Floresta Cidade: praticar cidades e universidades vivas

Iazana Guizzo, 30/04/2024

Ilustração: Anna Sgarbi

Habitar as grandes cidades brasileiras não tem sido tarefa fácil. São notórios os inúmeros problemas de poluição, segurança, mobilidade e pertencimento em diferentes escalas. Desde os grandes espaços de lazer até os pequenos quartos rodeados de concreto podem manifestar ausência de respeito, cuidado, cooperação, amor e poética nas relações com o bioma nas quais as cidades estão inseridas. Mesmo que essas práticas insistam em brotar nas frestas da metrópole, habituamos a conviver, por exemplo, com valões de esgoto no meio de ruas. Eram antes rios, seres vivos repletos de diferentes espécies, alguns até mesmo navegáveis, mas hoje estão brutalmente poluídos e delimitados em uma caixa de concreto, sempre pequena diante da imensidão das chuvas tropicais que as fazem transbordar frequentemente. Mas, seríamos nós, igualmente, seres vivos condicionados às caixas de concreto em que habitamos?

As universidades brasileiras, lugar onde poucos jovens possuem a chance de entrar e onde muitas oportunidades e aberturas acontecem, podem ser, entretanto, espaços áridos e confinados tal qual os rios urbanos. Mesmo que tenhamos tido grandes educadores como Paulo Freire, nossas ancestralidades, realidades, histórias, desejos e afetos raramente permeiam o dia a dia das salas de aula de um país pluriétnico e multicultural. Quando afirmamos diversas culturas ou diferentes modos de perceber, sentir e entender a vida também deveríamos assegurar em nossas universidades a existência de múltiplas ciências. É importante chamar a atenção para o fato de que somos uma “civilização encruzilhada, [e temos em] cada ribanceira uma nação” como cantou Chico Buarque.1

Há muitos mundos possíveis hoje em uma cidade como o Rio de Janeiro, inclusive os afroameríndios, que são historicamente apartados dos espaços oficiais de ensino do país. E ainda há todos os outros universos futuros, aqueles que podemos inventar junto a essa grande força cultural brasileira, como afirmava Lina Bo Bardi.2 É preciso reconhecer que as lógicas centrais de produção de conhecimento incluindo aquelas validadas oficialmente na produção urbana, e todas as suas estruturas de poder, são hegemônicas e seguem os fundamentos dos países centrais mesmo que tenhamos, cada vez mais presentes em nossas salas de aula, corpos plurais. Esse descompasso entre corpo, cultura e saber científico fica quase sempre na conta dos estudantes e de alguns poucos professores, o que faz do ensino, muitas vezes, outra caixa limitante de concreto. Mas, feito os rios, nós também não transbordaríamos a cada nova chuva cósmica de mundo que atravessa nossos corpos nas diferentes ribanceiras dessas cidades encruzilhadas?

Buscar ser floresta para habitar uma cidade e uma universidade vivas, ou atravessadas por diferentes mundos em movimento, tem sido a principal atividade do nosso coletivo. Escapar às caixas de concreto acadêmicas e urbanas, permitir que o afeto exista, para que ele possa ser cuidado, e aproximar as noções de floresta e cidade, tradicionalmente separadas, são práticas essenciais para o Floresta Cidade, que, antes de um coletivo, trata-se de um projeto de extensão, ensino e pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao que parece, a grande crise atual e global exige de nós ousadia, experimentação e aposta em outras formas de a espécie humana habitar o planeta. E essa urgente metamorfose de quem já habita um planeta danificado3 inclui os nossos próprios corpos, casas, universidades e cidades. Será preciso sair do lugar de conforto que estamos acostumados a estar. A inovação na magnitude demandada, mesmo ancestral, irá forçosamente deslocar os nossos hábitos.

Processo de construção da Maloca Útero na Vivência Tupinambá promovida pelo Floresta Cidade em parceria com o Levanta Zabelê em Una no Sul da Bahia. Primeira construção da Universidade Útero Amotara Zabelê ou do Laboratório de Pesquisa Ancestral liderado por Yakuy Tupinambá. Realizada em janeiro de 2024.

Procuramos na floresta, e nos povos que jamais se desconectaram dela, provocação para pensar um Rio de Janeiro diante das crises climáticas. A Mata Atlântica, nosso bioma, um dos mais diversos e devastados do mundo, ainda pode nos inspirar a criar uma maneira de habitar mais cooperativa, participativa, coletiva, interespecífica, regenerativa, poética, de baixo consumo, de economia cíclica, de composição criativa e de alegria. “A alegria é a prova dos nove”, já dizia Oswald de Andrade. E Spinoza4 nos ensinou que sem ela não há produção de conhecimento, visto que o próprio conhecer é potência de agir, expansão corporal e criação a partir do encontro com a diferença. Ora, não há ecologia ambiental sem a social e a subjetiva. Não há transformação do ambiente sem a nossa própria metamorfose, individual e social, como nos mostrou Guattari5 há mais quatro décadas. 

Infelizmente, há ainda outras devastações além das do nosso bioma. É alarmante o número de estudantes deprimidos nesse lugar de privilégio que é a universidade, imagina fora dele. Além de grandes enchentes, desabamentos de terra e ondas de calor, há outras catástrofes em nosso tempo6 como as existências, profissionais e poéticas, o que complica a prática de diferentes ciências já que isso exige mais que métodos científicos centrais, diplomas e artigos internacionais. É preciso, antes, sentir-se vivo ao fazer vibrar o conhecimento na própria existência, deixar-se levar pelas metamorfoses que ele provoca e permitir que os afetos, a escuta e o cuidado entrem na universidade, a fim de tencionar as margens duras presentes nela. Provocar os limites para que esse contorno da produção de conhecimento seja tecido, em um ir e vir, junto aos processos multiculturais vividos nos territórios contra-hegemônicos externos à universidade.

A maior riqueza da extensão universitária para nós tem sido permitir que outras formas de produzir ciência permeiem os nossos corpos fazendo com que as zonas de conhecimento, antes estáveis na universidade, entrem em colapso.7 A extensão atua em uma via de mão dupla e isso significa que não apenas a academia leva conhecimento para os territórios em que atua, mas eles nos fazem pensar em outros termos e povoam com suas questões as pesquisas e as salas de aula do Floresta Cidade. Assim, a cidade existente e suas inúmeras complexidades e contradições pautam as nossas pesquisas e cursos, criando de fato o tão falado elo entre o tripé universitário. 

Entretanto não basta apenas conectar extensão, ensino e pesquisa. Ainda faz-se necessário que um pilar contagie o outro. Ou seja, no caso da extensão ela precisa desestabilizar o modo de ensinar e pesquisar e não apenas ser um espaço de suposta aplicação do que já se sabia antes de chegar no território de ação. Da mesma forma, a ação promovida pela extensão no território precisa balançar os modos de funcionamento locais. A premissa do encontro é a transformação de si e do outro, nos termos de Spinoza e Deleuze8.

A fricção com os territórios contra-hegemônicos que trabalhamos no Floresta Cidade — Região Portuária do Rio ou Pequena África (Floresta Harmonia, Floresta Providência, Floresta Ponto, Floresta Mystérios), Complexo de Favelas da Maré (Floresta Maré) e Aldeia Maracanã no Rio de Janeiro, Aldeia Zabelê em Una, na Bahia, entre outras colaborações indígenas (Floresta Indígena) — provocam modos de pensar mais situados e práticos, mas isso é apenas o começo do trabalho. Pode ser ainda mais desafiador essa saída dos muros da universidade ao sermos provocados em lugares imprevisíveis. A espiritualidade e a arte podem ser inseparáveis da ciência, por exemplo, o que não é raro encontrar em comunidades tradicionais e também já foi defendido pelo casal de artistas Nicholas e Helena Röerich com a bandeira da paz. Isso é tão desestabilizador aos modelos científicos que ensaios e experiências advindas desse encontro podem mudar a maneira como estamos produzindo conhecimento e, também, vivendo nas nossas universidades e cidades.

Um piso de terra de uma habitação, por exemplo, normalmente visto como pobreza, pode ser notado em outras perspectivas como conexão espiritual com a terra e seus inúmeros seres vivos. Todavia, para que possam ser notadas é preciso que essas outras formas de conhecimento sejam levadas a sério ou que elas sejam também um pouco nossas. Assim, um piso de terra deixa de estar necessariamente associado à pobreza e passa a ser entendido como reconexão com o bioma, contato cósmico ou abertura a outros mundos. Essa simples transvaloração de sentido é capaz de questionar a arquitetura que estamos ensinando nas universidades e praticando oficialmente nas cidades brasileiras. Ainda, se passássemos a ter pisos de terra em nossas casas — o que pode ser feito com excelência e eficácia — qualificaríamos a permeabilidade do solo das cidades, a temperatura das casas, o ritmo dos nossos corpos e, até mesmo, as coisas que damos vital importância.  

Esse é apenas um exemplo de como outros modos de ser e viver podem nos ajudar a desnaturalizar hábitos como o excesso de pavimentação das cidades. Com esse costume de pavimentar sempre que possível, inclusive, estaríamos sufocando a terra, impedindo-a de respirar, nas palavras do pensador Sergio Yanomami.9 É chegada a hora de construir menos ou, com os resíduos da construção civil, de pensar espaços vivos com a própria floresta ou com soluções baseadas na natureza, de apostar mais na imaterialidade dos espaços ou, até mesmo, de desconstruir, como afirmou Wellignton Cançado.10 É hora de praticar todas as ações possíveis capazes de reduzir o nosso consumo excessivo, visto que o mercado da construção leva com ele metade dos recursos do planeta, sem contar a poluição que promove. Urgem esforços de imaginação de diferentes formas de cidades. Todavia, seriam as lajes que nos separam do chão outras caixas de concreto capazes de limitar nossas percepções e conexões com os demais seres da Mata Atlântica?

Ponto de Floresta, imaginário urbano de futuro desenvolvido pelo Floresta Cidade em parceria com diversos parceiros da Região Portuária ao longo de 2022 e 2023. Atualmente está sendo desenvolvido como um projeto de adaptação ecológica para a cidade do Rio de Janeiro diante das crises climáticas.

Em tempo de crise global, devolver o pé à terra pode ser um dos diversos caminhos a fim de “devolver a terra à terra”, como propôs Hélio Oiticica ainda na década de 1970 através da ação de encaixar terra preta em cima de um aterro sanitário. Criarmos gestos que retomam uma relação de vida com esse organismo que chamamos de planeta Terra parece ser fundamental diante da “nova dimensão civilizatória que está colocada para nós em todos os setores da sociedade”. Precisamos habitar de modo sustentável “do ponto de vista econômico, social, ambiental, político, ético e estético”, nas palavras de Marina Silva.11 Talvez, assim, reconectados ao sentido de pertencimento e coletividade, a parte de nós humanos que toma de assalto o planeta de todas as outras espécies e povos que não se beneficiam diretamente da riqueza acumulada possa devolvê-la à Terra, ou aos coletivos que a constitui. Afinal, não é possível sobreviver sem a floresta. “O nosso corpo é o próprio chão que a gente pisa”, como nos ensinou a pensadora Guarani Sandra Benites.12

Essa reconexão com a Terra, com o bioma, com os elementos naturais tem sido o trabalho poético de base do Floresta Cidade, dentro e fora da UFRJ. Há uma série de dispositivos grupais, afetivos e artísticos que nos valemos para que seja possível (re)ativar essa inseparabilidade entre a nossa existência e a dos demais seres vivos. Dispositivos como oficinas sensoriais e corporais — Habitar Água, Fogo, Terra e Ar —, leituras coletivas, intervenções artísticas, vivências, resoluções de conflitos e cuidados com os desafetos e violências estruturais que emergem no processo de trabalho, dentre outras atividades, são essenciais para que seja possível a prática de um coletivo capaz ele mesmo de pertencer à Terra, o que é distinto de um grupo de trabalho convencional.

Há um convívio de habitação entre nós, de enfrentamento de lutas e problemas, de rede de apoio, de invenção de mundo, de aliança parental, de promoção de alegrias e sentidos existenciais. Nas nossas atividades desenvolvemos uma atenção ao outro, o que cria laços afetivos que tanto sustentam o próprio coletivo quanto são a principal habilidade dos nossos corpos ao encontrarmos os territórios nos quais trabalhamos. Trata-se de um modo de habitar, de um corpo poroso e sensível ao encontro com o outro, humano ou não, tal qual a floresta. Antes de propor ao Rio de Janeiro, procuramos praticar, ser floresta cidade.

Oficina sensorial Habitar Água ministrada como parte do processo participativo de concepção da reforma do espaço da Casa Resistências realizado pelo Floresta Cidade (Floresta Maré). A Casa Resitências é o primeiro abrigo latino-americano para mulheres lésbicas de favela em situação de violência liderado pela Coletiva Resistência Lésbica da Maré, localizada na Vila do Pinheiro no Complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro. Reforma realizada na primeira metade de 2022.

Os projetos que realizamos, como o Ponto de Floresta, na Região Portuária; a reforma da Casa Resistência Lésbica, na Maré; o espaço para a primeira infância, na Aldeia Maracanã; e a Maloca Útero, no território Tupinambá, não se separam desse modo de habitação do Floresta Cidade. O produto é consequência de um processo que necessariamente transforma cada um de nós. Faremos outras ciências, universidades e cidades caso sejamos nós mesmos corpos porosos a ponto de existirmos como encruzilhadas florestais e urbanas em um país cheio de ribanceiras.

Notas

  1. Música “Estação Derradeira”, de Chico Buarque. [voltar]
  2. Bardi. L.B. Tempos de Grossura: O Design no Impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994. [voltar]
  3. Haraway, D. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016. [voltar]
  4. Spinoza, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. [voltar]
  5. Guattari. F. As três ecologias. Campinas, SP: Papirus, 2012. [voltar]
  6. Stengers, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015. [voltar]
  7. Passos, Eduardo, and Liliana da Escóssia. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, 2010. [voltar]
  8. Deleuze, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. [voltar]
  9. Yanomami, S. O peso das coisas, in Contracidades, eds. Felipe Carnevalli and Paula Lobato. Belo Horizonte: Piseagrama/N-1, 2023 111-222. No prelo. [voltar]
  10. Cançado, Wellington. Desconstrução civil. Piseagrama, Belo Horizonte, n. 10, pp. 102-111, mai. 2017. [voltar]
  11. Fala proferida pela ativista e ministra do Meio Ambiente Marina Silva no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro no dia 07 de março de 2024, no contexto do evento “Justiça climática em tempos de transformação”. [voltar]
  12. Benites, S. Kunhã py’a guasu. Piseagrama, Belo Horizonte, n. 15, p. 92-104, dez. 2021. [voltar]
Iazana Guizzo

Arquiteta, mestre em psicologia, doutora em urbanismo e formada em curso técnico de bailarina contemporânea. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do projeto de extensão, ensino e pesquisa Floresta Cidade e autora do livro “Reativar Territórios: o corpo e o afeto na questão do projeto participativo”. Contato: iazanaguizzo@fau.ufrj.br

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