Resenhas

Expandir o que podemos, a alegria

Cezar Migliorin, 17/05/2021

MIZOGUCHI, Danichi Hausen; PASSOS, Eduardo. Transversais da subjetividade: arte, clínica e política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021. 132 p. (Coleção Outros Passos)

Como pensar os possíveis do presente? O que em nossa história é possível convocar e experimentar para forjar outras possibilidades de vida? Como fazer o pensamento no presente embarcar na convocação ético-política que se inquieta com os destinos mortíferos que atravessam nossa história?

O trabalho de Eduardo Passos e Danichi Mizoguchi é marcado pela ideia de uma clínica transversal, uma clínica de afetos e composições. “Com o que compomos?”, pergunta-se com frequência Passos em suas pesquisas. Mizoguchi, que há quase dez anos defendeu tese sobre amizades contemporâneas, tem também se debatido com a questão das composições. Que encontros podemos fazer como sujeitos e grupos, afetos e estéticas, que tornam esse mundo mais afeito às formas de vida outras, ainda por se inventar. Não por acaso o livro parte já de encontros, entre os autores e com os alunos. Encontros na UFF, tratados como espaço de criação coletiva.

Diante dos desastres recentes no país – que não deixam de repetir sintomaticamente as marcas de nossa história de violências – os autores fazem uma aposta no Brasil e dedicam sua atenção a momentos-chave em que nossos modos de nos entendermos nesse território produziram desgarramentos inventivos que singularizam a experiência brasileira e apontam para possibilidades de vida de sujeitos e mundos. Revirando a tristeza contemporânea, os autores encontram no país as forças para alegrias criadoras. Como se na história e nas estéticas que pensaram e perturbaram o Brasil como identidade estável pudéssemos encontrar afetos que nos tiram da repetição mortífera.

Na busca de uma linha que atravessa a antropofagia, o tropicalismo e o axé music, é possível pensar uma clínica e uma ética dos modos de criar e esgaçar territórios existênciais, sem nenhum ideal de pureza. Assim, o livro pode ser lido, em uma primeira e forte chave, como um ativador de uma experiência ética inspirada em nossa própria história.

Enfrentar o Brasil com o próprio Brasil, dizem os autores. Eis uma aposta clínica que atravessa o livro. Como se em cada corpo e cada composição, fosse possível perceber um momento em que algo se criou, em que um sentido se produziu fora das significações dominantes. Nesses desvios, uma prática ética é acentuada, aquela também dependente das composições e que chamam o que não se é para ativar o que somos. Nesse sentido, é o próprio livro que se apresenta como dispositivo de composição. Para isso, situa-se ali onde algo está deixando de ser e ainda não é outra coisa, ali onde arte, clínica, política e processos subjetivos funcionam em um campo em que um está afetando o outro, ou poderiam afetar.

Ativar esse campo de afetações é uma tarefa que os autores se colocam. O isolamento de cada um desses campos produz uma estagnação sensível que nos coloca a mercê dos poderes instituídos. Ao devorar o que vem de fora é também um fora infinito que se apresenta como força de composição. Uma composição que inviabiliza os limites impostos pela moral e pelas palavras de ordem das forças que antes de dizer o que fazer pretendem delimitar o que é experimentável ou pensável. Na ética da composição, trata-se de uma produção de vida sem modelo. Assim o livro nos mobiliza a perguntar: o que a monstruosidade tem a ver com nossas formas de levar ao limite o que somos? O que há para devorarmos hoje? Ou, como atuar quando somos nós os devorados?

“É preciso um mínimo de eu”. A frase pode parecer enigmática, mas aponta para prudência que também atravessa as páginas desse livro. A exigência de alguns territórios, de paciências que podem dar forma às urgências e aos desejos que nos atravessam. Se é preciso um “mínimo de eu”, os autores estão também a nos dizer que uma boa parte de “eu” não é necessária. Transversais da subjetividade nos apresenta a fronteira como fio instável necessário. Se, como apontam os autores, são os modos de vida que interessam ao capitalismo contemporâneo, não é justamente nesses desvios do eu, nesse ponto em que já deixamos um país e uma paisagem e ainda não chegamos em outro, que se encontram as possibilidades de processos subjetivos em que aquele fora garante uma linha de desadequação, que é também uma linha de vida? Que forças podem ser convocadas em uma transversal dos modos de vida que colocam juntas, de maneira não harmônica, paisagens e identidades que parecem apartadas se olhadas dentro de um binarismo estético e político?

Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari (2010) dizem que o que define as máquinas desejantes é o poder de conexão ao infinito – em todos os sentidos e em todas as direções. “Processo ininterrupto de autoficção”, dirão em outro momento sobre o país. Desejo, sujeito e país se conectam pela necessária lógica de montagem com o que não nos pertence. A clínica e a política se aproximam aqui pelos modos que se abrem a objetos indomináveis. Agir aqui não é colocar-se como portador de caminhos a serem percorridos, mas como possibilidade de mobilizar uma sensibilidade em que o visível e o dizível não estejam ordenados por uma percepção que antecede os sujeitos. Arte e clínica operando nos possíveis da sensibilidade. Regimes de sensibilidade que mantêm sujeitos e grupos na fronteira, na eminência de um encontro com o que não nos pertence, uma política que recusa o narcisismo paranoico em que o “eu” substitui o Deus morto e que, para se manter em seu lugar, precisa eliminar tudo que ameaça sua centralidade, uma “alterofobia”.

Mais do que um livro urgente sobre o presente, trata-se também de se aproximar do país como uma paisagem de intensidades apropriáveis e alegrias necessárias para os enfrentamentos do presente e de nossa história – pessoal e coletiva.

Transversais da subjetividade é livro para escutar, ver, percorrer nas cores de Tarsila, nos processos de Lygia, nos sons de Gil, Olodum, Gerônimo, Luiz Caldas, Daniela Mercury, Caetano.

Nessas imagens e sons, em um plano de Glauber, encontramos as linhas para seguir na inquietação de um país que parece por vezes sem saída. Com as artes, sem um modelo formal, se esboça uma ética da criação sem isolamento, uma ética ativa, mobilizadora de encontros inauditos e transformadores.

Um livro para sentir, permitindo-nos encontrar e experimentar as bases para um salto.

Livro de ativação de experiência ética da alegria.

Cezar Migliorin

Professor de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) e psicanalista.

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