Resenhas

Diálogos interdisciplinares sobre a historicidade do conceito de natureza

Bruna Rodrigues, 28/06/2023

Em um cenário de negacionismo científico e disseminação de notícias falsas, em especial no que se refere ao meio ambiente e às mudanças climáticas, há muito a ser feito em termos de divulgação científica. A proposta da obra “Concepções de Natureza em Humboldt, Darwin e Lévi-Strauss”, recém-publicada e organizada pelas biólogas Christine Ruta (Instituto de Biologia/UFRJ e Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ) e Mariana Contins (Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ), é justamente estabelecer um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento acerca das noções de natureza, que servem de pano de fundo para compreendermos o atual cenário de crise climática. 

Como a categoria “natureza” variou historicamente? De que modo autores clássicos do pensamento ocidental trataram o termo em diferentes tempos históricos? Como as diferentes perspectivas sobre esse conceito estão presentes em políticas governamentais que vão na contramão da defesa do meio ambiente? Essas e outras questões instigantes fazem parte da obra, que reúne artigos dos biólogos Hélio Ricardo da Silva (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ) e Rômulo Barroso (Universidade Federal da Bahia – UFBA), e do antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ).

Estruturado em três eixos, o livro tem no conceito de natureza o seu fio condutor e apresenta ao leitor as perspectivas de autores essenciais no campo das ciências naturais, cujas reflexões foram atravessadas pelos debates sobre natureza e cultura e que representam diferentes tradições intelectuais: o naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) e o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009). 

Em “Humboldt e a emergência de um conceito de natureza”, primeiro artigo do livro “Concepções de Natureza”, Hélio Ricardo da Silva explora a historicidade de palavras e conceitos: “Os usos e significados das palavras ao longo do tempo, da mesma forma que todas as nossas construções culturais, têm um passado que pode ser, em muitos casos, resgatado e reconstruído. Ou seja, as palavras têm história” (2023, p. 23). O biólogo, docente do curso de Ciência Biológicas da UFRRJ, demonstra de que maneira o trabalho de Humboldt influenciou nosso entendimento atual a respeito do conceito de natureza, como sendo tudo aquilo que não é fruto de atividades culturais, isto é, como aquilo que não é resultado da ação humana. 

Além disso, outra concepção relevante de Humboldt acerca da natureza está ligada à necessidade de sua preservação. Tendo vivido entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, Humboldt foi um dos primeiros pesquisadores a sugerir a hipótese de que o fenômeno das mudanças climáticas poderia ser intensificado pela ação antrópica. Ele explorou ainda a noção de interdependência ao afirmar que a existência humana corria risco caso a natureza não fosse preservada.

O segundo artigo do livro, “A concepção de natureza em Charles Darwin”, de autoria de Rômulo Barroso, pesquisador do Instituto de Biologia da UFBA, se detém sobre a obra de Charles Darwin, considerado um dos maiores naturalistas de todos os tempos. Darwin escreveu obras que transformaram as ciências naturais e influenciaram diversas outras áreas do saber. Em seu livro “A origem das espécies” (1859), o naturalista investiga o processo de evolução das espécies e, como explica Barroso, recoloca o homem em posição de igualdade biológica com os outros seres não humanos, todos sujeitos à evolução natural. Nos termos do autor, Darwin “alterou também o lugar do homem no mundo natural, ao retirá-lo de uma posição privilegiada e o inserir na árvore da vida, em igualdade biológica com todos os outros seres vivos” (2023, p. 39).

O terceiro e último artigo do livro, escrito por José Reginaldo Santos Gonçalves, se intitula “Quantas naturezas cabem na palavra natureza? A oposição natureza e cultura em Claude Lévi-Strauss”. Nele, o autor, pesquisador do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), aborda a dicotomia radical entre os conceitos de natureza e cultura, que tem sua matriz intelectual no Iluminismo do século XVIII, e continua ecoando no senso comum atual. Segundo Gonçalves, “quando usamos a palavra ‘natureza’, o propósito, em geral, é designar um domínio ontológico, o qual, no limite, seria percebido como historicamente invariável, único e situado, tendencialmente, longe do alcance absoluto das diversas e instáveis, benéficas ou desastrosas intervenções humanas (ou ‘culturais’)” (2023, p. 68).

O pesquisador trata ainda de como é possível distinguir duas concepções de natureza na obra de Lévi-Strauss, a primeira delas expressa no clássico “As estruturas elementares do parentesco” e a segunda presente no conjunto de trabalhos intitulado ‘Mitológicas’, que investiga as mitologias dos povos ameríndios. Essa segunda concepção rompe radicalmente com qualquer divisão entre natureza e cultura, apontando para a integração da espécie humana com a natureza que a cerca.

Reunidos, os três artigos apresentam –  por meio de uma linguagem fluida, clara e acessível –  diversas perspectivas possíveis em relação ao conceito de natureza e trazem elementos essenciais para a compreensão do cenário social e político contemporâneo no que se refere ao meio ambiente. 

Outro aspecto a ser ressaltado a respeito da obra “Concepções de Natureza em Humboldt, Darwin e Lévi-Strauss” está ligado à divulgação científica e à promoção de trocas entre as áreas de pesquisa na universidade. Um de seus maiores méritos é promover o diálogo entre diferentes discursos acadêmicos (neste caso antropologia e biologia) e ainda criar pontes que aproximem o saber científico do público mais amplo. 

As organizadoras do livro conseguem reunir, de forma profícua e interessante, pesquisadores de distintas áreas do conhecimento para dialogarem a respeito de temáticas relevantes na contemporaneidade, entre elas meio ambiente e mudanças climáticas, obtendo um resultado coerente e absolutamente acessível a todos os interessados na temática.

Como excelente obra de divulgação científica, o livro pode interessar a todos aqueles que – pertencentes ou não à comunidade acadêmica – buscam compreender as sutilezas dos debates contemporâneos e as diferentes perspectivas sobre homem e natureza que estão em jogo quando tratamos de questões prementes como crise climática, aquecimento global e negacionismo científico. 

Lançado pela Editora UFRJ em 2023, o livro é uma realização da Superintendência de Divulgação Científica (SuperCiência) do Fórum, criada em março de 2022, cuja missão é tornar o conhecimento científico acessível à população, incentivando diálogos entre a comunidade acadêmica e a sociedade em geral. 

“Concepções de Natureza em Humboldt, Darwin e Lévi-Strauss” surgiu a partir de um seminário de mesmo nome, promovido pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em agosto de 2022. O debate ainda pode ser integralmente assistido no canal de YouTube do Fórum.

RUTA, Christine; CONTINS, Mariana (Org.). Concepções de Natureza em Humboldt, Darwin e Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2023. 88 p.

Bruna Rodrigues

Pós-doutoranda do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. Realizou estágio de Doutorado-sanduíche na Faculté des Sciences Sociales (Université de Strasbourg), com auxílio da bolsa Capes. É mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com auxílio da Bolsa Faperj. Possui Especialização em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ e graduações em Rádio e TV pela UFRJ e em Jornalismo pela UERJ. Contato: bruna@forum.ufrj.br

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