Resenhas

Em ressonância

Rodolfo Caesar, 17/05/2021

TABORDA, Tato. Ressonâncias: vibrações por simpatia e frequências de urgências. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021. 135 p. (Coleção Outros Passos)

Um livro surpreendente em que Tato Taborda descreve o arco ressonante sob o qual transita, que vai de Hans-Joachim Koellreutter a Davi Kopenawa.

Após o prazer de percorrer a leitura desse livro, nada mais óbvio do que salientar as ressonâncias entre o que nele o autor expõe em uma composição que muito reverbera a sua prática em arte e o que o tem mobilizado em seu campo de trabalho mais conhecido, a música. Os universos do compositor e intérprete, que, na biografia do autor fundem-se num só, materializam-se no livro como parte agora para mim inseparável do que ele vem construindo em sua longa e consistente estrada artística. O livro é um trabalho surpreendente, a ser anexado organicamente na produção de Tato Taborda. Nele, o autor descreve o arco sob o qual transita, de Hans-Joachim Koellreutter a Davi Kopenawa.

Iniciaria esta resenha falando mais do próprio autor e de sua obra musical, autorizado por um acompanhamento próximo que me foi propiciado desde o início da década de 1980, quando nos associamos com o amigo comum Tim Rescala para a criação de um estúdio para composição de músicas eletroacústicas e experimentais. Em vez de partituras seriais, atonais e/ou abertas, como seria de se esperar de um aluno de Koellreutter, Tato apresentava peças de hipnótica regularidade rítmica e harmônica, engajado em uma estética descolonizadora. Sua Prostituta Americana, estreada durante uma das primeiras edições da Bienal de Música Brasileira Contemporânea, servirá de modelo para que eu arrisque uma síntese para essa resenha, em consonância com a trinca de epígrafes com a qual Tato tão bem resume o propósito de seu livro.

Para mim, há uma quarta epígrafe, no início do livro, na foto de uma taça em estilhaços, condição a que esta chega por não resistir à ressonância que entretém com a frequência da voz da cantora, cuja amplitude força as moléculas do cristal para além de seu ponto de ruptura. A inserção dessa foto me fez lembrar de uma cena daquela obra, durante a qual uma performer pintava sobre um dos bizarros losangos “acústicos” que formam a parede de fundo da Sala Cecília Meireles. Susto geral da plateia, preocupada com o provável prejuízo a que o mais jovem compositor da Bienal se expunha… Mas era uma peça: o losango tinha sido “preparado”, revestido previamente com uma folha de papel, reveladoramente retirada depois de pintada, ainda antes de terminar a obra, para alívio geral da plateia. Uma crítica sutil ao recurso modernista de épater les bourgeois, então em voga em bienais de música. Não era apenas o gesto de um esteta, mas uma leve bastonada de mestre zen. A parte sonora da obra fluía, soando sempre tranquila, e, como tal, teríamos podido acompanhar a pintura e a peça inteira: sem medo, se não fôssemos tão assustados por formação. Encontro ressonância desse feito na menção à taça estilhaçada, inserida em um livro que louva exatamente uma harmonia planetária em convergências vibratórias. Porque a ressonância de que Tato vai tratar, que pode conter uma ameaça capaz de destruir pontes, no final não é nada disso, se deixarmos nossa ansiedade resolver-se em engajamento.

No texto, a voz da soprano ressoa nessa taça de cristal. Não sem ter sido anunciada antes, no parágrafo anterior, na página ainda sem a imagem dos cacos congelados no ar e no tempo. Trata-se, com essa menção, de uma antecipação, suspensa como uma appoggiatura, confirmando-nos que todo o livro a seguir resultará de um ato composicional. Os itens visuais do livro: as fotos, os gráficos, etc., manifestam encadeamentos e superposições multimediais, trabalho de quem se dedicou à música em, e para, todos os sentidos: imagens sonoras e visuais repercutem umas nas outras.

A voz de uma repórter ressoa na cristaleira. Outro momento de suspense, lembrando-nos que Tato se preocupa com, na voz de Paul Preciado, “[…] a névoa tóxica que nossos modos coletivos de vida produzem sobre o planeta”. Com essa imagem de paz ameaçada invadindo o aconchego de sua casa nas matas da Serra de Mar, Tato me fez lembrar do cosmonauta de Solaris, retirado da paz de sua dacha para confrontar os perigos cósmicos produzidos pela mente e pela ação do sapiens.

Em sua morada nas matas, Tato é vizinho de Manuel, com quem produziu O Tao do Sertão, uma elogio à disciplina da repetição e da rotina, condutoras dos gestos do Aikido e da feitura de uma ferramenta, em que, apoiados num ritmo repetitivo, cada gesto de um repercute no do outro, ambos entregues à construção e à manutenção de um saber. Assim também esse livro mostra seu procedimento de construção: por redundância e derivação.

Reencontro, nas páginas e palavras de Ressonâncias, a ética musical já há tempos soando conduzida pelo Taborda compositor: muito pessoal, convidativa, agregadora e desinteressada pela música “pura” – aquela sonhada por Eduard Hanslick em 1854 e até hoje recorrente em salas de concerto, a música de sons per se. Tato sempre se inclinou por inclusões, seja da cena teatral, coreográfica e visual, como se pode apreciar nas obras contracenadas com algum(a) artista ou grupo. Não por acaso, ele coordenou o grupo musical significativamente chamado Juntos.

A Geralda, mencionada no capítulo específico em que aborda o tema da amizade, encarnada no relacionamento de trabalho conjunto com Alexandre Fenerich – compositor que dividiu a cena com Tato e Geralda – é uma faceta do Juntos de quarenta anos atrás. A própria Geralda, um quase-autômato construído por Tato com a colaboração de Alexandre Boratto a partir da noção de “homem-de-sete-instrumentos” – na verdade ultrapassando largamente essa quantidade –, é mais do que uma máquina, pois acolhe e convida. Ver a Geralda em ação, acionada com o músico em seu interior, pode ensejar uma sensação de convite. O espectador-ouvinte sente um apelo para pisar no palco e chegar até ela, estabelecer um contato, nem que seja pisando, com o calcanhar, um dos acionadores mais externos de um de seus inúmeros entoadores-sonoros. São tantas as entradas para geração musical que um só músico ali enredado parece pedir participação para a execução da obra. Ou seja, pela presença de simpatia, os papéis convencionalmente aceitos no contrato musical poderiam ser ali alterados: o músico não tem que ser um virtuoso especialista, e a obra pode resultar de uma dedicação prazerosa e colaborativa. 

Motivação equivalente explica a multivocalidade do livro, um chamado a n vozes, consonantes e dissonantes, para a composição de sua ressonância de fundo, um si bemol inaudível de 7,83Hz, abaixo do limiar da escuta auricular, mas capaz de mudar os rumos de um mundo devastado pelo antropoceno. Soando ou não essa nota, o chamado por ela ecoa em citações diversas, ao longo do texto, com as vozes de apoio de Peter Pál Pelbart, Suely Rolnik, Hartmut Rosa, Hardt & Negri e muitos outros. Nesse livro percorremos, em costuras sempre visíveis entre textos e texturas, pontos tão diversos quanto a ciência experimental de Tesla e a mitologia Ianomami.

Sutilmente, Tato emprega duas expressões que, no vernáculo, tendemos a misturar: superposição e sobreposição. Entendi que a primeira, “superposição”, denota o entrelaçar de similaridades, sem que um ou outro dos itens superpostos tenha que, de algum modo, preponderar. Unindo por similaridades, essa superposição gera um terceiro item, ao mesmo tempo dependente dos primeiros, mas de recorte autônomo. O que me parece revelar a existência de um contraste com a segunda palavra: na “sobreposição”, um dos agentes tem uma dominância. Superposição ressoa mais a polifonia, por exemplo, a da música balinesa, ou a dos sapos, enquanto sobreposição remete muito mais à harmonia ocidental. Por isso, acredito que a ressonância entre os filósofos mencionados no início do primeiro capítulo seja da ordem da superposição polifônica, mesmo se alguns dentre eles antecederam temáticas que outros viriam a retomar.

Enfim: assim como a polifonia balinesa, Tato nos entrega veladamente a polifonia de sapos, estudada por ele em tese de doutorado, chegando-nos aqui superposta à constelação de configurações luminosas das nuvens de vaga-lumes.

Rodolfo Caesar

Professor titular da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Compartilhe

Enviar para:

TAGS:

Leia também