder a novas doenças emergentes, superando as lacunas e distorções aqui apontadas.


Texto recebido em 2 de junho de 2020.

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Cristina Possas

Bio-Manguinhos/Fiocruz. Pesquisadora titular e professora da Fundação Oswaldo Cruz. Takemi Fellow, Harvard University.

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