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Impostos progressivos e reforma tributária no Brasil pós-coronavírus

Celia Kerstenetzky e Fabio Waltenberg, 22/07/2020

Foto de Pixabay no Pexels

Uma análise a partir de Capital e ideologia, de Thomas Piketty. Diante da tripla crise, sanitária, econômica e social, ocasionada pelo coronavírus e da esperada retomada do debate sobre a reforma tributária no país, o texto traz à tona a discussão sobre uma agenda de justiça fiscal

Capital e Ideologia: uma síntese

Em seu mais recente livro, Capital et Idéologie, Thomas Piketty faz um inventário histórico de sociedades desiguais e da força de discursos e instituições que justificam e promovem desigualdades econômicas, políticas e sociais. Mostra também como crises graves, como as grandes guerras, ao exporem a disfuncionalidade das desigualdades, trouxeram à tona temas antes vistos como excêntricos ou perigosos ‒ como sufrágio universal, imposto de renda progressivo ou impostos excepcionais sobre a riqueza. Estes, em seu tempo, ao se traduzirem em instituições e políticas, acabaram normalizados e legitimados.

Piketty argumenta que sempre houve e haverá escolhas, alternativas a serem avaliadas. As grandes decisões que afetam as desigualdades não têm natureza técnica ou econômica, mas sim ideológica e política.

Apoiado nos melhores dados disponíveis de diferentes países, obtidos pela combinação de fontes por dezenas de colaboradores, o autor documenta a evolução das desigualdades, sobretudo no último século e meio. Da Revolução Conservadora dos anos 1980 para cá, período que classifica de hipercapitalismo, houve uma explosão na distância, medida em riqueza e renda, entre o décimo mais abastado da população (especialmente o centésimo mais rico) e os demais (principalmente os 50% mais pobres). Observado nos países centrais, o fenômeno aproximou o mundo atual das desigualdades extremas do final do século XIX e início do século XX. Países menos desenvolvidos ou estagnaram em níveis elevados de desigualdades ou a viram aumentar também. O Brasil figura entre os mais desiguais, superado apenas pelos países ricos em petróleo do Oriente Médio.

Piketty argumenta que sempre houve e haverá escolhas, alternativas a serem avaliadas. As grandes decisões que afetam as desigualdades não têm natureza técnica ou econômica, mas sim ideológica e política. Razão pela qual devem se sujeitar ao debate público informado e à deliberação democrática.

Observa o autor que desigualdades extremas se viram fortemente comprimidas ao longo do século XX graças a uma combinação de eventos cruciais (as guerras, a Grande Depressão) e decisões políticas. Da mesma forma, a desigualdade galopante das últimas quatro décadas poderia ser refreada ou ter seu curso invertido. Agora, como no passado, a mudança requer esforço intelectual e decisão política. Projetos redistributivos no campo da tributação progressiva foram em vários momentos descartados, sob a justificativa de colocarem em risco a própria propriedade privada e sua contribuição ao bem comum. Porém, as intensas e crescentes desigualdades atuais ameaçam não encontrar limite caso não sejam politicamente contrariadas, e já não guardam qualquer relação com a “utilidade social” (termos do autor). A atestar o mal social representado pelas desigualdades contemporâneas, Piketty compara as pujantes taxas de crescimento econômico (medida possível da utilidade social) vigentes ao longo do redistributivo século XX (para ele, o período 1914-1980) com as do período recente, de prosperidade limitada e exclusivamente concentrada nos mais ricos, o que alimentaria sentimento generalizado de injustas desigualdades.

Qualquer resposta razoável à crise sanitária que não represente sacrifício econômico e social insuportável requererá gigantesca injeção de recursos públicos, para sustentar renda, empregos e cuidados de saúde, e implicará elevação substancial da dívida pública.

Entendida em sentido amplo, a social-democracia, força essencial nas mudanças progressistas do século XX, estaria sendo incapaz de compreender as circunstâncias presentes e responder aos novos desafios, vendo derreter sua base de apoio tradicional, entre classes médias remediadas e classes populares, mais seduzidas por agendas identitárias, nacionalistas, populistas. Ao capitular à inevitabilidade da globalização nos termos em que tem ocorrido e do “proprietarismo” (segundo o autor, a ideologia da sacralização da propriedade privada), a política social-democrata teria abdicado de explorar ou conceber: (a) formas de socialização e circulação de propriedade, como a “propriedade social” e uma “dotação universal de capital”, alternativas à tradicional posição socialista de propriedade estatal dos meios de produção, (b) uma plataforma de tributação progressiva que inclua um imposto sobre a riqueza, (c) a imprescindível articulação de uma agenda transnacional para viabilizar uma reforma tributária fiscalmente justa, (d) uma equalização do volume de recursos públicos destinados à educação de cada cidadão, (e) um estado social amplo que ofereça serviços universais de boa qualidade (saúde, educação, etc.) e seguridade social abrangente, incluindo a garantia de uma renda mínima a todos. Ao conjunto de propostas que apresenta para uma social-democracia contemporânea, Piketty dá o nome de “socialismo participativo no século XXI”.

Impostos progressivos sobre riqueza, herança e renda

É nas propostas no campo tributário, porém, que Piketty mais se detém, entre outras razões, para explicar como financiaria seu ambicioso conjunto de políticas. Trata-se de tema de interesse para o Brasil, em um momento em que coincidem duas circunstâncias: o debate sobre reforma tributária e a chegada da tripla crise, sanitária, econômica e social, trazida pelo coronavírus.

Esta crise tem sido devastadora em diversas dimensões. Ela expõe e exacerba desigualdades preexistentes. Ela nos obriga a refletir profundamente sobre reconfigurações da sociedade, em particular do sistema tributário que terá de ser erigido para dar conta dos desafios que já se impõem e os que nos aguardam no futuro próximo. Qualquer resposta razoável à crise sanitária que não represente sacrifício econômico e social insuportável requererá gigantesca injeção de recursos públicos, para sustentar renda, empregos e cuidados de saúde, e implicará elevação substancial da dívida pública. A crise interroga diretamente a possibilidade de o sistema tributário fazer frente aos novos compromissos, ao longo do tempo, de um modo fiscalmente justo, recorrendo à tributação sobre altas rendas, heranças e fortunas. Uma primeira questão se impõe: seria a crise sanitária uma conjuntura crítica, como no passado o foram as guerras e a Grande Depressão, capaz de provocar uma verdadeira inflexão no debate sobre reforma tributária no Brasil, trazendo para o centro das atenções o problema sempre adiado da justiça fiscal?

Em seu programa “socialista participativo”, Piketty propõe essencialmente impostos progressivos sobre a riqueza, a herança e a renda, em níveis semelhantes ou mais elevados aos praticados por países hoje desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos e o Reino Unido, no pós-guerra e nos trinta anos dourados do capitalismo que se seguiram. Depois de insistir em como a tributação progressiva foi importante para a derrubada da desigualdade no século passado ‒ o que ele denomina Revolução Fiscal do século XX ‒ e na simétrica correlação entre a retomada da desigualdade (a concentração nas altas rendas e fortunas) e o desmantelamento dos sistemas tributários progressivos com a outra revolução, a Revolução Conservadora, Piketty propõe reformas.

A primeira é a eliminação, por sua notória regressividade, dos impostos indiretos ‒ seriam mantidos apenas os que fossem úteis para eliminar externalidades, como o carbon tax (mas segundo uma nova formulação). A carga tributária conteria apenas impostos diretos progressivos: sobre a propriedade (incluindo a riqueza financeira), sobre heranças (incluindo sobre doações intervivos) e sobre a renda.

Em seu programa “socialista participativo”, Piketty propõe essencialmente impostos progressivos sobre a riqueza, a herança e a renda, em níveis semelhantes ou mais elevados aos praticados por países hoje desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos e o Reino Unido, no pós-guerra e nos trinta anos dourados do capitalismo que se seguiram.

Impostos sobre a propriedade e sobre a herança seriam calibrados para incidirem sobre riqueza excessiva e de modo progressivo. Seu objetivo imediato seria financiar uma herança social, a dotação universal, em linha com o projeto de circulação da propriedade. O imposto de renda seria dirigido para financiar um estado social robusto. No exercício ilustrativo apresentado em Capital et Idéologie, uma carga tributária de 50% do PIB se repartiria em 1% do PIB, a título de imposto sobre herança, 4% de imposto sobre a riqueza e 45% de imposto sobre a renda. Atualmente, nos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a situação é muito diferente: a carga tributária total é, em média, próxima a 34% do PIB, com 13% provenientes de tributação sobre renda e riqueza, 9,2% de folha de pagamentos e 11,5% de impostos indiretos (Orair, 2015).

A insistência em complementar o imposto de renda com o imposto anual sobre a riqueza se justifica por ser a concentração de riqueza muito maior do que a da renda ‒ de fato, os 50% mais pobres praticamente não possuem riqueza líquida, enquanto os 10% mais ricos detêm entre 50 e 55% da riqueza no Reino Unido ou na França, chegando à faixa de 70 a 75% nos EUA. Ainda mais eloquentes são os dados relativos aos 1% mais ricos, que concentram entre 20 e 25% da riqueza no Reino Unido ou na França, e nada menos do que de 35 a 40% nos EUA (Piketty, 2019, p. 782-783). Quanto ao imposto de renda, o tratamento tributário dado ao imposto sobre a pessoa física deveria ser o mesmo do imposto corporativo, para evitar estratégias de otimização (no Brasil, por exemplo, a “pejotização” do trabalho). Para tanto, propõe que contribuições sociais recebam o mesmo tratamento que recai sobre os rendimentos, com o mesmo grau de progressividade ‒ como na Dinamarca, por exemplo.

Piketty alerta que, mesmo nos países desenvolvidos, falta transparência e sobra desilusão. A ignorância sobre a tributação é resultado de deficiências na legislação e nos sistemas de controle nacionais de cada país, mas também da ausência de coordenação internacional na matéria.

Tais propostas dependem de vários detalhes, mas um pressuposto parece ser incontornável: qualquer discussão de justiça fiscal deve ser precedida pelo maior grau de transparência possível sobre o estado atual da tributação: quem paga, o quanto paga, quem é isento, por que é isento. Um segundo elemento crucial é a recusa a se render a algum tipo de fatalismo, o quadro mental de abdicar de aspirar qualquer grau de justiça fiscal por ser impossível de atingir. Superado esse estágio inicial, o debate estaria aberto.

Obstáculos às propostas de Piketty e o debate brasileiro

Piketty alerta que, mesmo nos países desenvolvidos, falta transparência e sobra desilusão. A ignorância sobre a tributação é resultado de deficiências na legislação e nos sistemas de controle nacionais de cada país, mas também da ausência de coordenação internacional na matéria. Em tempos de integração financeira internacional e de ativos intangíveis, é simples deslocá-los sem deixar rastros. Ainda assim, o autor defende que, mesmo sem colaboração internacional, um país de tamanho médio, como a França, isoladamente pode aprimorar seus mecanismos de mensuração de rendas e riquezas provenientes das mais diversas fontes, fazendo uso de ferramentas de cruzamento de dados (big data) e legislação inteligente (declarações pré-preenchidas) enquanto torna mais progressiva sua tributação. A potencial fuga de riqueza financeira seria refreada pela introdução de tributação incidente sobre movimentos de saída do país de ativos financeiros ou sobre renúncia da nacionalidade (exit tax). Este tributo se justifica pelo fato de os proprietários de riqueza terem se beneficiado das infraestruturas econômica, social, legal e fiscal do país para amealhar suas fortunas.

Frente à habilidade dos detentores de riqueza financeira de transformar a natureza de seus ativos e de influenciar o rumo das legislações nacionais, cabe indagar em que medida a proposta de Piketty se sustentaria diante das inevitáveis tentativas de elisão e evasão fiscal que adviriam. Se em países desenvolvidos, com Estados fortes, existe essa preocupação, que dirá em países em desenvolvimento.

O Brasil tem na Receita Federal um órgão estruturado, pessoal capacitado e sistemas de informação avançados. Mas para fazer cumprir um exit tax, sem o qual o imposto sobre a riqueza financeira seria pouco efetivo, seria preciso assegurar amplo respaldo em: legislação, sistema judiciário, órgãos de controle e colaboração internacional; além de manter esse conjunto ao abrigo da influência dos interesses dos principais agentes afetados pelo tributo de saída ‒ agentes que são justamente os mais ricos e poderosos brasileiros. Em que pesem as dificuldades, vale a menção ao “repatriamento” ao Brasil em 2016 de parte de recursos de nacionais estacionados em paraísos fiscais, graças à colaboração internacional.1

Em conjuntura de forte restrição fiscal no país, esse caso ilustra não tanto a aplicação de um “tributo de saída” quanto o oferecimento de uma oportunidade de regularização, por meio de uma nova lei, o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), e do acesso à informação facultado pela adesão do país a tratados internacionais.2 Os arquivos da operação Lava Jato e de outras assemelhadas são fontes ainda por explorar na pesquisa sobre a magnitude desses recursos, bem como sobre a extensão da influência dos mais ricos sobre a legislação tributária no país.

Identificar seu caráter impopular é importante, porque um repúdio a um imposto, ou a vários deles, pode minar a legitimidade do sistema tributário.

Outra dificuldade é a impopularidade do imposto sobre a herança, explicada, segundo Piketty, por uma percepção de que seu ônus é maior do que realmente é, e também por uma legítima preocupação de pequenos e médios proprietários de que seus herdeiros, sem liquidez, precisem vender o imóvel herdado para honrar os impostos devidos. Identificar seu caráter impopular é importante, porque um repúdio a um imposto, ou a vários deles, pode minar a legitimidade do sistema tributário. A consequência não é abrir mão desse imposto potencialmente justo e eficiente, mas sim proceder a uma pedagogia do imposto, deixando claro que tributar a riqueza dos muitos ricos ‒ especialmente na forma de ativos financeiros ‒ é seu principal objetivo, e cuidar para que, ao se o reformar, sejam bem calibrados os parâmetros, incluindo uma razoável faixa de isenção seguida de alíquotas progressivas. No Brasil, há espaço para se elevar as alíquotas, baixas ou muito baixas a depender da Unidade da Federação, do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCD), e deve-se atentar para brechas na legislação, que dão margem a um “planejamento sucessório” (Gobetti, 2018, p. 41), interessante para os herdeiros, mas danoso à coletividade.

No esquema proposto por Piketty, em conjunto com o imposto sobre a herança, o imposto progressivo sobre a riqueza líquida ou “imposto sobre a propriedade”, que incluiria a riqueza financeira, contribuiria para o objetivo de circulação da propriedade ao financiar uma herança social universal. Em contraste com o imposto sobre herança, que requer esforço de esclarecimento de seus aspectos mais sensíveis, o autor considera que o imposto sobre a riqueza, desde que incida sobre grandes fortunas, seria de fácil aceitação, dada a percepção generalizada de concentração extrema de riqueza no mundo. O obstáculo é o “efeito Depardieu”, problema frequentemente alegado, em geral por críticos à agenda de progressividade tributária, de fuga para o estrangeiro dos proprietários de capitais, em conjunto com a diminuta chance de êxito de um projeto de lei que imponha algum tipo de tributo de saída, embora até mesmo no Brasil a movimentação financeira para fora e para dentro do país já seja objeto de taxação.

Assim como em qualquer outro período da história, os grupos privilegiados procuram defender e justificar o status quo de desigualdades exacerbadas e crescentes valendo-se de diversos meios, resumidos pelo autor nos termos “discursos e instituições”.

De um modo geral, uma barreira contra a qual se confrontam as propostas de Piketty são os lobbies favoráveis aos interesses dos proprietários. Assim como em qualquer outro período da história, os grupos privilegiados procuram defender e justificar o status quo de desigualdades exacerbadas e crescentes valendo-se de diversos meios, resumidos pelo autor nos termos “discursos e instituições”.

Na academia, a teoria da tributação ótima,3 programa de pesquisa cujo apogeu se deu nas décadas de 1970 e 1980, acabou por alimentar ‒ de forma deliberada ou não ‒ discursos em prol da redução de alíquotas, sobretudo incidentes sobre o capital, e da redução e uniformização de alíquotas de impostos sobre bens e serviços.4 Simultaneamente eclode a Revolução Conservadora, que ganha expressão política máxima nos governos de Reagan e Thatcher, mas que nunca mais deixa de pautar o debate político, e não apenas nos EUA e no Reino Unido. Na macroeconomia internacional, a despeito de evidência menos que sólida, prospera a teoria da globalização, sinalizando a inevitável competição tributária e a necessária desoneração dos capitais, mais um motivo para deixá-los em paz.5

No Brasil, algumas dessas teses foram arguidas durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987, quando se confrontaram com projeto tecnicamente consistente de introdução de tributação francamente progressiva no Brasil, com destaque para o inexistente imposto sobre riqueza, então denominado imposto sobre o patrimônio líquido ‒ o Brasil era país retardatário no tema progressividade e havia certa expectativa de que a nova Constituição corrigisse essa distorção (Fandiño; Kerstenetzky, 2018). A despeito de estarem as economias avançadas ocupadas em reduzir a progressividade de seus sistemas tributários ao longo da década de 1980, na onda da Revolução Conservadora, o atraso brasileiro na matéria era ainda assim significativo. Não passou despercebida a intensa movimentação política de lobbies empresariais e regionais na instrumentalização de teorias “regressivistas”, como as mencionadas. A sinalizar a correlação de forças que prevaleceu na matéria tributária (em franco contraste com o capítulo dos direitos sociais), o resultado final foi que apenas em um artigo da Constituição de 1988 se menciona o princípio da progressividade, o artigo referente ao imposto de renda, e de modo vago o suficiente para acomodar qualquer conjunto de alíquotas máximas apenas mais elevadas para as altas rendas (Fandiño; Kerstenetzky, 2018).6

Há no Brasil uma conjugação de falta de transparência sobre a situação tributária, com incompreensão da natureza e do funcionamento dos diversos impostos.

Na contramão, Piketty propõe em seu livro que as constituições fixem como cláusula pétrea o princípio de que a carga tributária das altas rendas nunca seja proporcionalmente inferior (de preferência superior) à das rendas mais baixas e determinem ao governo a publicação anual dos montantes de tributos realmente pagos por diferentes classes de renda e riqueza. Não chega a ser uma recomendação revolucionária. Contudo, na esteira de desinformação ou manipulação, movimentos anti-impostos emergem, como, por exemplo, o liderado pelo Tea Party nos Estados Unidos, ou pela Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP) no Brasil, com ações como o “impostômetro” ou o “dia sem impostos”. Mesmo assim, não se pode dizer que se configurem em fenômeno de massa, sendo possivelmente mais bem percebidos como revolta da elite.

Há no Brasil uma conjugação de falta de transparência sobre a situação tributária, com incompreensão da natureza e do funcionamento dos diversos impostos. A tal ponto que, mesmo em ambientes progressistas, nem sempre é bem acolhida uma agenda favorável à tributação progressiva de riqueza, herança e renda. Confunde-se renda com riqueza; não há clareza sobre o grau de concentração de renda e riqueza no Brasil; pequenos proprietários e a classe média temem que impostos progressivos sobre riqueza, herança e renda lhes sejam danosos ‒ até porque, entre os não pobres, é sobre esses grupos que incidem os impostos no país; há uma (ilusória) crença de que somente o lado do dispêndio e do investimento social é que deve se pautar pela progressividade; a academia ainda não parece ter assimilado as lições da revisão da teoria da tributação ótima, tampouco os aspectos controversos da teoria da globalização frente às demandas democráticas por gastos sociais e ao espaço, seja de ação dentro de cada país, seja de alguma coordenação transnacional, como sugerido por Piketty.

É nesse ambiente relativamente hostil que se daria a tentativa de reintroduzir seriamente no debate os três tipos de impostos privilegiados por Piketty. Diante disso, sua sugestão inicial de eliminar os difusos impostos sobre o consumo, que oferecem sólida base fiscal e a tranquilidade da invisibilidade ‒ ninguém pareceu dar muita bola para o impostômetro proposto pela FIESP ‒, se assemelha a um desvario. Contudo, que Piketty desdenhe de impostos indiretos ‒ reconhecidamente regressivos, mesmo quando bem estruturados ‒ decorre da natureza especulativa e normativa do exercício a que se propõe, qual seja, delinear uma agenda “socialista participativa”. De fato, o autor não se ocupa em explicar como se faria a transição a partir do sistema atual, no qual os impostos indiretos têm grande importância, mesmo nos países da OCDE, de modo que seria difícil abrir mão deles no curto prazo sem comprometer a receita total dos governos, e as políticas constitutivas do welfare state em particular. Ademais, na contramão do proposto por ele, o peso desses impostos vem crescendo nesses países.

A crise sanitária e a esperada retomada da discussão sobre a reforma tributária podem se afigurar como a situação crítica para a experimentação com um reformismo globalmente justo.

O paradoxo é que, enquanto em países menos desiguais que o Brasil o peso dos impostos mais progressivos na carga tributária é de cerca de um terço, no Brasil, a carga tributária de 33,4% do PIB em 2014 era composta por (pouco progressivos) 8,1% de impostos sobre a renda e propriedade, ou seja, menos de um quarto do total. Enquanto isso, os impostos indiretos representavam 15,7% do PIB. Ao mesmo tempo em que é impossível defender o status quo, também é difícil, ao menos no curto prazo, abdicar dos impostos indiretos, que representam quase a metade do volume arrecadado. Por esse motivo, há que insistir na agenda de se revisar o peso desses impostos, isto é, na redução da dependência de nossa arrecadação sobre tributos fiscalmente injustos ‒ e a realidade diversa da OCDE, bem como o horizonte normativo apontado por Piketty, podem servir de inspiração. A crise sanitária e a esperada retomada da discussão sobre a reforma tributária podem se afigurar como a situação crítica para a experimentação com um reformismo globalmente justo.

Considerações finais

Propostas como a de justiça fiscal sem compromissos de Piketty, se podem provocar um dar de ombros por sua aparente impraticabilidade ou, ainda, por não virem acompanhadas de instruções sobre “como” fazer, ao lado de “o que” fazer, não deixam de produzir desconforto. Não é possível ignorá-las uma vez que se tenha sido exposto aos argumentos do autor. Certamente, haverá os que considerem a orientação geral de justiça fiscal algo fora de cogitação, por descartarem a importância das desigualdades, ou por crerem que desigualdades podem ser amenizadas a despeito de injustiças tributárias. Mas aos que se importam com as desigualdades e entendem que elas se relacionam com a concentração no topo da distribuição de renda e riqueza, as propostas do autor não serão indiferentes, mesmo que suscitem suspeitas de ordem prática. Concordarão que a agenda de progressividade fiscal decorre logicamente do diagnóstico de desigualdades intensificadas pela decolagem dos muito ricos, e que, por razões inteiramente lógicas, se fossem as únicas a serem consideradas, impostos regressivos deveriam ser eliminados e os progressivos deveriam ser implementados, possivelmente do modo sugerido e para atender aos objetivos citados por Piketty: difundir a propriedade e financiar o estado social.

Talvez a grande contribuição de Capital et Idéologie seja o papel político atribuído ao esforço intelectual de produção e difusão de dados e de proposição de narrativas e interpretações, algo ao alcance do economista e que representa um admirável serviço público.

Mesmo que se aceite que o exercício é principalmente lógico-especulativo, o argumento é convincente o suficiente para impedir que deslizemos para o outro lado, o da inevitabilidade das desigualdades: não há nada de natural nos processos que resultaram nas desigualdades contemporâneas, a história pregressa está recheada de momentos em que debates públicos ocorreram e decisões políticas foram tomadas, numa ou noutra direção, e em muitos momentos não apenas intervieram ações deliberadas, mas a presença ou ausência de informação ou de publicização suficiente da informação fizeram a diferença. Ademais, conjunturas críticas foram identificadas como momentos propiciadores de transformações mais profundas, quando o excêntrico se tornou normalizado, o impensável ficou ao alcance da mão. Ou seja, sempre houve, e a aposta é que sempre haverá, escolhas a se fazer, alternativas a serem avaliadas; não há, a história parece ensinar, porque capitular a inexistentes leis de ferro como a inevitabilidade da globalização “as we know it” ou do que Piketty chama de proprietarismo, isto é, a ideologia da sacralização da propriedade privada acima de tudo, mesmo que em vários momentos ela conspire contra o bem comum.

Se diversas crises ao longo de nossa história recente não foram capazes de promover a agenda da justiça fiscal à atenção prioritária dos brasileiros, será talvez a crise sanitária uma oportunidade a não ser desperdiçada?

Mais do que isso, a despeito das propostas bastante concretas que faz e às quais se podem interpor argumentos e contingências, Piketty insiste que decisões sempre vão diferir porque devem estar sujeitas às circunstâncias de tempo e espaço, ao debate público informado e, sobretudo, à deliberação democrática. Talvez a grande contribuição de Capital et Idéologie seja o papel político atribuído ao esforço intelectual de produção e difusão de dados e de proposição de narrativas e interpretações, algo ao alcance do economista e que representa um admirável serviço público. Desse modo, vários dos obstáculos que podem ser contrapostos a uma imaginativa agenda de justiça fiscal podem ser reinterpretados como novos desafios à inventividade, seja do intelectual, seja do policy maker. Mais do que instruções específicas, o que emana da leitura de Piketty são orientações gerais: a mudança em direção à maior justiça fiscal é possível porque foi historicamente possível; o esforço intelectual de compreensão da realidade social e sua publicização são condições sine qua non para mudança; decisões democráticas não podem ser substituídas por decisões técnicas; contudo, não há nenhuma impossibilidade de ordem técnica para a concepção de uma agenda de justiça tributária, a decisão de concebê-la e implementá-la é de natureza política.

Ao pensarmos o caso do Brasil, sugerimos enquadrar a crise sanitária como uma dessas conjunturas críticas da história. Aqui, o fim da ditadura militar, acompanhado de uma enorme demanda reprimida por direitos, foi um desses momentos, em que, como que por milagre, se conseguiu fixar na lei maior os direitos sociais como direitos do cidadão brasileiro (mas não a tributação progressiva). Se diversas crises ao longo de nossa história recente não foram capazes de promover a agenda da justiça fiscal à atenção prioritária dos brasileiros, será talvez a crise sanitária uma oportunidade a não ser desperdiçada? Que ela põe em relevo e agrava o problema da desigualdade, não há dúvida. Que ela requer imensos recursos para seu longo enfrentamento que não se resume a ações emergenciais, até mesmo por conta das desigualdades preexistentes que ela contribui para exacerbar, também não há dúvida. Que ela exigirá que os recursos necessários provenham dos grupos sociais que os detenham, tampouco parece haver dúvida. Como então proceder ao debate da já agendada reforma tributária passando ao largo da questão da progressividade? Se pode haver um benefício de crise tão devastadora, parece ser sua habilidade de nos fazer despertar do sonho dogmático do proprietarismo, que tão mal tem feito ao Brasil e ao mundo.


Texto recebido em 20 de maio de 2020.

AFONSO, J. R. et al. (orgs.). Tributação e desigualdade. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

FANDIÑO, P.; KERSTENETZKY, C. O paradoxo constitucional brasileiro: direitos sociais sob tributação regressiva. Brazil. J. Polit. Econ., v. 39, n. 2, 2019.

GOBETTI, S. Tributação do capital no Brasil e no mundo. Texto para discussão 2380. Brasília, Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2018.

KERSTENETZKY, C.; PEREIRA, G. Great recession, great regression? The welfare state in the 21st century. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, UFRJ. mimeo., s/d.

MIRRLEES, J. et al. Tax by design: the Mirrlees review. Oxford: Oxford University Press, 2011. 548p.

MURPHY, L.; NAGEL, T. O mito da propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ORAIR, R. Desonerações em alta com rigidez da carga tributária: o que explica o paradoxo do decênio 2005-2014?. Texto para discussão 2117. Brasília, Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2015.

PIKETTY, T. Capital et Idéologie. Paris: Seuil, 2019.

Van Parijs, Philippe; Vanderborght, Yannick. Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy. Cambridge: Harvard University Press, 2017.


Notas

  1. Estritamente, o RERCT não exigia repatriação, mas permitia regularização. De todo modo, sobre o montante mantido no exterior, ao ser regularizado, passam a incidir tributos. [voltar]
  2. O portal jurídico Jota destaca que “(…) a instituição do RERCT não ocorreu de forma autônoma e por simples liberalidade ou interesse fiscal do poder executivo, mas sim em razão da assinatura de diversos tratados bilaterais para fins de intercâmbio de informações tributárias, celebrados entre o governo brasileiro e países estrategicamente influentes no mercado financeiro, tais como aqueles celebrados com Suíça, Ilhas Cayman, Arquipélago das Bermudas, Uruguai, Reino Unido e Estados Unidos da América. Além disso, a partir de 2018, o Brasil deve começar a trocar informações com uma série de países que já aderiram ou estão aderindo ao chamado Common Reporting Standard, modelo desenvolvido pela OCDE para a troca automática de informações de modo multilateral”. Disponível em: https://bit.ly/355YHqB. Acesso em: 26 abr. 2020. [voltar]
  3. Uma explicação sucinta da natureza da teoria da tributação ótima é dada por Murphy e Nagel (2005, p. 184), abrangendo a vertente de tributação sobre a renda, mas válida também ‒ acrescentamos nós ‒ para outras modalidades de tributação: “A questão central dessa linha de pensamento é a seguinte: qual o nível de tributação que mais promove o bem-estar (quer se dê mais importância ao bem-estar dos mais pobres, quer não) dadas as perdas de bem-estar causadas pelos efeitos comportamentais de um imposto sobre a renda?”. Apoiada em modelos matemáticos hipotético-dedutivos, a teoria da tributação ótima leva em conta potenciais dilemas, ou trade-offs no jargão do economista, como entre eficiência e equidade, sobretudo ao considerar as reações dos agentes econômicos aos tributos. Exemplos: um aumento da tributação imposto de renda reduz a oferta de trabalho? Uma elevação da alíquota do imposto sobre o capital reduz a poupança? [voltar]
  4. Sentenciam Murphy e Nagel (2005, p. 189): “É possível que, em suas consequências práticas de curto prazo, o interesse dos economistas pelos efeitos comportamentais da tributação tenha feito mais mal do que bem à causa da justiça social”. Novas gerações de pesquisadores oriundos da economia neoclássica, como o grupo coordenado por Piketty, mas também alguns dos próprios pesquisadores que haviam desenvolvido a teoria da tributação ótima, como Atkinson, Stiglitz e Mirrlees, revisitaram os modelos e puseram em xeque muitas das suas premissas, metodologias e conclusões. Os resultados palpáveis dessa revisão são as posições claramente pró-tributação de Atkinson, quando vivo, e Stiglitz, bem como as conclusões do relatório Mirrlees, que relativizam diversos resultados da teoria original. A versão revisitada da teoria da tributação ótima não parece ter sido devidamente assimilada pelos pesquisadores brasileiros, à exceção de Gobetti e Orair, em seus inúmeros trabalhos recentes, e de alguns outros autores, entre os quais os que colaboram no volume organizado por Afonso et al. (2017). [voltar]
  5. Como a teoria da tributação ótima, também a teoria da globalização não viu referendada na prática suas predições de corrida para o fundo das cargas tributárias globais ‒ os países-membros da OCDE continuaram aumentando sua arrecadação mesmo depois da Grande Recessão, et pour cause. Contudo, não foram os impostos progressivos que se expandiram; em particular, as alíquotas dos impostos corporativos declinaram. Assim mesmo, os impostos progressivos continuam a ser mais importantes do que os regressivos no financiamento do estado social (Kerstenetzky; Pereira, s/d). [voltar]
  6. De fato, ainda em 1988, poucos meses após promulgada a Constituição de 1988, o governo Sarney conseguiu aprovar regulamentação reduzindo a alíquota máxima do imposto de renda em 20 pontos percentuais ‒ de 45 para 25%. [voltar]
Celia Kerstenetzky

Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro (CEDE/UFRJ). Titular da Cátedra “Josué de Castro” do Colégio Brasileiro de Altos Estudos, UFRJ. Pesquisadora visitante no Department of Political and Social Sciences, European University Institute.

Fabio Waltenberg

Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE/UFF). Pesquisador visitante no Colégio Brasileiro de Altos Estudos, UFRJ.

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