Os tempos pandêmicos no Brasil, tornados piores por conta de sua condução desastrosa e negacionista, trouxeram mudanças para todas as dimensões de nossas vidas e muitas de suas consequências ainda nos afetam fortemente. Sequelas físicas, emocionais, psíquicas, sociais, culturais, políticas, econômicas e financeiras podem ser encontradas em praticamente todos os cantos e pessoas, em vários níveis de intensidade.
Obviamente, lidar com esse terrível período não foi simples, pois as condições materiais de vida das diferentes classes sociais determinaram privilégios. Enquanto alguns puderam manter empregos e salários, trabalhar remotamente, isolar-se socialmente com conforto e comodidade, outros indivíduos desafiaram cotidianamente a doença em transportes coletivos lotados, em habitações compartilhadas com um grande número de pessoas, sem água e sem saneamento básico, com comida inexistente ou em quantidade insuficiente, e em locais de trabalho em que lidavam diretamente com a possibilidade de se contaminar.
Todavia, enquanto muitos sucumbiram literal e simbolicamente, houve quem conseguisse buscar alternativas para continuar vivendo de modo a minimizar as angústias e as dores do isolamento social preconizado corretamente pelas instituições médicas, científicas e sanitárias.
Nesse contexto, surge o podcast Papo de Lazer com Angela Brêtas 1 2. Criado durante a pandemia de COVID-19, em 2020, a iniciativa foi uma das várias maneiras encontradas por sua fundadora para enfrentar o isolamento social. Cabe destacar que reconhecemos o privilégio de compor o grupo de pessoas que conseguiram permanecer trabalhando remotamente, respeitando as regras sanitárias e as orientações da ciência, quando muitos trabalhadores não tiveram as mesmas possibilidades, como já apontamos.
O Papo de Lazer foi uma saída para manutenção da saúde mental diante da instabilidade, das informações muitas vezes conflitantes, do negacionismo e dos muitos incentivos ao desrespeito à vida perpetrados por aqueles que deveriam acolher o povo brasileiro com atitudes e falas sensatas, e pautadas nas orientações de cientistas e profissionais de saúde não-conspiracionistas.
A inquietude, a busca pela manutenção da saúde mental e a necessidade de contato humano foram impulsionadoras da criação de um podcast que tratasse do campo de estudos, pesquisas e intervenções do lazer, área sobre a qual a autora deste artigo vem se debruçando há anos. A ideia inicial era apenas conversar com os amigos e amigas de todo o país. No entanto, conforme as entrevistas foram acontecendo, os rumos originais do projeto foram se modificando. Percebemos que estávamos atuando nos âmbitos da divulgação científica, da educação e da memória. Para além dessa ampla dimensão acadêmica, havia a alegria de encontrar pessoas, conhecer outras e aprender mais acerca das dinâmicas desse campo tão rico e produtivo.
Ao discutirmos o lazer — a partir de quem movimenta o campo — em um meio como um podcast, abrimos um interessante espectro para análise com, ao menos, cinco arranjos. Em primeiro lugar, fortalecemos uma configuração de divulgação e de apropriação de conhecimento, de acesso facilitado e com possibilidade de ouvir a qualquer hora e em qualquer local. Em segundo lugar, temos a chance de atingir um público não-especializado interessado no tema, pois recodificamos a linguagem científica aumentando a acessibilidade dos termos (Bueno, 1985) 3.
Em terceiro lugar, contribuímos para legitimar essa área de estudos, pois os debates e os entendimentos acerca da temática estão muitas vezes baseados no senso comum. Em quarto lugar, atuamos no âmbito da educação e, baseadas em Marandino (2017) 4, afirmamos que, dependendo do contexto educativo no qual a audição está inserida, podemos falar em termos de educação formal, não-formal e informal.
Por último, mas não menos importante, o Papo de Lazer também se configura como um guardião de memórias individuais e coletivas, uma vez que lida com histórias de vida pessoais e profissionais e assinala a forma pela qual se interpenetram; e, ao mesmo tempo, constitui um cenário do campo do lazer no Brasil, posto que esse meio eletrônico guarda, preserva e retém o tempo, resguardando-o da perda e do esquecimento.
Além de toda sua dimensão acadêmica, o Papo é sério sem ser sisudo, é leve e descontraído, e sempre oferece boas risadas.
São vários os critérios de seleção para as entrevistas. Conversamos com pessoas ligadas à academia, sejam jovens mestres e doutores, pesquisadores consolidados ou pioneiros nos estudos do lazer no Brasil. Também entrevistamos profissionais que atuam em órgãos do poder público, tais como secretarias municipais e estaduais, ou instâncias federais, além daqueles que atuam em instituições privadas e do Terceiro Setor. Outro ponto a destacar é a diversidade regional. Procuramos abranger todo o país para poder não só apresentar a variedade de visões e a riqueza das possibilidades de pesquisas e de intervenções, mas também a força desse campo e a excelência do trabalho desenvolvido nos diversos grupos e regiões.
Além desse conjunto, criamos a sessão “Pororoca do Papo” para podermos conversar com as pessoas que não têm a preocupação teórica com o lazer, mas que estão nas ruas gerando as possibilidades para vivências e experiências de lazer de outrem. Esse encontro é uma grande Pororoca! Quem sabe essas realidades, se percebidas em sua historicidade, não despertam a atenção para a produção de novos estudos, pesquisas e intervenções?
O diálogo no Papo de Lazer flui a partir de três perguntas estruturantes, tecidas após a apresentação do entrevistado feita pela entrevistadora. A primeira e a segunda questões são: Quem é você para além de sua atividade profissional? E como chegou ao atual momento de vida? Para encerrar a entrevista, a questão: Como você frui seu tempo/espaço de lazer? Na verdade, essas indagações norteiam uma conversa que mistura histórias de vida, construção de trajetórias profissionais, atuações no campo e projetos desenvolvidos e, quando é o caso, a produção acadêmica que diga respeito à pesquisa, ao ensino ou à extensão.
Desde sua criação, o Papo conversou com grandes nomes do campo, pessoas interessantes e profissionais incríveis, além de ter prestado reverência a pioneiros e ter trazido iniciativas instigantes para suscitar mais reflexões. Iniciamos no dia 25 de novembro de 2020, às 14h30, no Congresso Iberoamericano de Estudos do Lazer, Ócio e Recreação e, desde então, realizamos quatro temporadas, com 103 programas, e 108 entrevistados, sendo 48 homens e 55 mulheres.
Os temas abordados são muito variados, mas todos estão relacionados ao lazer, tais como: políticas públicas; futebol masculino; futebol feminino; futebol de várzea; história do futebol nos subúrbios cariocas; pandemia; etnografia, esporte e envelhecimento; skate na vida adulta; surf; consumo e cultura, uberização do trabalho; periferias urbanas; resistência e negritude; turismo e gestão pública, empoderamento feminino e baile funk; clubes sociorecreativos, parques urbanos, juventude e violência, Lei de Incentivo ao Esporte; Lei n.o 10.639/2003, entre tantos outros.
A equipe do Papo de Lazer conta ainda com duas importantes participações: Pâmela Couto e Nefhar Rocha. Pâmela é turismóloga e cuida das redes sociais do projeto. Já Nefhar, ilustrador e aluno do curso de Design da Escola de Belas Artes/ UFRJ, atua na produção do podcast em termos técnicos e também estéticos.
Resultado que muito nos honra e que demonstra a importância de uma iniciativa como essa é o texto intitulado: “Entre trajetórias de vidas negras e a produção do conhecimento no campo dos estudos do lazer: um Papo de Lazer com Angela Brêtas” 5, de autoria de Adriano Gonçalves da Silva, Lucilene Alencar das Dores e Alysson dos Anjos Silva. Esse artigo foi publicado em 2024, no volume 10, no 03, da Revista Brasileira de Estudos do Lazer (RBEL) 6, uma publicação da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Estudos do Lazer (ANPEL) 7.
Devido a problemas particulares, interrompemos a produção do Papo durante 2023, mas estamos preparando seu retorno porque o campo do lazer é rico e vibrante. Temos ainda muitas pessoas com quem conversar, e temáticas instigantes para debater e apresentar.
Enfim, em tempos de pós-verdade, nos quais opiniões e crenças pessoais tensionam resultados de pesquisas, fatos e evidências científicas, ter a possibilidade de acessar um podcast no qual se amplia conhecimentos acerca dessa dimensão fundamental da vida humana que é o lazer, além de poder ser divertido, é apoiar e valorizar a ciência.
Notas
- Para saber mais, veja no Instagram: @papodelazer [voltar]
- Para saber mais, ouça nas plataformas de áudio: Spotify, Google Podcasts, Pocket Casts, RadioPublic [voltar]
- BUENO, W.C. Jornalismo científico no Brasil: conceitos e funções. Revista Ciência e Cultura, 37(9), setembro, 1985. Disponível em https://biopibid.paginas.ufsc.br/files/2013/12/Jornalismo-cient%C3%ADfico-co nceito-e-fun%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em 16/02/2024 [voltar]
- MARANDINO, M.. Faz sentido ainda propor a separação entre os termos educação formal, não formal e informal?. Ciência & Educação (Bauru), v. 23, n. 4, p. 811–816, out. 2017. [voltar]
- SILVA, A. G.; DORES, L. A.; SILVA, A. A. Entre trajetórias de vidas negras e a produção do conhecimento no campo dos estudos do lazer: um Papo de Lazer com Angela Brêtas. Revista Brasileira de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, v.10, n.3, p. 3-20, set../dez., 2023. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbel/article/view/49053/43222. Acesso em 27/02/2024 [voltar]
- Disponível em https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbel. Acesso em 27/02/2024 [voltar]
- Disponível em https://www.anpel.org.br/ . Acesso em 27/02/2024 [voltar]
- Angela Brêtas
Professora Associada da EEFD/UFRJ, Doutora em Educação (UERJ), Mestre em Educação (UFF), Especialista em Psicomotricidade (UNESA), Licenciada em Educação Física (UERJ). Integrante da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Estudos do Lazer (ANPEL), Parecerista da Revista Brasileira de Estudos do Lazer (RBEL). E-mail: labretas@gmail.com