Se a linguagem da natureza é muda, a arte busca tornar esta mudez eloquente. (Theodor Adorno)1
Seria o desafio da sustentabilidade demonstrar que o mundo é real ou imaginário? Através da ciência, nós contamos, medimos, fazemos previsões, projetamos cenários, mas ainda assim não tomamos ação. O Painel do Clima das Nações Unidas há 35 anos nos alerta acerca das mudanças climáticas e anualmente o mundo quebra recordes de emissão. A ciência não se cansa de demonstrar a poluição da Baía de Guanabara e o quadro não se reverte. Tenho argumentado que esta inação está relacionada a não sentir ou não pressentir. Observamos o mundo sem nos envolver com ele, assim como o/a cientista habitualmente o faz com o fenômeno que estuda.
Isso talvez tenha a ver com o que o escritor de ficção científica chinês, Cixin Liu, descreve acerca da sua percepção sobre as narrativas científicas. Ele vê mais grandiosidade, emoção e mistério nas estórias que a ciência conta que aquelas narradas pela literatura, mas admite que a maioria destas incríveis estórias científicas “estão trancafiadas em equações frias que a maioria de nós não consegue ler.”2
Já o filósofo da religião romeno, Mircea Eliade, dizia que a arte, ao lado da mágica e do amor, dá vazão à necessidade humana de transcendência.3 Ela nos impele para além de nós mesmos, nos faz transgredir, nos fundindo consigo — a obra — com o mundo, e com tudo que nos cerca; nos faz ouvir, ler e sentir a natureza do mundo, bem como a nossa própria, como sugeria Adorno. A arte, portanto, talvez seja mais capaz de ativar nossas capacidades afetivas, as emoções, que a ciência, mais associada a capacidades não afetivas, lógicas e racionais.
Entretanto, não se trata de ter de escolher ou de valorizar mais uma ou outra forma de interpretação da realidade. A questão não é arte ou ciência, mas sim arte e ciência. Ao percebermos a clara complementaridade entre as duas, a possibilidade de transformação do mundo se alavanca. Decerto que há um mundo físico, factual, descrito por números e indicadores. Contudo, o mundo existe também na mente e no espírito humano, que emerge tantas vezes na forma de expressões e práticas culturais, como a artística. As artes são capazes de engajar corpo, mente e alma, imaginação e cognição, indivíduo e comunidade, contemplação e ação.
Além disso, se a atual crise planetária é sobretudo uma crise cultural (a hegemonia da cultura do consumo e do capital), há um papel significativo a ser desempenhado pelas artes na transição para a sustentabilidade, uma vez que muito sobre as culturas é expresso através das artes. Isso torna tanto mais inoportuna a ausência de arte e cultura nos objetivos e indicadores dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.4
Se a ciência nos informa, a arte nos faz sentir e desejar e, assim, juntas, a aspiração por mudanças para um mundo melhor cresce em vigor. As artes podem inspirar o desejo de sustentabilidade tanto em forma como em conteúdo, seja como um ato de contestação do estado das coisas, ou puramente evocando a beleza do imaginário sobre sustentabilidade como uma utopia de paz, amor e cuidado.
E utopia é uma palavra-chave para a Baía de Guanabara. Ela foi uma das inspirações para o navegante Américo Vespúcio escrever a carta “Mundus Novus” em 1503, aos seus mecenas portugueses, descrevendo o mundo Tupinambá de amor à natureza, ao próximo, a si mesmo. A carta, por sua vez, inspirou o livro “Utopia”, de Thomas More, em 1516, que cunha o termo. Em outras palavras, “utopia” nasce com a Baía de Guanabara.5
Não creio que por acaso, já que nela começa o mundo, criado pela avó-do-mundo. Segundo a mitologia dos povos do alto Rio Negro, como o povo Desana, a Baía é um grande lago de leite.6 A ciência, a arte, e também as espiritualidades, podem juntas e de mãos dadas, levar a Baía do atual quadro distópico, para ser o símbolo da utopia regenerada em um mundo renascido.
Para isso, nos ensina o professor Luís Guilherme Vergara7, essa colaboração e diálogo ativo entre diferentes formas de interpretação de realidade está na essência de um pragmatismo utópico, que tanto nasce como dá luz à esperança. Não a passiva, mas a ativa, do verbo esperançar de Paulo Freire8 e Ernst Bloch.9
Notas
- Adorno TW (1970/2002). Aesthetic Theory, Continuum, London, New York, p.78 (minha tradução do inglês). [voltar]
- Liu C (2006/2014). The Three Body Problem. Head of Zeus Ltd, London, p.428 (minha tradução do inglês). [voltar]
- Eliade M (1981). Tales of the Sacred and the Supernatural. The Westminster Press, Philadelphia. [voltar]
- Killingsworth J (2021). Unifying Sustainable Development Goals: How cultural and creative engagement are the missing links to advancement. Eur J Sustain Dev 10(3):291-302 https://doi.org/10.14207/ejsd.2021.v10n3p291 [voltar]
- Scarano FR (2018). Quando “todo dia era dia de índio”. In Medeiros R, Besserman S (eds) Rio de Janeiro Capital Natural do Brasil, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, pp 20-33. [voltar]
- Pãrõkumu U, Kẽhíri T (2019). Antes o Mundo não Existia. Dantes Editora, Rio de Janeiro. [voltar]
- Vergara LG (2023). Pragmatismo Utópico. Editora Circuito, Rio de Janeiro, Editora PPGCA, Niterói. [voltar]
- Freire P (1992). Pedagogia da Esperança:Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, Rio de Janeiro. [voltar]
- Bloch E (1954/1955/1959). The Principle of Hope. Volumes 1,2,3, MIT Press, Cambridge. [voltar]
- Fabio Scarano
Titular da Cátedra Unesco de Alfabetização em Futuros, uma parceria do Museu do Amanhã (Instituto de Desenvolvimento e Gestão/IDG) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é Professor Titular de Ecologia desde 1993. Teve funções executivas e de liderança na CAPES (MEC), Jardim Botânico do Rio de Janeiro (MMA), Conservation International e Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS). Possui dois Prêmios Jabuti de Literatura na área de Ciências Naturais.