Diante do horror que nos espanta na política contemporânea, persiste uma dúvida em diversas tentativas de compreensão: o quanto categorias já conhecidas da tradição devem ser mobilizadas? Não é difícil perceber a origem da dúvida: ao mobilizar os conceitos do passado, podemos lançar alguma luz sobre o presente, mas corremos também o risco de passar ao largo da diferença que separa nosso hoje das formas históricas que nos precederam. É o que ocorre, por exemplo, com o conceito de fascismo. Muitos governos no mundo, inclusive o do Brasil, são criticados por seus opositores porque seriam fascistas. Descontadas as vezes em que se trata apenas de indignação, nas quais o termo é empregado quase como um xingamento qualquer, o impasse que aparece é se, na classificação que nomeia o horror atual por sua filiação ao horror já conhecido, se perde a especificidade talvez inédita do que vivemos hoje. Poucas páginas escritas entre nós são tão esclarecedoras sobre essa questão quanto as de Marcia Sá Cavalcante Schuback em O fascismo da ambiguidade: um ensaio conceitual, publicado pela Editora UFRJ.
Didaticamente, Marcia começa por explicar o que denomina fascismo histórico: elaborado e praticado por Benito Mussolini, na Itália, no começo do século XX. Não é difícil encontrar paralelos entre suas propostas e o que vemos atualmente. O fascismo do século XX, opondo-se ao igualitarismo socialista e ao liberalismo democrata, pretendia, por exemplo, abolir as instituições mediadoras e representativas da política. O governo teria um contato direto com o povo, descrente daquelas instituições corrompidas e hipócritas. O mesmo discurso pode ser ouvido hoje com o presidente Jair Bolsonaro e podia ser escutado, até meses atrás, nas declarações de Donald Trump, nos Estados Unidos. Em ambos os casos, tecnologias de comunicação social, como WhatsApp e Twitter, facilitariam essa presunção. Líderes do século XXI, além disso, empregam também a retórica bélica do fascismo histórico com as massas. E alguns reproduzem até o ridículo a estética anterior, como em manifestações de motocicletas rugindo na cidade. Isso talvez surpreendesse menos se atentássemos, como o livro de Marcia, para o símbolo do fascismo – de onde vem a palavra latina e remete à Roma antiga – que é um feixe de varas amarradas em um machado de bronze. Pois sua distante origem etrusca não o impediu de permanecer no emblema nacional da França, no emblema da polícia da Suécia ou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O fascismo está entre nós.
Estão apresentadas, assim, as continuidades entre o fascismo de antigamente e o de agora. Em ambos, apareceria, como cita Marcia, o espírito traduzido em um trecho de Calígula, de Albert Camus, que diz: “vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, em face do qual aquele do criador parece uma macaquice”. É assustador. Pois o que seria desejo de transformação se torna desejo de extermínio. Mata e desmata. O ódio à arte, à cultura e à ciência vem de tudo que nelas há de criador. Contudo, até aí, nada de novo. Não basta, assim, apontar as similaridades entre o fascismo histórico e o neofascismo. Tampouco, porém, assinalar suas diferenças. Pois, justamente, o que há de novo no novo fascismo é ter tornado tudo tão ambíguo que nos deixa embaraçados ao buscar apontar similaridades e assinalar diferenças. O inequívoco fascismo do século XXI é precisamente aquele no qual nada mais é preciso, tudo é ambíguo. Eis a mutação atual.
O conceito central, portanto, para identificar o fascismo de hoje é a ambiguidade, segundo Marcia. Ela buscou o conceito na visão cinepoética que teve Pier Paolo Pasolini. “No cume da hierarquia, encontro a ambiguidade, o nó inextrincável”, escreveu Pasolini sobre sua experiência em viagem ao Rio de Janeiro em 1970, acrescentando que “é por puro acaso que um brasileiro é fascista e um outro, subversivo, e que aquele que arranca os olhos pode ser tomado por aquele a quem se arrancam os olhos”. Tal ambiguidade é o golpe – e, se há um golpe, este é o mais profundo e já em pleno curso – de mestre que permite ao fascismo atual desvencilhar-se de si mesmo. Toda vez que se pretende apanhá-lo aqui, ele já está ali e, toda vez que se o procura ali, ele já está aqui. Se é difícil ter clareza para definir o sentido do fascismo atual, é porque o fascismo atual é uma ambiguização de todo sentido. Esse é o grande achado de O fascismo da ambiguidade, pois é o que nos ajuda a compreender não apenas a mutação ontológica que experimentamos, mas o motivo de ser tão difícil fixar-lhe um sentido preciso. Esse motivo não está apenas em que se trata de algo recente, mas que o recente tornou os sentidos tão equivalentes entre si e, portanto, intercambiáveis que tudo parece ambíguo e indefinido.
Não faltam exemplos concretos, ao longo do livro, desse movimento contemporâneo que torna difícil distinguir o que quer que seja. Um deles: a defesa de uma raça é racismo ou modo de enfrentar o racismo? Outro: apresentam-se como igualmente legítimos os gestos de reescrever a
história europeia sob a ótica do que ela esqueceu, massacrou e exterminou, de um lado, ou a partir de interesses autoritários de manipulação, por outro lado. Mais alguns: a diferença entre liberdade e apartheid, esquerda e direita, flexibilidade capitalista e movimento da vida. Isso tudo desmonta, com eficiência ímpar, boa parte da crítica ao fascismo. Onde ela aponta censura, encontra elogio da liberdade de expressão. Para o fascismo atual, qualquer um pode dizer o que quer, seja homofóbico ou racista, por exemplo; e quem faria censura é o politicamente correto. Exacerba-se o sentido da liberdade de expressão até que ele não diga nada e se esvazie.
É por isso que o fascismo atual pode conviver com a democracia formal. É que a mutação ontológica nele expressa já tornou tudo tão ambíguo, isto é, sem sentido, que o fascismo pode viver dentro e através da democracia, sem precisar de golpes claros. O argumento de Marcia, aqui, é fino, uma vez que desvela a afinidade entre uma lógica do dinheiro no capitalismo e do fascismo da ambiguidade: em ambos, os valores perdem o seu valor específico, os sentidos são esvaziados de seus significados singulares. Pois, em sua definição mais geral, dinheiro é a equivalência universal de tudo e de qualquer coisa, ou seja, um vale-tudo no qual as coisas podem ser trocadas como se não tivessem nada de próprio. Por isso, ao contrário do fascismo histórico, o atual não tem ideologia rigorosa e pode se mover com a mesma maleabilidade que o capital técnico-financeiro. Tudo é mercadoria, e o que é próprio da mercadoria é não ter nada de próprio. Tudo pode ser o que é e o contrário do que é: justo e injusto, certo e errado, verdade e mentira.
Não se trata, porém, é claro, de opor ao fascismo da ambiguidade um outro, que é mais familiar: o fascismo da objetividade. Não se trata de criticar as interpretações no plural dos sentidos em nome de uma univocidade totalizante do sentido. Marcia é clara sobre esse aspecto. Trata-se de uma distinção entre poder ter qualquer sentido e a riqueza de sentidos em aberto, entre uma linguagem destruidora do sentido, que o esvazia na medida em que o indefine, e uma linguagem da criação em liberdade. Eliminar a necessidade de os sentidos fazerem sentido é a estratégia principal do fascismo da ambiguidade em que vivemos, mesmo porque, assim, ele não só pode destruir ou violentar tudo ao seu redor, mas até a chance de se constituir crítica ou resistência a ele.
Nesse contexto, a pergunta pelo sentido da política não pode deixar de ser uma pergunta pela política do sentido. Nela, poderemos considerar a palavra “precisão” – a precisão do sentido, por oposição à sua ambiguidade – não como a objetividade que fixa e aprisiona um sentido único e absoluto de tudo o que é, mas como necessidade poética que faz as palavras, aquelas exatas e só elas, serem insubstituíveis em um verso ou numa frase. Isso é importante porque a ambiguidade da linguagem, historicamente, já foi defendida em nome da liberdade, honestamente, contra a pretensão dogmática de que o sentido seria absoluto, imperativo ou único. Mas, agora, a ambiguidade é outra, é a exploração sem fim dos sentidos que, ao exauri-los, até de cansaço, os transforma no que mais conhecemos: mercadorias. Podem ser vendidos, comprados, trocados.
Tanto o capitalismo quanto o fascismo hoje apostam na substituição: um, do dinheiro; outro, do sentido. Ora, a poesia, ao contrário, fala-nos da precisão insubstituível pois é só com ela que a pluralidade criadora de sentido, e não a ambiguidade destruidora de sentido, pode nascer. Por isso, o ensaio conceitual de Marcia termina com dois belos exercícios de precisão: um sobre a poesia de Orídes Fontela – que trata da palavra diante da situação em que “tudo será difícil de dizer” – e outro sobre a noção musical de ligadura – para pensar o nosso tempo de tantas conexões e tão poucas relações. O feixe do fascismo que nos envolve como massa – e isso justifica a insistência nesta palavra, “fascismo” – é a tentadora ameaça – não só no Brasil, mas em um mundo no qual os sentidos não fazem sentido – da extinção das relações em troca de uma fusão geral e irrestrita, à qual nada resiste, pois tudo está assim enfeixado, sem singularidade ou diferença.
Por fim, vale destacar o tom da escrita de Marcia. Ler essas páginas é encontrar uma harmonia delicada entre o reconhecimento da gravidade do fascismo da ambiguidade e a paciência que permite escapar das ciladas que ele mesmo prepara. Só assim a filosofia pode ser o que é nesse livro:
um corajoso pensar o nosso hoje. Ela o faz com um tipo raro de serenidade, aquela que, ao invés de apagar a urgência de que trata, apenas a sublinha, na medida em que a mantém em foco, sob sua atenção. Embora somente os capítulos finais se chamem “exercícios de precisão”, todo o livro também é. São palavras assim, nas quais se experimenta o pensamento pensando, que podem resistir ou, como diz Marcia, re-existir. São palavras assim que podem franquear algum caminho para, de novo, perguntarmos pelo sentido do mundo e pelo mundo do sentido.
SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. O fascismo da ambiguidade: um ensaio conceitual. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 136 p. (Coleção Outros Passos).
- Pedro Duarte
Professor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).