Novas tecnologias

Alfabetismo visual e metamorfose da educação — o trabalho com imagem, texto e novas tecnologias do grupo ITEC

Angela Santi, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

“Todos conhecem as características deste modelo escolar. A sua força é tal que já nem sequer conseguimos imaginar outras formas de educar. A escola substituiu o trabalho, a rua e mesmo o lar como lugar de socialização e de formação (…). Mas, no preciso momento em que celebra a sua vitória, a escola revela-se incapaz de responder aos desafios da contemporaneidade”.1

O projeto ITEC (Imagem, Texto e Educação Contemporânea), da Faculdade de Educação da UFRJ, busca abordar, reconhecer e desenvolver propostas mediante os desafios da educação em nossos dias. Criado em 2010, o grupo pretende analisar, refletir e atuar pedagogicamente sobre os sentidos e as possibilidades de uso da imagem e do texto na sala de aula frente às novas tecnologias digitais, de forma a pensar maneiras de trabalhar temas complexos, processos didáticos e metodologias em educação que potencializem as transformações em curso nas escolas. 

Em uma sociedade marcada pela velocidade das trocas de informação e circulação de imagens, a escola tem sido chamada a rever suas práticas. A cultura contemporânea engendra novas dinâmicas sociais e novos processos de subjetivação mobilizados pelas novas tecnologias e por um predomínio da imagem. “O analfabeto do futuro não será quem  não  sabe  escrever,  mas,  sim,  quem  não sabe fotografar”2, afirma Benjamin, em “Pequena História da Fotografia”, tomando emprestada a máxima de Moholy-Nagy,  artista  e  professor  da  Bauhaus. Tal afirmação expressa uma profunda mudança cultural, em que a imagem torna-se o elemento capaz de reter, mais especialmente, a força “codificadora” do mundo. O grupo ITEC entende ser fundamental pensar na educação de forma ampliada, incorporando a imagem em suas diferentes manifestações, o que significaria também pensar em um certo alfabetismo imagético e midiático.

O tema da imagem tem sido um tabu no universo da educação, que se constituiu fundamentalmente sobre o cânone do texto, entendendo a imagem como um elemento menor. A questão da imagem se torna paradigmática e estratégica na medida em que vivemos em uma época em que as subjetividades contemporâneas se constroem pelo seu hibridismo com as redes, com a cultura de massa ligada às tecnologias, que são estruturalmente imagéticas. A escola trabalha principalmente com o texto e seu alfabetismo, entrando em conflito com as dinâmicas da sociedade atual e com o pulsante e sedutor mundo das imagens em (hiper) movimento. 

Figura 1 Exercício de enquadramento feito com estudantes e professores em uma escola estadual de formação de professores do Rio de Janeiro

Se a imagem se tornou onipresente, se ela constitui realidade e identidade, cabe, justamente por isso, um trabalho de educação para a imagem (privilegiando aqui a fotografia), de compreensão de seus elementos constitutivos, de sua “gramática”, bem como de suas possibilidades de apresentação de contextos simbólicos, valorativos, socioculturais. Considerando isto, várias operações pedagógicas são possíveis e o ITEC tem com elas trabalhado. Ler as imagens cotidianas, de modo não banal, analisar fotografias, imagens e sons em movimento, identificando seus elementos, construir fotografias a partir de um processo de consciência de sua linguagem e características são algumas possibilidades. Cabe uma educação do olhar para perceber os indícios e contradições nos pequenos elementos do cotidiano. Dessa forma, é justamente pela presença absoluta das imagens que uma educação para as mesmas se mostra urgente. 

Antônio Nóvoa afirma que a escola se encontra em um processo de “metamorfose”, em que as dinâmicas expostas acima precisam ser tratadas. No tempo de uma geração, nos próximos 20 ou 30 anos, segundo ele, “assistiremos a uma complexa mudança da escola, isto é, a uma alteração da sua forma”. No entanto, como diz o autor, a escola tem mostrado “uma grande incapacidade para pensar o futuro”, um futuro que já faz parte da vida das nossas crianças.

Procurando pensar e contribuir para a construção de um outro porvir para a escola, o ITEC parte de estudos sobre imagem e novas tecnologias para construir exercícios, oficinas e ações estéticas que possam ser usados por professores/as em sala de aula. Tais propostas, partindo muitas vezes do deslocamento do âmbito digital para o da materialidade do papel, por exemplo, abrem espaço para a artesania do fazer, envolvendo o corpo de forma mais efetiva, assim como a imaginação, o lúdico e a arte, permitindo uma presença que não se restringe apenas à aprendizagem e à cognição.

Figura 2 Guia para uso das propostas do ITEC na sala de aula: ação realizada nas redes sociais do projeto

Considerando essas questões, o Projeto ITEC3 elaborou uma série de atividades que, a partir do mapeamento dos temas e desafios da contemporaneidade, procuram colaborar para que a escola participe de forma ativa na construção de seu futuro (e presente). Oficinas como as de Legendagem; Enquadramento; 5 fotos, 1 história; Infodemia; entre outras, procuram desmontar a relação automatizada que temos com a enorme e excessiva quantidade de estímulos que recebemos através das redes sociais, dos veículos de informação, da internet em geral, fazendo com que professores/as, estudantes, possam perceber e atuar contra os “perigos de uma confiança muito ingênua no real fotográfico”, dado que a fotografia pode ser usada, justamente, “como um veículo potencial de desinformação”.4 

As oficinas procuram produzir um trabalho pedagógico, através de propostas que retiram o professor do centro e a aula de uma dimensão meramente expositiva. Na atividade de Legendagem, por exemplo, buscamos desconstruir os vínculos estabelecidos pelos meios tradicionais de comunicação na relação entre imagem e texto, em que a primeira aparece submetida às indicações de sentido definidas pelo segundo, antecipando e limitando a forma como devemos entendê-la. Invertendo essa dinâmica, oferecemos a imagem para que os/as participantes possam considerar os elementos que a compõem (cor, composição, luz, ângulo, etc), produzindo diferentes legendas posteriormente.

No Enquadramento, nos debruçarmos sobre o olhar, o que olhamos, como olhamos, o que deixamos de fora; tornando-nos conscientes também do que (e como) escolhemos fotografar, percebendo também o que decidimos (e por que) não registrar. Em 5 fotos, 1 história, fotogramas de diferentes filmes são colocados à disposição para que estudantes ou professoras/es construam uma história a partir da seleção de 5 deles, mostrando o caráter eletivo e construído dos filmes, vídeos, sejam eles de ficção, publicidade ou documentário. Já em Infodemia – o Jogo das Notícias, trabalhamos a desordem informacional e o excesso de informações recebidas, através de jogos online ou físicos, construídos pelo projeto, buscando perceber quais armadilhas estão contidas nas notícias que recebemos diariamente e os meios de identificá-las e combatê-las.

O trabalho do ITEC é desenvolvido em várias frentes (além das oficinas, cursos, ações nas ruas, redes sociais e em escolas, exposições, performances, programa de rádio etc) e se apoia no conjunto de conceitos e procedimentos metodológicos associados à pesquisa-intervenção e à etnografia, através do acompanhamento do impacto das ações, registrando impressões, comentários, reações, além de análise dos materiais produzidos pelos participantes a partir do que é proposto. 

Os resultados pretendidos pelas ações do projeto associam-se a realizar um mapeamento sobre a percepção dos/as professores/as sobre suas práticas pedagógicas, sobre os impasses vividos em sala de aula e suas estratégias para superá-los, identificando as limitações das formas tradicionais de ensino e mostrando as ricas potencialidades da incorporação pedagógica de linguagens e mídias contemporâneas, seja qual for a disciplina escolar.

Além disso, pretende-se que as oficinas realizadas tragam um impacto positivo na condução das aulas, na relação dos estudantes com a escola, com o tempo em que estão nela e com os temas trabalhados, contribuindo para viabilizar outras dinâmicas que incluam uma maior consciência e autonomia dos/as estudantes frente às novas tecnologias de imagem e texto, permitindo uma maior porosidade da escola em relação às demandas atuais e interesses dos jovens e da sociedade. 

Notas

  1. NÓVOA, António. Os professores e sua formação num tempo de metamorfose da escola. Educação e Realidade, Porto Alegre, vol. 44, n. 3, 2019, p. 2. [voltar]
  2. BENJAMIN, W.  “Pequena História da Fotografia”. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986, V. I, p. 115  [voltar]
  3. Todas as ações do ITEC encontram-se no site do projeto: https://www.itecimagemetexto.org/ [voltar]
  4. PRZYBLYSKI,  “Imagens  (co)moventes:  fotografia,  narrativa  e  a  Comuna  de  Paris  de 1871”.In: CHARNEY,  L., SCHWARTZ,  V. O  Cinema  como  Invenção  da  Vida Moderna. 2.ed., São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 298. [voltar]
Angela Santi

Angela Santi é professora associada de Filosofia da Educação, da Faculdade de Educação, da UFRJ. Doutora em Filosofia Contemporânea, Mestre em Estética, coordenadora do Grupo de pesquisa e extensão ITEC. Curadora de diversas exposições de artes visuais. Contato: angelasanti67@gmail.com

 

Compartilhe

Enviar para: