Política

O desafio extremista e a cultura ocidental

Mayra Goulart, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

Resumo

O objetivo deste texto é discutir alguns parâmetros para uma posterior apresentação dos resultados da pesquisa que conduzo acerca da trajetória legislativa de Jair Bolsonaro.  Esse será o gancho que utilizarei para refletir sobre os componentes éticos e políticos do que chamamos pelo nome de extremismo e para refletir sobre algumas outras categorias disponíveis para tipificar o fenômeno aqui analisado.

a) extremismo e moderação na fundação ética do ocidente

Desde 2019 tenho lido, analisado e sistematizado projetos de lei e discursos proferidos por Jair Bolsonaro ao longo de seus sete mandatos consecutivos como Deputado Federal1. Os resultados indicam que, em suas colocações, ele faz correspondências entre ética e política a partir de um horizonte de valores que é reacionário, hierárquico e autoritário, podendo ser caracterizado como ‘extremista’.

Tais elementos são observados em alguns dos principais componentes dos discursos proferidos pelo então deputado: a crítica à esquerda, articulada à apologia à ditadura militar, e à defesa de um retorno a um modelo de ordem (pública e privada) hierárquico e militarista, cuja estruturação depende e reivindica o uso da força. Em suma, a ideia de que os mais fortes comandam e devem comandar é a que prevalece e, assim, fica evidente o seu entendimento patriarcal, misógino e refratário às minorias demográficas e não demográficas. 

Esse será o gancho que utilizarei para refletir sobre os componentes éticos e políticos do que chamamos pelo nome de ‘extremismo’, entendido aqui como uma espécie de nêmesis ético do ocidente. Através de um mergulho na história das ideias, utilizarei o binômio extremismo/moderação para refletir sobre algumas categorias disponíveis para tipificar o fenômeno aqui analisado. Dentre eles, me concentrarei nos conceitos de extremismo, conservadorismo, radicalismo, fascismo e populismo.

Sei que pensar em “ocidente” como um tema  congruente, capaz de ter uma origem e uma estrutura ética comum, é um esforço fadado ao fracasso. São múltiplas histórias, origens, percursos e assimetrias, o que torna seu desígnio incerto e temeroso. Mesmo assim, uma busca sobre as origens do conceito de extremismo e sobre seu percurso na história das ideias pode ser interessante, haja vista o propósito de reforçar o núcleo semântico de uma categoria cada vez mais mobilizada para lidar com os fenômenos políticos da atualidade.

Deste modo, seguindo a importante contribuição do cientista político Uwe Backes, no livro “Extremos políticos: uma história conceitual da antiguidade ao presente”, situamos as fundações éticas do pensamento ocidental na cultura helenística enquanto escoadouro de uma paideia construída desde o período homérico, passando pelo período arcaico até o clássico. Nesse momento, é possível observar no amálgama formado pelo aristotelismo em geral, e pela doutrina do “mesotês” (justo meio) em particular, a constituição de um substrato ético-político comum que perdura até hoje.

Por isso, vamos explorar a seguir como se constituiu a fundação ética do ocidente a respeito do extremismo e da moderação nesse contexto helenístico. A doutrina do mesotês situa a virtude como o meio de um continuum em cujos extremos estão o excesso (hipérbole) e a falta (elipse), e combina elementos presentes nas contribuições de poetas e pensadores que precederam Aristóteles, para os quais o extremismo já era associado à degeneração, à crise e à violência, sendo a ideia de moderação o antídoto para os males causados por esse vício.

Nas artes, ainda no século V AC, surge a ideia de que a determinação da beleza passaria por estabelecer uma linha mediana. Nas tragédias de Sófocles e Eurípides, diferentes heróis sofrem pelos excessos cometidos. Na mitologia, esse substrato ético surge na figura de uma deusa, Aedos, que seria a personificação da modéstia, do pudor e do respeito, cuja principal qualidade é a capacidade de se conter. Na medicina, essa mesma ideia aparece nas recomendações de Hipócrates (médico grego que viveu entre 460-377 AC) acerca da moderação no consumo de comida e bebida.

Esse diagnóstico e prognóstico, segundo o historiador e geógrafo grego Heródoto (século V AC), foi expresso em termos constitucionais pelo legislador e estadista Sólon (560 AC), na oposição entre Díkē (justiça) e Hýbris (imprudência), cujo justo meio seria o lugar da Eunomia (boa ordem), mas também na condenação daqueles que possuem muito ou pouco em termos materiais, entendidos como fonte de disrupção social.

Deste modo, enquanto no plano ético pessoal, aidos pode ser compreendido como a prescrição de uma dieta da alma (Backes, 2009, p. 19), no plano político, o mesotês representa a prescrição de uma doutrina constitucional que evite a liberdade excessiva (anarquia) e a submissão excessiva (tirania) (ver slide 3). Tal doutrina dá origem à República de Platão, mas também à Política de Aristóteles e ao chamado ciclo de Políbio, recuperado por autores de fora do horizonte clássico como Nicolau Maquiavel e J.J. Rousseau, todos estes autores importantes para a Filosofia e para a Ciência Política.

A ideia central do ciclo é que as formas puras de governo (monarquia, aristocracia e democracia) não seriam capazes de conter o ímpeto das classes dominantes que acabariam excedendo-se e tomando decisões que contrariam o bem comum em proveito próprio. Sob esta perspectiva, toda forma pura de governo contém um embrião de extremismo que leva a sua forma degenerada (tirania, oligarquia e anarquia, respectivamente), sendo que a única alternativa à tal degeneração seria a composição de um governo misto, capaz de combinar as virtudes de cada uma das formas puras, contornando seus excessos.

Esse ideal de moderação envolve elementos econômicos e sociológicos e busca evitar a concentração de poderes nas mãos de um único segmento social seja ele o monarca, os aristoi (ricos) ou o demos (pobres) de modo a engajar todos em prol do bem comum, configurando um sistema institucional e social de controle recíproco entre as diferentes forças. 

b) extremismo e moderação x direita e esquerda: as dicotomias políticas no mundo moderno

A construção ético-política da Antiguidade Clássica foi complexificada ao longo dos séculos, sobretudo após a introdução da dicotomia esquerda x direita, oriunda da topografia do parlamento francês durante a Revolução, cujo lado direito opunha-se à Carta Revolucionária e defendia o poder de veto do rei sobre a produção legislativa, e o lado esquerdo defendia a nova Constituição.

Sob uma perspectiva histórica, todavia, é possível afirmar que até o final do século XIX a dicotomia ainda não havia se disseminado a ponto de poder ser considerada um fato social, sendo o ponto de partida nessa transformação a emergência do socialismo no universo da competição política. 

No tocante ao conceito de extremismo, é após a Revolução Russa que o termo, em sua acepção contemporânea, desponta no ocidente para tipificar o regime estabelecido pelos bolcheviques. Deste modo, uma vez que meu objetivo não é abarcar todas as camadas de sentido adicionadas ao conceito, me aterei às mais importantes, operadas com a introdução das experiências totalitárias do século XX. Estas ocasionaram a emergência de um novo consenso dentro do que grosseiramente estamos chamando de cultura ocidental: a associação entre totalitarismo e extremismo, e sua tipificação como regimes injustos. Sob esta perspectiva, que ganha força a partir dos anos 1950 na Alemanha, nos EUA e no Reino Unido, a analogia entre os extremos políticos de direita (fascismos) e de esquerda (bolchevismo) passa a ser um lugar comum, a despeito das diferenças entre eles.

Tal associação presente no vocabulário político do pós-Segunda Guerra foi ganhando inflexões à medida que diferentes pesquisadores voltaram seus esforços para a análise dos componentes psicológicos, sociais, jurídicos e políticos do fenômeno, mas também na sua diferenciação quanto aos conceitos de radicalismo, conservadorismo e reacionarismo.

Cabe destacar esforços como o do psicólogo alemão Peter Hofstätter (1913-1994), cujas pesquisas empiricamente orientadas tiveram ampla repercussão no horizonte anglo-saxão. O autor, através da aplicação de questionários, observou que a dispersão de opiniões acerca de um mesmo tema dentro de um grupo segue um padrão no qual uma ampla distribuição de opiniões alcança diferentes graus de intensidade em termos de convicção, sendo aqueles detentores de posicionamentos moderados os possuidores de menores graus de convicção, enquanto os extremistas ou radicais seriam caracterizados por um maior grau de certeza em suas posições. Radicalismo e extremismo, para Hofstätter, são componentes de uma personalidade inábil de ver a realidade em todas as suas facetas e ambiguidades e, portanto, são marcados pelo inconformismo diante de qualquer evidência de que sua certeza pode ser falha.

A analogia entre fascismo e comunismo perdura até os dias de hoje, porém, é possível encontrar algumas análises desviantes, como aquelas baseadas nas contribuições da Escola de Frankfurt, em particular, o trabalho de Theodor Adorno (1903-1969) et al. em “A Personalidade Autoritária” (1965). Para rejeitar a analogia, os autores argumentam que o antissemitismo é um elemento determinante na configuração político-ideológica dos fascismos históricos e na personalidade de seus seguidores, não havendo nenhum sentimento análogo por parte dos comunistas.

Também em divergência com o argumento apresentado por Adorno, o historiador alemão Ernst Nolte (1923-2016), no livro “As três faces do fascismo(1967) apresenta os seis pontos que integrariam o que seria o “fascist minimum”, excluindo o antissemitismo dessa lista, que seria composta por: antimarxismo, antiliberalismo, anticonservadorismo, princípio da liderança, um partido armado e um objetivo totalitário. Os fascistas também se destacavam pela proposição de intervenções mais radicais para alcançar seus objetivos, que incluíam a alteração na estrutura de classes da sociedade, termos menos presentes nos demais grupos direitistas. 

c) um breve comentário sobre o conceito contemporâneo de populismo 

Maniqueísmo e antipluralismo, dentre outros, enquanto atributos aqui discutidos como componentes do extremismo, fazem parte do núcleo semântico do conceito de populismo em sua definição mais contemporânea. Nesta acepção, o conceito é composto por apenas dois elementos: (i) o anti-elitismo e (ii) a centralidade conferida ao povo enquanto ator político (people centrism), que se expressa pela ideia de vontade geral como fundamento de legitimidade das decisões do líder ou do partido. Essa definição se desdobra em três requisitos para que um caso possa ser enquadrado na categoria: a) cosmologia moral maniqueísta; b) visão do povo enquanto totalidade homogênea e virtuosa; c) definição da elite como corrupta e selvagem.

Segundo esta abordagem, o populismo funcionaria como uma ideologia magra (‘thin-centered ideology’), por meio da qual a oposição entre povo e elite exerce o papel de um catalizador, selecionando e organizando discursivamente um manancial de ideias já existentes em cada sociedade, sob a forma de antagonismo. Estas ideias e discursos são mutuamente determinados de maneira ad hoc, alterando-se em face de cada conjuntura política.

Embora todas as manifestações de populismo se definam pelo uso (em menor ou maior grau) de uma cosmologia maniqueísta que reduz a política à luta entre o povo puro e a elite corrupta, ambos os termos se constituem como receptáculos vazios (empty-vessels), preenchidos por diferentes conteúdos que definirão os critérios de pertencimento a cada grupo. 

No tocante à pesquisa conduzida sobre a performance legislativa de Jair Bolsonaro, foi possível identificar ambos os elementos na análise dos componentes discursivos dos projetos de lei apresentados, nos quais observamos: (i) a recorrência de alusões ao povo enquanto totalidade homogênea, na medida em que rejeita-se qualquer concepção plural e minoritária de bem (ou de família); (ii) inúmeras referências à corrupção da elite política, assim como (iii) o propósito de se apresentar como líder apto a defender o povo daqueles que o ameaçam (no caso, a esquerda como elite política e as minorias por ela empoderadas).

Além disso, cabe ressaltar que, diferentemente do observado nos fascismos históricos, não houve entre seus projetos propostas que apresentassem um modelo de desenvolvimento ou que apresentassem políticas públicas voltadas às grandes temáticas econômicas, como o combate à desigualdade. Por este motivo, defendo a não- tipificação de suas performances como fascistas, ainda que seja possível encontrar diferentes pontos de contato, não apenas com essa denominação mas, também, com a direita conservadora e radical que compuseram sua coalizão de força na década de 1930. Dentre a miríade de conceitos e definições aqui apresentadas, acredito que o bolsonarismo seja melhor tipificado pelo conceito de ‘extremismo’, incorporando sua devida caracterização como nêmesis do legado ético-político da paideia helenística.

Dicas de leitura

JAEGER, Werner. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: UNESP, 2019.

MUDDE, Cas; AMADEO, Javier; PAULA, Guilherme. O Zeitgeist Populista. EXILIUM Revista de Estudos da Contemporaneidade, v. 2, n. 3, p. 263-298, 2021. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/exilium/article/view/12906.

MUDDE, Cas. A extrema direita hoje. Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.

BACKES, Uwe. Political extremes: a conceptual history from antiquity to the present. Routledge, 2009.

Notas

  1. Este esforço coletivo é realizado no Laboratório de Eleições, Partidos, e Política Comparada (LAPPCOM), que reúne estudantes de graduação e pós-graduação da UFRJ e da UFRRJ, além de professores de diferentes universidades do Brasil e do exterior, e abriga diferentes pesquisas na área da Ciência Política. Para conhecer nossas pesquisas acesse nosso site e nosso perfil no Instagram [voltar]
Mayra Goulart

Professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordena o Laboratório de Eleições, Partidos e Política Comparada (LAPPCOM). Atualmente é Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e presidente da Associação de Docentes da UFRJ (AdUFRJ). Contato: mayragoulart@gmail.com

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