Especial Covid-19 | Sociedade

Por que precisamos olhar para antigas e novas vulnerabilidades em tempos de pandemia

Elisa P. Reis e Felix Lopez, 22/07/2020

Foto de Ketut Subiyanto no Pexels

A evolução de antigas vulnerabilidades sociais e o surgimento de novas, decorrentes da pandemia, apontam a necessidade de um mapeamento rigoroso da situação e de avaliações sólidas das oportunidades para implementação de políticas públicas realistas no mundo pós-Covid-19

Em situações de crise severa, as sociedades são impelidas a duas direções opostas. De um lado, a ampliação das incertezas, das externalidades e das situações de escassez instilam movimentos autodefensivos em pessoas, firmas e nações. De outro lado, crises severas tornam mais vívidos o sentimento de interdependência social e criam oportunidades para iniciativas mais ambiciosas visando conter as eventuais consequências negativas nos planos econômico, social e político. A ciência pode contribuir de diferentes maneiras para que a segunda, e não a primeira, direção predomine. Crises abruptas agravam antigas e novas vulnerabilidades, o que demanda um mapeamento rigoroso da situação e avaliações sólidas das oportunidades para implementar políticas públicas realistas. Políticas baseadas em evidências científicas contribuem para aumentar a resiliência social e reduzir os riscos de se erodir a coesão social.

A evolução de algumas das vulnerabilidades sociais a enfrentar neste momento e no mundo pós-Covid-19 já se conhece de longa data. Trata-se de vulnerabilidades que afetam milhões que vivem na pobreza, não dispõem de moradia adequada, de suprimento regular de alimentos, de educação básica, de assistência à saúde, etc.

A evolução de algumas das vulnerabilidades sociais a enfrentar neste momento e no mundo pós-Covid-19 já se conhece de longa data. Trata-se de vulnerabilidades que afetam milhões que vivem na pobreza, não dispõem de moradia adequada, de suprimento regular de alimentos, de educação básica, de assistência à saúde, etc. No contexto atual, o déficit no acesso a esses recursos mínimos provavelmente aumentará, ampliando o já dramático problema humanitário e criando dilemas para as autoridades públicas. Adicionalmente, no mundo pós-pandêmico, emergirão novos grupos vulneráveis. Muitas pessoas, famílias e grupos que previamente gozavam de condições estáveis terão suas vidas subvertidas por uma depressão econômica prolongada. A raiz do problema reside nos efeitos negativos duradouros que o comportamento defensivo anticontágio terá sobre a propensão para consumir bens e serviços que exijam interação física interpessoal. Viagens, turismo e modalidades de lazer sociais, tais como cinemas, teatros e espetáculos em geral, sofrerão danos significativos. Isso também vale para pequenas lojas, vendedores de rua e provedores de serviços domésticos. Uma vez que esses setores empregam muito, a recuperação dos níveis de emprego deverá ser excepcionalmente demorada. Soma-se a esse problema a aceleração da transição econômica para tecnologias baseadas em inteligência artificial, que eliminarão milhões de empregos e vão agravar o problema no longo prazo. Tais problemas serão especialmente agudos em sociedades que já se caracterizam por altos níveis de desigualdade econômica e social, onde a redução do consumo de serviços por estratos sociais mais altos prejudicará os provedores de serviços dos estratos inferiores.

Se medidas para resgatar o mercado forem tomadas sem considerar antigas e novas vulnerabilidades, corre-se o risco não apenas de serem inócuas, mas de intensificar a crise humanitária. Há indicações de que grandes grupos de trabalhadores informais que perderam contratos temporários ou simplesmente já não conseguem obter nem mesmo ocupações precárias terão companhia de um número crescente de demitidos do setor formal, como já tem ocorrido nos últimos meses. A precariedade, visível mesmo antes da atual crise, agrava o problema, pois grande parte do poder de barganha dos trabalhadores foi retirada sob os auspícios dos modelos neoliberais em curso. Engrossando o já amplo número de pessoas vivendo nas franjas do mercado, o novo contingente de pessoas que ingressaram (ou estão prestes a ingressar) em condições de vulnerabilidade desempenhará um papel crucial na forma que o mundo pós-pandêmico terá. A súbita privação de meios e modos de vida pode se tornar a justificativa para o surgimento tanto de movimentos progressistas quanto de movimentos reacionários.

Se medidas para resgatar o mercado forem tomadas sem considerar antigas e novas vulnerabilidades, corre-se o risco não apenas de serem inócuas, mas de intensificar a crise humanitária.

A coesão social pode ser seriamente comprometida se as estratégias adotadas para atender as necessidades prementes da sociedade contemplarem singularidades, sejam estas baseadas em princípios nacionais, étnicos, religiosos ou outros princípios de divisão. É provável que tais estratégias prolonguem a incerteza e até acentuem os problemas, incitando mais polarização, discriminação ou outras formas de mobilização suscetíveis aos apelos populistas que surgem em tempos de depressão.

Os problemas podem ser ainda mais agravados se a atual crise e as políticas adotadas posteriormente aprofundarem o hiato entre Norte e Sul. A inclinação para nacionalizar as cadeias de suprimentos a fim de evitar a dependência externa pode ser uma escolha plausível para algumas empresas, mas é uma opção que desacelera e até põe em risco o sucesso da recuperação econômica. No entanto, mesmo que alguns países possam se dar ao luxo de um fechamento doméstico para proteger seus cidadãos e suas economias, a opção que reivindicam apropria-se claramente de bens coletivos: eles se beneficiam de recursos científicos e tecnológicos que são bens públicos derivados de conhecimentos e práticas criados por uma comunidade global de especialistas. Além disso, frequentemente o modelo autárquico nacional conta com mão de obra barata fornecida por migrantes estrangeiros expulsos de seus próprios países em decorrência de disparidades que criaram as próprias condições conducentes ao comportamento carona, retratado como autossuficiência.

Por sua vez, a crise da pandemia pode promover condições para aumentar a resiliência e a coesão social. A conscientização de que as epidemias, embora afetem particularmente os mais desfavorecidos socialmente, criam externalidades negativas claras tem sido, historicamente, um fator-chave para estimular iniciativas coletivas que promoveram o progresso da sociedade. Lembremos os exemplos dos esquemas de assistência paroquial concebidos para responder às epidemias que afetaram a Europa da Idade Média, o sistema de saúde estruturado como resposta à Primeira Guerra Mundial e à gripe espanhola ou o modelo de Estado de Bem-Estar desenvolvido após a Segunda Grande Guerra.

… a crise da pandemia pode promover condições para aumentar a resiliência e a coesão social.

Hoje, estamos em posição de usar com lentes críticas o que aprendemos das experiências passadas com crises sanitárias e econômicas. E a ciência, como um bem público, deve desempenhar um papel decisivo. Uma colaboração mais estreita entre as ciências da vida, naturais e sociais aumentará bastante a produção de conhecimentos relevantes para lidar com as antigas e as novas vulnerabilidades sociais, identificando as melhores estratégias para atender às necessidades críticas, as limitações a serem enfrentadas e as oportunidades a serem exploradas.

A revolução da comunicação que o mundo já experimentou estabeleceu a vida social dentro de parâmetros que vieram para ficar. Como observamos neste momento, se é verdade que o comércio sofre um duro golpe, o fluxo de ideias e informações não diminui, e as evidências mostram que ele se intensificou. O refúgio para as fronteiras nacionais como estratégia de defesa instintiva também é uma questão que a ciência deve estar pronta para combater, uma vez que um futuro sustentável para todos exige soluções globais.

Uma colaboração mais estreita entre as ciências da vida, naturais e sociais aumentará bastante a produção de conhecimentos relevantes para lidar com as antigas e as novas vulnerabilidades sociais, identificando as melhores estratégias para atender às necessidades críticas, as limitações a serem enfrentadas e as oportunidades a serem exploradas.

Isso não nega que há muito a ser mudado para reorientar os movimentos globais em direções mais produtivas para todos. Usar a oportunidade para transformar a sociedade pós-Covid-19 em um mundo mais justo pode envolver, por exemplo, encontrar maneiras mais eficientes de preparar as pessoas para novas epidemias, aprender a fornecer recursos de saúde adequados a tempo, etc.

Como em outros momentos de grande incerteza, a sociedade olha a ciência com esperança e ansiosa busca por respostas. Eventualmente haverá vacinas para combater a Covid-19 e os novos vírus que podem surgir. Mas há outros desafios que a ciência deve responder para lidar com problemas emergenciais e abrir caminho para a reconstrução. Compreender as percepções e o comportamento das pessoas é crucial para entender melhor os padrões culturais variáveis que afetam a disseminação da epidemia. Igualmente importante é entender as crenças, atitudes, normas e padrões que nos informam sobre motivações, limitações e instrumentos básicos que moldam as ações das pessoas e suas interações com as instituições. Afinal, essas são as coisas que moldam as escolhas coletivas.


Texto recebido em 24 de maio de 2020.

Elisa P. Reis

Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ) e vice-presidente do International Science Council.

Felix Lopez

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

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