Quando pensamos em cientistas, qual é a imagem que logo nos vem à cabeça? Geralmente, a resposta que recebemos é: um homem, branco, grisalho, cabelo alvoraçado, óculos e jaleco. Desde 2019, estamos percorrendo escolas, feiras de ciências e eventos científicos, repetindo sempre as mesmas perguntas: quem pode ser cientista? Pode uma mulher negra ser cientista? Quantas mulheres negras cientistas você conhece?
No mundo da ciência, a desproporcionalidade de gênero e raça é gritante. Venturini (2017)1, ao analisar os dados do Censo da Educação Superior de 2016, descobriu que as mulheres com doutorado são: 80,02% brancas; 14,60% pardas; 2,75% pretas; 2,35% amarelas; e 0,28% indígenas. Nos Programas de Pós-Graduação (PPG), onde é produzida a maior parte da pesquisa científica no Brasil, as doutoras negras (pretas e pardas) somavam apenas 3% de todos os docentes em atividade no país (FERREIRA, 2018).
Há, ainda, na trajetória acadêmica de uma cientista, outro nível a alcançar: as bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq). Essas bolsas são um reconhecimento do CNPq a cientistas de alto nível, que são destaque em suas áreas. Bem, referente a este ponto, nem precisaria mencionar dados, certo? Mas vamos lá! O grupo ‘Parent in Science’ divulgou recentemente uma análise da distribuição das 15 mil bolsas de produtividade vigentes em 2023. Em relação ao total de bolsas, as mulheres negras são 5,1% (4,8% pardas e 0,8% pretas) do total. As mulheres indígenas representam apenas 0,1%. As bolsas ainda são divididas em níveis e, no nível mais alto, o PQ-1A, não há nenhuma mulher preta ou indígena. As mulheres pardas são 1,3% das pessoas bolsistas neste nível.
A Revista Gênero e Número2, em 2018, apontou a existência, no estado do Rio de Janeiro, de 18 doutoras autodeclaradas negras atuando como docentes em cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado). Uma pesquisa em andamento, realizada pelo Núcleo de estudos de gênero e relações étnico-raciais na educação audiovisual em ciências e saúde (NEGRECS), aponta um cenário um pouco melhor em 2023. O levantamento indica, por exemplo, que as cientistas negras em atuação nos programas de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2021, chegavam a 39. A UFRJ tem 4.139 docentes em exercício, que atuam da educação básica à pós-graduação.
É perceptível, portanto, que há sub-representação de mulheres negras na ciência. Estamos, ainda, muito longe de vislumbrar um ambiente onde equidade racial e de gênero sejam possibilidades no horizonte. Mas, apesar do pequeno número, as mulheres negras, pesquisadoras, são cientistas que merecem destaque, não apenas por vencer as barreiras do sexismo e do racismo, mas por suas atuações no ensino, na pesquisa e na extensão, em várias áreas do conhecimento.
O desconhecimento em relação à existência, trajetória e pesquisas realizadas por mulheres negras motivou a criação do projeto de extensão “As incríveis cientistas negras: educação, divulgação e popularização da ciência”, em 2020. Desde seu surgimento, o projeto atua em parceria com o Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), campus Maria da Graça, na figura do projeto de extensão “Mulheres negras fazendo ciência”, criado um ano antes.
Os dois projetos atuam em parceria, conectando escola e universidade, atuando em várias linhas de ação: 1) divulgação científica de pesquisas realizadas por docentes negras, atuantes no Estado do Rio de Janeiro; 2) formação de estudantes de ensino médio para a divulgação científica; 3) produção de material didático e paradidático de divulgação científica para a educação, principalmente básica; 4) eventos de divulgação científica, incluindo palestras, debates, cineclubes e oficinas de programação, robótica e audiovisual.
As estudantes participantes do projeto são formadas em temáticas étnico-raciais e científicas, principalmente divulgação científica e pesquisa; realizam divulgação da produção científica de pesquisadoras negras através das redes e de meios sociais, e também de palestras públicas, além de produzir materiais didáticos e paradidáticos diversos que buscam popularizar o perfil, a trajetória e a produção científica das pesquisadoras negras do estado do Rio de Janeiro.
Recentemente, o projeto publicou o livro “Luanda no mundo da ciência” (fotografia 1), lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em 2023; produziu um calendário (fotografia 2), destacando as pesquisas de 12 cientistas negras, e um jogo da memória, que homenageia outras 12 cientistas de destaque em suas áreas científicas (fotografia 3).
Todos esses materiais estão sendo utilizados por profissionais da educação em contextos de educação formal e não formal, conectando a pesquisa, o ensino e a extensão de forma indissociável, ao mesmo tempo em que trabalham o letramento racial e de gênero, e estimulam o interesse pela ciência.
Pode uma mulher negra ser cientista? As mulheres e meninas negras podem e devem ser o que elas quiserem, inclusive cientistas. O mundo melhor que queremos — e estamos construindo — é um mundo no qual pessoas negras e indígenas não terão suas existências interditadas e negadas no mundo científico.
Notas
- Venturini AC. Ações afirmativas para pós-graduação: desenho e desafios da política pública. In: Anais 41 Encontro Anual da ANPOCS [internet]. Universidade Federal de Alagoas; 2017 [acesso em 2020 jul 9]. Disponível em: https://evento.ufal.br/anaisreaabanne/ [voltar]
- Ferreira L. Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia. Gênero e Número [internet]. 20 de junho de 2018 [acesso em 2020 jul 4]; Disponível em: http://www.generonumero.media/menos-de-3-entre-docentes-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/ [voltar]
- Ana Lúcia Nunes de Sousa
Jornalista, mestre e doutora em Comunicação. Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com atuação no Laboratório de Vídeo Educativo, no Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ. Contato: analucia@nutes.ufrj.br