Gênero e Sexualidade

Que corpos estão autorizados a fazer matemática?

Agnaldo da Conceição Esquincalha, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

A pergunta do título pode parecer estranha, mas… quantas professoras de matemática você teve ao longo da vida? Quantas eram negras, trans ou indígenas? E autodeclaradamente pessoas LGBT+ ou pessoas com deficiência? Essas duas últimas perguntas valem para mulheres, homens e pessoas não-binárias também.

A história “oficial” da matemática, contada na maior parte dos livros, nos mostra o campo dominado por maioria de homens cis brancos de classe média e heterossexuais. Quando corpos fogem ou desviam desse padrão são rapidamente invisibilizados e repelidos. 

Na última década, ao menos três filmes muito populares, inspirados em histórias reais, discutiram esses processos de desrespeito humano e falta de reconhecimento profissional:

1) “O jogo da imitação”, lançado em 2014, conta a história de Alan Turing, matemático britânico que liderou a equipe que quebrou o código da máquina Enigma, utilizada para comunicação entre nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo com toda a sua contribuição para o fim da guerra, ele foi submetido à castração química por ser gay, o que implicou no seu falecimento dois anos depois, em 1954. De modo absurdo, em 2013, a então Rainha Elizabeth II outorgou o perdão a título póstumo, por Turing ser homossexual, o que era proibido à época. A Coroa Inglesa não pediu perdão pela castração química imposta.

2) “O homem que viu o infinito”, lançando em 2015, sobre a vida do matemático indiano Srinivasa Ramanujan, que, na década de 1910, foi rejeitado por matemáticos europeus pelo simples fato de não compreenderem como alguém sem instrução formal em matemática, e de origem oriental, poderia ser capaz de fazer o que ele fazia, ou seja, por uma ideia colonial de que ele era de uma raça/etnia inferior.

3) “Estrelas além do tempo”, lançado em 2016, que narra a história de Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson, mulheres afro-americanas, com importante papel nos cálculos/computações no  auge da corrida espacial, durante a Guerra Fria.

Esses filmes também fizeram tanto sucesso porque discutem, de modo direto ou indireto, a importância da representatividade nos espaços em que se faz matemática, que são espaços de poder e devem ser encarados e questionados como tal. É inegável o lugar social ocupado pelas pessoas que sabem matemática. Essas pessoas são tidas, de modo recorrente, já nos primeiros anos escolares, como inteligentes e vistas, muitas vezes, como superiores às outras que têm menos habilidades na área.

Nesse sentido, existe sim quem autoriza ou não outros corpos, outras pessoas a ocuparem os espaços em que se produz, se ensina e se aprende matemática. É preciso estranhar esses espaços, questionar a hegemonia dos corpos que nos parecem naturais ali e lutar pela promoção das diferenças e da diversidade de pessoas como corpos que fazem matemática.

Para questionar esses espaços de poder, a pseudoneutralidade da matemática e uma ideia de que ela é apolítica, como se fosse possível produzi-la de modo desvinculado das intenções de quem a produz, foi criado, em 2020, o Grupo MatematiQueer de Pesquisa e Extensão, para tensionar a Educação Matemática a partir das lentes dos Estudos de Gênero e campos associados.

As ações do MatematiQueer se articulam por meio da tríade ensino-pesquisa-extensão de modo que tudo o que fazemos têm a intenção de retroalimentar cada um dos campos, de modo integrado, e que é disseminado por meio de divulgação científica. Em relação à(o ensino na) pós-graduação, oferecemos disciplinas tais como “Aspectos Sociopolíticos em Educação Matemática”, “Educação Matemática para Justiça Social” e “Estudos de Gênero em Educação Matemática”, e desenvolvemos pesquisas nas linhas de 1) Educação Matemática Crítica, Direitos Humanos e Justiça Social, 2) Relações de Gênero e Feminismos em Educação Matemática e 3) Minorias Sexuais, Alteridade e Educação Matemática.

O MatematiQueer funciona como um grupo colaborativo, contando com a participação de cerca de 200 pessoas das cinco regiões do Brasil, com diferentes formações e níveis de formação, que se unem pelo objetivo de fazer resistência por meio da (Educação) Matemática, entendendo o campo da matemática como um espaço que pode ser ocupado por diferentes corpos, em particular, fomentando o interesse de meninas e mulheres e pessoas LGBT+, interseccionando seus diferentes marcadores sociais, como raça, classe, gênero e sexualidade, dentre outros, e formando docentes para o trato das diferenças nas aulas de matemática, de maneira antidiscriminatória.

O projeto de extensão “MatematiQueer: Gêneros, Sexualidades e Educação Matemática” tem como objetivos:

1) Compreender a importância dos Estudos de Gênero em Educação Matemática, sua constituição como campo científico e suas relações com os feminismos, com os estudos queer e com a discussão sobre interseccionalidade;

2) Fomentar práticas pedagógicas antimachistas, antissexistas e antiLGBT+fóbicas nas aulas de matemática;

3) Oferecer reforço escolar na área de matemática para mulheres e pessoas LGBT+ em situação de vulnerabilidade social;

4) Realizar rodas de conversa com estudantes e docentes sobre situações de injustiça social e discriminação, focando na educação matemática para os direitos humanos;

5) Oferecer oficinas para docentes que ensinam matemática sobre a necessidade de pensar currículo, identidade e diferença no contexto de uma educação matemática para todas as pessoas, em particular, mulheres e LGBT+;

6) Realizar minicursos de tópicos de matemática, demandados por participantes do projeto, úteis para leitura crítica de suas diferentes realidades;

7) Promover ações de intervenção social por meio da escrita do mundo com matemáticas;

8) Realizar divulgação científica, palestras e rodas de conversa por meio do Instagram, do canal no YouTube do MatematiQueer e do MatematiQueer Podcast, presente nos principais agregadores de podcast, sobre as temáticas relacionadas ao projeto;

9) Buscar e consolidar parcerias com instituições envolvidas com as causas relacionadas a mulheres e pessoas LGBT+ de modo geral e na área das ciências ditas exatas.

Para atender a todos os objetivos, as pessoas engajadas nesse projeto se organizam nos subgrupos: 1) Lives e podcast, destinado a produção das lives e episódios mensais de podcast; 2) Formações, destinado a planejar e realizar ações formativas com estudantes de licenciatura e docentes que ensinam matemática para lidar com diferenças em relação a marcadores sociais ligados a gênero e sexualidade em suas práticas profissionais, e com meninas e mulheres e pessoas LGBT+ para a leitura e a escrita do mundo com matemática; 3) Instagram, destinado a discussão de pautas, pesquisa de conteúdo, produção de artes e acessibilidade para as postagens nessa rede social; 4) Reforço Escolar, destinado a produzir ou fazer curadoria de material didático de apoio aos estudos de matemática para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos, para o Exame Nacional do Ensino Médio e vestibulares; 5) Biblioteca, destinado a construir um repositório de produções que discutam os Estudos de Gênero em Educação Matemática; 6) Apoio técnico e secretaria, destinado a dar apoio técnico operacional e a organização dos dados das pessoas participantes do grupo e de suas ações; 7) Desenho de uma disciplina eletiva para o Ensino Médio, que, como o nome já diz, destina-se ao desenho didático e planejamento de uma disciplina que possa ser oferecida como eletiva para turmas de Ensino Médio, no contexto do Novo Ensino Médio, que discuta o papel político e as possibilidade de uso de matemática contra as discriminações e a valorização das diferenças. Cada um desses grupos é liderado por duas pessoas. Existe ainda um oitavo grupo, de comunicação entre essas pessoas e a coordenação geral do projeto.

 Ao longo dos quase três anos de existência do MatematiQueer, estimamos com nossas ações já tenham alcançado pouco mais de 23.000 pessoas, considerando as pessoas inscritas em atividades promovidas pelo grupo e os dados de acesso ao nosso perfil no Instagram (@matematiqueer), ao nosso canal no YouTube (@matematiqueer) e ao nosso podcast (MatematiQueer Podcast), disponível nos agregadores Spotify, Deezer, Google Podcasts, Amazon Music, Apple Podcasts e Castbox. 

Cabe destacar que o MatematiQueer é um grupo colaborativo não só internamente, mas também por meio de ações em colaboração com outros grupos e instituições, como observado na oferta do Curso de Extensão “Estudos de Gênero: o que matemática tem a ver com isso?”, oferecido pelo MatematiQueer em parceria com grupos dos Institutos Federais do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e com as Universidades Federais do Maranhão e do Pampa, e fomentado, por meio de edital público, pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática.

Esse curso atraiu pouco mais de 200 pessoas de todo o país, e versou sobre os temas: Gêneros e Sexualidades na Escola; Os Estudos de Gênero e a Educação Matemática; Gênero, Sexualidade e outros marcadores sociais da diferença nas aulas de matemática – a importância das interseccionalidades; Feminismos e Educação Matemática; A Travestilidade e a Transexualidade na Escola; Pedagogia Queer e Educação Matemática; Práticas Pedagógicas Antimachistas, Antissexistas e AntiLGBTI+fóbicas nas Aulas de Matemática.

A culminância do curso foi a entrega de planos de aula em que esses temas poderiam ser debatidos. O material produzido para estudo no curso, textos introdutórios com até oito páginas, com muitos links externos, e os planos de aula, irão compor um e-book financiado pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática que será disponibilizado gratuitamente em www.matematiqueer.org.   

O MatematiQueer também tem projetos na Educação Básica, com docentes de matemática e estudantes de sete escolas públicas distribuídas pelo estado do Rio de Janeiro, com bolsas fomentadas pela Faperj e pelo CNPq, por meio dos projetos “P + M³ – Por Mais Meninas e Mulheres na Matemática: Despertando o interesse de meninas e mulheres para as áreas STEM por meio de uma Educação Matemática Maker” e “Educação Matemática para o combate às discriminações e valorização das diferenças”, respectivamente. 

Com a grande visibilidade que o MatematiQueer tem tido, tanto em ambientes acadêmicos quanto em organizações sociais que se dedicam às causas de meninas e mulheres e de pessoas LGBT+, o grupo tem recebido uma série de ataques que aqui classificaremos como de dois tipos.

O primeiro se relaciona com movimentos conservadores, tipicamente ligados a algumas igrejas católicas ou evangélicas, que nos acusam de “ideologia de gênero”, doutrinação e coisas do tipo, defendendo que na aula de matemática não há espaço para discutir as humanidades que atravessam as nossas vidas, ao mesmo tempo em que agem contra a laicidade do Estado e defendem a implementação de uma ideologia conservadora e repressora. 

O segundo grupo se relaciona com profissionais da área de matemática, incluindo docentes da Educação Básica, que a enxergam de forma platônica e não como uma produção humana, com intencionalidade política, além de histórica, cultural e socialmente situada. Essas pessoas não foram formadas para refletir e fomentar o potencial político da matemática como instrumento para a leitura crítica e escrita do mundo. Nesse grupo estão também pessoas que entendem a matemática como a ciência capaz de dizer o que é verdade e o que é certo ou não, em termos científicos, como se, de fato, fosse a “rainha das ciências”. Embora, naturalmente, a nenhuma ciência caiba este título.

Algumas pessoas nesse grupo percebem o status social que recebem e não querem abrir mão dele, descredibilizando grupos como o MatematiQueer, que questionam esse status e defendem maior diversidade e representatividade no campo. Por trás disso há um discurso meritocrata, de autopromoção e que ignora as desigualdades sociais do Brasil, agindo contra a equidade e a justiça social.

O MatematiQueer segue sendo muito atacado nas redes sociais, por perfis fakes e, também, por perfis de pessoas reais que desqualificam nossos trabalhos sem ao menos conhecê-los e, por isso mesmo, não sendo capazes de usar argumentos plausíveis para justificar seus ataques. Revistas virtuais autodeclaradas conservadoras e antifeministas também têm feito matérias frequentes acusando o MatematiQueer, por exemplo, de usar a pedagogia freiriana como um pilar. Notadamente, não conhecem a obra freiriana e nem as ações do grupo, porque estamos recebendo essas críticas como elogios.

Além disso, alguns líderes políticos como deputados federais e outras pessoas com cargos na gestão 2019-2022 do Governo Federal também já se manifestaram publicamente contra o MatematiQueer, inclusive propagando fake news, como a de que criamos um doutorado em ensino de matemática exclusivo para pessoas LGBT+, e a de que conseguimos ganhar, nos conselhos superiores da UFRJ, ações afirmativas para pessoas LGBT+ em concursos docentes, bastando a autodeclaração para investidura no cargo, ignorando os rigorosos processos dos concursos para docentes das universidades públicas brasileiras, e ignorando o papel das ações afirmativas.

O MatematiQueer segue transformando os ataques em produção científica, segue se colocando como um espaço de resistência, segue queerizando – no sentido do estranhamento e do questionamento – os espaços em que alguém acha que tem poder de autorizar quem pode ou não fazer matemática. O projeto segue fazendo uma educação matemática crítica em prol de equidade, justiça social e oportunidades no campo da matemática para todas as pessoas.

Agnaldo da Conceição Esquincalha

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Líder do MatematiQueer. Doutor em Educação Matemática (PUC-SP), mestre em Modelagem Computacional (UERJ), licenciado em Matemática (UFRRJ). Defende e trabalha para que todas as pessoas encontrem nas aulas de Matemática espaços para reflexão crítica e transformação do mundo. Contato: agnaldo@im.ufrj.br

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