Especial Covid-19 | Educação

O ensino e o povo que faltam

Eduardo Coelho, 22/07/2020

Foto de Pixabay no Pexels

A crise na educação ocasionada pelo fechamento das escolas devido à pandemia é o ponto de partida para a reflexão acerca dos históricos e complexos problemas da educação pública brasileira e sobre como enfrentá-los de forma desburocratizada, horizontalizada e democrática

Segundo a Coalização Global de Educação da Unesco, o fechamento de unidades de ensino ocasionado pela Covid-19 chegou a afetar 91,4% de alunos de todo o mundo. Assim, manifestou-se uma crise sem precedentes em todos os segmentos da educação pública e privada (UNESCO, 2019). Essa crise se torna ainda mais evidente nos países que revelam índices alarmantes de desigualdade socioeconômica, como é o caso do Brasil, onde a pandemia agravou uma série de problemas históricos e facilmente notáveis, sobretudo no campo da educação pública.

Não é demais lembrar o movimento de ocupação de escolas que surgiu na altura em que as condições do ensino público se tornavam ainda mais precárias, como uma das consequências das políticas econômicas de austeridade iniciadas a partir do segundo mandato do governo da presidente Dilma Rousseff, em 2015 e 2016. Foi justamente nesse período que as ocupações foram realizadas por estudantes secundaristas, estendendo-se até o governo de Michel Temer. Estavam então em pauta, entre outras questões, a necessidade de investimentos na infraestrutura de unidades públicas de ensino e a participação do corpo estudantil na gestão tanto dos currículos quanto das práticas pedagógicas, como destacou Salomão Barros Ximenes no seu artigo “Contra quem os estudantes lutam? As ocupações secundaristas no epicentro das disputas sobre a escola pública” (2019, p. 53-74).

A pandemia da Covid-19 escancarou que o ensino e a aprendizagem nos apresentam imensa complexidade.

Através de um projeto de iniciação científica júnior em pesquisa e produção literária sediado no campus Engenho Novo do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, Isabella Dias e Luiz Guilherme Barbosa escreveram a plaquete Escola-corredor: por uma poética da ocupação (a duas vozes), em que eles destacaram, em relação aos corredores da escola, “uma energia pedagógica que a sala de aula burocratizou” (2019, s./p.). Em seguida, observaram: “O corredor da escola é uma fronteira entre currículos, entre os saberes considerados dignos de serem ensinados, e aqueles alijados do processo de formação tal como instituído pela sociedade e pelo Estado na escola” (2019, s./p.). De certa maneira, nesse território desburocratizado que é o corredor, alunos, professores e os demais profissionais ligados ao ensino conseguiam realizar uma interlocução horizontalizada, sem metas tecnocráticas, por meio da qual construíam uma pauta estruturada democraticamente. Os alunos recorriam ainda à dinâmica das assembleias. Os corredores das escolas também indicavam, naquele momento, que a sala de aula, na sua fome curricular e conteudística, se mostrava incapaz de transformar informações em conhecimento integrado à vida, sem mobilizar no dia a dia um sentido ético comunitário e princípios fundamentais a uma democracia real e autêntica.

A pandemia da Covid-19 escancarou que o ensino e a aprendizagem nos apresentam imensa complexidade. Deixou em evidência que não estamos suficientemente preparados para o enfrentamento de novos desafios, que por sinal nos recolocam desafios antigos, agora mais gritantes, como o desrespeito que o Estado brasileiro demonstra há décadas – em diversas escalas – ao não atender as condições básicas de trabalho que a Constituição cidadã nos apresenta, mas não nos garante. A situação política em que o Brasil se encontra, assim como a desestruturação dos valores ligados à vida que se torna evidente neste momento, como nos Estados Unidos da América, estão fortemente relacionados ao ensino que nos falta, inabilitado a participar com eficiência da construção de uma consciência de povo que não à toa nos falta da mesma maneira.

Em seu texto “Transição paradigmática”, publicado no livro Inovar é assumir um compromisso ético com a educação, José Pacheco destacou:

Meu amigo Rui Canário costuma dizer que, quando analisamos o mundo em que vivemos, quando assistimos à degradação do ambiente natural e das relações humanas, raramente nos apercebemos de que tais fenômenos são consequências de uma determinada escolarização da sociedade e de que é necessário e urgente conceber uma nova escola para um novo mundo. (PACHECO, 2019, p. 21)

Há uma questão urgente que os cursos de licenciatura precisam pôr em foco no retorno às aulas, e o mesmo deve ser realizado em todos os segmentos do ensino: Como construir uma nova escola para um novo mundo? Em nosso caso específico, como construir uma nova universidade para construirmos um país mais democrático, mais igualitário, menos violento e a favor da vida?

A situação política em que o Brasil se encontra, assim como a desestruturação dos valores ligados à vida que se torna evidente neste momento, como nos Estados Unidos da América, estão fortemente relacionados ao ensino que nos falta, inabilitado a participar com eficiência da construção de uma consciência de povo que não à toa nos falta da mesma maneira.

 Paul B. Preciado, na conferência “El pueblo que falta”, levantou algumas questões que participam dessa urgência de remodelação epistemológica: O que fazemos? A que nos dedicamos? O que buscamos? Elx então se referiu à necessidade de imaginar “novos marcos institucionais” e pôr em marcha “processos constituintes”, com a invenção de “contradisciplinas”. Esses “processos constituintes” devem estar ligados a três fatores: uma “pedagogia radical”, em que a experimentação se sobreponha às práticas consolidadas, as quais de fato não respondem satisfatoriamente ao mundo que desejamos; um “ativismo institucional”, a compreender uma ação em espaços limites e tensionadores das práticas; bem como uma “metodologia de investigação militante”, por meio da qual a sala de aula pode ser reinventada, considerando, ainda, que a educação não é uma atividade neutra, mas está a serviço de ideologias muitas vezes repressoras. Essas ideologias subtraem da sala de aula dois aspectos determinantes para a formação de um ensino que nos falta: a vida e o saber científico, como observou a educadora Vilma Guimarães num dos encontros remotos de articulação entre os projetos Feminismo nas Quebradas e Laboratório da Palavra, ambos ligados ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Faculdade de Letras/UFRJ.

Os “novos marcos institucionais” a que Paul B. Preciado se referiu devem partir de uma reflexão horizontalizada, em que o direito à fala esteja casado à necessidade de escuta e de mobilização dos desejos. Em outras palavras, não há “novos marcos institucionais” possíveis sem mobilização do prazer e não há prazer efetivo nas construções individuais, padronizadas, centradas sobretudo nos interesses de professores e gestores da educação. Também não parece cabível construir relações efetivas de ensino e aprendizagem que se pautem exclusivamente em teorias, como os estudantes universitários têm apontado desde pelo menos os anos 1960. As teorias precisam se encontrar com as práticas; as ações no campo do ensino devem buscar a restauração do caráter mais social que a educação deve compreender e celebrar.

Os “novos marcos institucionais” a que Paul B. Preciado se referiu devem partir de uma reflexão horizontalizada, em que o direito à fala esteja casado à necessidade de escuta e de mobilização dos desejos.

 Num momento em que nos encontramos diante de um governo que despreza profundamente as Humanidades, a atuação na Universidade fica limitada por conta de determinações dos órgãos superiores, como o Ministério da Educação, a Capes e o CNPq. Talvez a única reação possível, de efeitos concretos, esteja relacionada às experimentações epistemológicas, ativando com alegria, prazer e força a construção ética e solidária de metodologias de ensino e trabalho que se lancem contra a necropolítica do mundo contemporâneo. Construir formas de vida comunitárias, inclusivas, desejantes, através de unidades de ensino que, de forma acolhedora, se apresentem em busca de construções de sentidos e práticas opostas à “política como o trabalho da morte”, conforme palavras de Achille Mbembe em seu livro Necropolítica (2019, p. 16). Apesar de todos os pesares, não devemos ceder ao desânimo e à desesperança: há uma nova escola, uma nova universidade a ser feita, e com elas há um novo mundo por vir.


Texto recebido em 4 de junho de 2020.

DIAS, Isabella; BARBOSA, Luiz Guilherme. Escola-corredor: por uma poética da ocupação (a duas vozes). Rio de Janeiro: Oficina Literária – Ato Zero, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. reimpressão. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2019.

PACHECO, José. Transição paradigmática. In: Pacheco, José. Inovar é assumir um compromisso ético com a educação. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 17-22.

PRECIADO, Paul B. El pueblo que falta. Disponível em: https://youtu.be/vtbGyKqYtTk. Acesso em: 3 jun. 2020.

UNESCO. UNESCO rallies international organizations, civil society and private sector partners in a broad Coalition to ensure #LearningNeverStops. Disponível em: https://en.unesco.org/news/unesco-rallies-international-organizations-civil-society-and-private-sector-partners-broad. Acesso em: 1o jun. 2020.

XIMENES, Salomão Barros. Contra quem os estudantes lutam? As ocupações secundaristas no epicentro das disputas sobre a escola pública. In: JANUÁRIO, Adriano; MEDEIROS, Joana; MELO, Rúrion (orgs.). Ocupar e resistir: movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). Apresentação de Marcos Nobre. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 53-74.

Eduardo Coelho

Professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordena com Luciana di Leone o projeto de pesquisa, extensão e inovação Laboratório da Palavra, que faz parte do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ.

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