Resenhas

Migrantes: os povos da água e o esvaziamento do lugar

Marcio Tavares d`Amaral, 07/12/2020

Foto de Johannes Plenio no Pexels

Neste ensaio inédito, parte de seu mais recente livro, Seis ensaios da quarentena, a ser publicado pela Editora UFRJ em 2021, Marcio Tavares d’Amaral reflete sobre a existência 

As migrações são um fenômeno antiquíssimo. Podemos arriscar a afirmação (sob reserva do que os cientistas tenham a dizer) de que é um acontecimento positivo. Grandes migrações da África geraram uma humanidade, que de outro modo não haveria. É difícil pensar em humanidade em relação a uma espécie que existe em apenas um continente – é local em um mundo de resto desabitado de… humanos. Humanos? Poder-se-ia dizer isso? Essa espécie, que, confinada localmente – ainda que o local fosse um grande continente – teria características insulares. Não podemos imaginar nada sobre sua evolução como espécie, uma vez que teria um território limitado para experimentar adaptações evolucionárias. Sem espalhamento por um território mais amplo e diversificado em todos os sentidos – da topografia ao clima – talvez essa espécie não experimentasse diferenciações suficientes para sobreviver. E poderia se extinguir, como o homo erectus – hominídeo que viveu na África entre 1,8 milhão e 200 mil anos atrás, e de lá não saiu a não ser muito circunstancialmente – se extinguiu. O homem moderno teria surgido, sempre na África, há cerca de 200 mil anos, e feito uma migração maciça entre 80 mil e 40 mil anos atrás. Haveria humanidade sem essa migração? Haveria mundo?

O homem moderno teria surgido, sempre na África, há cerca de 200 mil anos, e feito uma migração maciça entre 80 mil e 40 mil anos atrás. Haveria humanidade sem essa migração? Haveria mundo?

“Humanidade” é um termo que indica uma generalidade. É a característica essencial do que é humano. Que motivos, melhor: que condições, ainda melhor: que necessidade essa espécie teria de se aperceber de si como generalidade? Um gênero se constitui por diferenças e similaridades. O gênero humano faz sentido porque se distingue, no que é essencial, dos demais gêneros, que ou bem não são racionais (os animais não são, os deuses são), ou bem não são mortais (os animais são, os deuses não são) – ou qualquer outro conjunto de diferenças e similaridades que pareçam relevantes. Um gênero se estabelece por comparação. E essa operação é mental. Não há, a rigor, gênero em si, se não existir uma especulação sobre gêneros. Especulação é uma operação de espelhos. Quem se olha no espelho e se reconhece diferente do que o cerca passa a especular: a procurar uma imagem com a qual se possa identificar e ao mesmo tempo distinguir das outras imagens. Não há especulação enquanto não houver um substantivo sentimento de diferença. Pergunto, sem nem de longe dispor de uma resposta de mínima qualidade (precisaria para isso dos paleontólogos e de filósofos e psicólogos da pré-história que não tenho à mão): em que medida poderia ter havido um sentimento de diferença numa espécie que, insular na sua essência, provavelmente se caracterizaria mais por semelhanças? Em quê essa espécie se experimentaria especificamente? Em que espelho se reconheceria substancialmente diferente dos animais com que partilhava a vida e o habitat? (Perguntas de filósofo. Não é imprescindível responder. Elas se fazem para orientar o aparecimento de uma questão.)

A questão é o haver humanidade e mundo. Não era, podemos formular a hipótese, necessário que houvesse. É aplicável, nesse caso, a pergunta de Heidegger 1: “Por que há Ser e não antes Nada?”. Temos, mais de três bilhões de nós, a convicção da Criação. É da ordem da fé. Por certa que seja para quase meia humanidade – para as três religiões do Livro, que somam perto de três bilhões de pessoas –, não tem condições de comparecer no âmbito dessa questão, que exige a racionalidade combinada da ciência e da filosofia. E dela resulta que poderia não haver humanidade. (E nesse caso não faria sentido falar em mundo. Aliás, quem haveria para falar?)

Correndo o risco do exagero hiperbólico, direi que a humanidade e o mundo são produtos diretos da migração africana. A migração foi instituinte. Para a humanidade considerada a partir desse ponto de vista, a migração é fundamento. Dito de maneira ainda mais arriscada, como se fosse uma afirmação axiomática: não há humanidade sem migração.

Poderia não haver humanidade. Mas há. Podemos pensar no acaso da irrupção da vida a partir da matéria e da consciência a partir da vida. São causas externas, casuais e involuntárias. Proponho agora que pensemos em uma causa interna, causal em sentido estrito – seu efeito foi nada menos do que a produção de humanidade –, e, guardando certa cautela no uso da palavra, voluntária. Essa causa é a migração africana. De início, da África para a Europa e a Ásia; possivelmente da Ásia, talvez pelo estreito de Behring ou outra faixa de terra mais tarde submersa, para o Alasca; daí para a América do Norte e na direção do Sul. Pode-se pensar também (paleoarqueólogos dirão) que, na época da grande migração, a Pangeia ainda existia, e o espalhamento foi mais simples. De todo modo, depois do acaso e da evolução, terá havido uma vontade. Foi a partir dela, empurrada por quaisquer que fossem os condicionantes ambientais, que a multiplicidade se instituiu, as características físicas se diversificaram, os modos de ocupação de espaços diferentes – mais ou menos hostis – exigiram diferentes engenhosidades. Quando esse espalhamento voluntário se deu a pensar, identidades e diferenças se estabeleceram, sistemas de inclusão e exclusão foram inventados (muito se discutiu se determinados humanos eram humanos, e isso há muito pouco tempo em relação à escala longa dos acontecimentos), hegemonias foram experimentadas, relações de poder se configuraram. A partir daí, uma humanidade, que poderia não haver, entrou na existência. E com ela, o mundo, os mundos, os habitats intencionais dos diversos grupamentos humanos. Correndo o risco do exagero hiperbólico, direi que a humanidade e o mundo são produtos diretos da migração africana. A migração foi instituinte. Para a humanidade considerada a partir desse ponto de vista, a migração é fundamento. Dito de maneira ainda mais arriscada, como se fosse uma afirmação axiomática: não há humanidade sem migração. O Homem não é real. Os homens – os humanos – são.

E, como reais, têm causa. Acaso e causa. Foram pro-duzidos: trazidos (o verbo é ducere, e indica condução, como em “aqueduto”, “viaduto”, “duque”, “duce”) para cá (“pro”, que indica deslocamento, como em “proveniência” e “procuração”). Em termos filosóficos isso quer dizer: a humanidade, que não era, veio-a-ser. Criou-se (poiein é o verbo, poiese o substantivo). A humanidade é o efeito “poético” do cruzamento de acasos com vontades. Esse efeito deu-se num tempo a partir do qual se criou o espaço que chamamos mundo. No início foi a migração.

“No início” pode significar: na origem. Quer dizer: não havia, passou a haver. Há um momento mais do que temporal, metafísico, que gira de não ser a ser. Esse momento nunca repetido da origem pode ser observado na ordem dos acontecimentos. O Acontecimento originário foi a migração. Ora, uma origem tem a qualidade do absoluto. (Motivo pelo qual as pesquisas de origem foram torpedeadas no século XX e valem pouco ou nada no XXI. Mas são, digamos para empregar uma palavra de gosto pós-moderno, úteis.) “Uma origem tem a qualidade do absoluto” significa: não se repete. A partir dela vários começos e recomeços se dão no tempo que corre e passa, o tempo que conhecemos como História. Migrações históricas conhecemos muitas. Podemos descrevê-las e expor seus efeitos de maneira científica. Há uma, no entanto, que merece ser olhada com uma atenção espantada e amorosa, uma que nos é totalmente contemporânea. A que proponho chamar de “os povos da água”.

Penso, por esse nome, nos migrantes noturnos e cegos pela escuridão, que, despossuídos de tudo, se arriscam no grande mar em busca de qualquer lugar que não o seu de origem. Fogem das guerras, da fome, da pobreza desesperada, das conversões religiosas forçadas, das violações dos corpos, estupros, flagelações, mutilações. Seu espaço é a água. O Mediterrâneo. Fogem da África e da Ásia em direção a um Eldorado novo, onde não é o ouro que procuram, mas a vida mínima. A que se sustente um palmo que seja acima da morte. Mesmo a vida humilhada, abandonada num acampamento em que perdem as memórias e a identidade. Mesmo assim. Fogem da morte. E – tantos! – naufragam no grande mar. Uns dão na praia, como o menino Aylan, deitado de lado, corpo pequeno, com o mar delicado encostado nos pés. Ou a filha abrigada dentro do casaco do pai, última proteção que ele pôde dar à sua menina – mortos os dois. E tantos, e tantas, e tantos, e tantas. Pesam nos nossos corações que têm os pés na terra, âncoras e raízes.

Migrações históricas conhecemos muitas. […] Há uma, no entanto, que merece ser olhada com uma atenção espantada e amorosa, uma que nos é totalmente contemporânea. A que proponho chamar de “os povos da água”. Penso, por esse nome, nos migrantes noturnos e cegos pela escuridão, que, despossuídos de tudo, se arriscam no grande mar em busca de qualquer lugar que não o seu de origem.

Os povos da água, desenraizados das suas terras, são desancorados. Os portos onde esperavam chegar, e quem sabe começar de novo, se fecham. Assim mesmo, sem metáfora ou exagero: se fecham. Aos povos da água é recusada uma terra. Não era para ser a da promissão. Bastava que pudessem andar de pés enxutos. O luxo dos pés enxutos! Significa ter firmeza sob o corpo, um fundamento, mesmo precário, mesmo ruim.

Não são os primeiros, esses, a se deslocarem no espaço, saírem do seu lugar empurrados pelo sofrimento. São os mais tristes. Mas outros houve, além daqueles cuja andança apontava para conquistas, horizontes deslocados para sempre mais longe. Esses fizeram o mundo. Ocuparam territórios, vagaram séculos, armaram tendas. Fundaram cidades. Migrações guerreiras e alegres. Não é desses que se trata aqui. Penso nos que tiveram no deslocamento no espaço uma forma de castigo. Não se agrupavam em multidões, não caminhavam milhares de quilômetros para tentarem vadear um rio ou escalar um muro. Não se lançavam na água noturna do desespero. Partiam sob ordens, partiam para tomar uma distância forçada da casa que era a sua, e seria logo desapropriada, suas famílias dispersas, partiam da terra dos seus maiores, às vezes para nunca mais. Os expatriados expulsos pela lei romana, por exemplo, condenados a só poderem se estabelecer a uma determinada distância da capital do mundo, o que às vezes os levava longe para dentro do Oriente. Partidas tristes, castigos pesados. Mas levavam sua vida preservada e a proteção de Roma. Onde quer que viessem a aportar estavam, apesar de tudo, sob o império da lei romana. Eram migrantes involuntários, violados, mas legais.

Em Atenas houve os que sofreram ostracismo. Podiam não ter feito nada de mau, salvo se destacarem demais na cidade. Representavam um perigo de tirania. O povo votava em assembleia na Ágora, inscrevendo o nome do condenado em cascas de ostras. Daí o nome de ostracismo dado a esse castigo de banimento. Tudo dentro da lei. Mas o ostracismo era o máximo de vergonha. Perder o direito à cidade, não poder mais atravessar suas muralhas para dentro levou não poucos condenados à desesperança da morte.

Houve e há os refugiados, que partem da sua terra, onde correm perigo, e pedem abrigo e asilo – “santuário” é o termo antigo, que ainda se usa em inglês – em um país que aceite pô-los sob a proteção das suas leis segundo o direito estabelecido entre os povos. É de coração pesado que partem, mas voluntariamente. Não sofrem banimento nem ostracismo. Pedem e obtêm uma terra nova, onde possam escapar de perseguições e ameaças. Perdem raízes, às vezes ganham raízes. Não é raro que sejam felizes na terra nova.

Migrações históricas conhecemos muitas. […] Há uma, no entanto, que merece ser olhada com uma atenção espantada e amorosa, uma que nos é totalmente contemporânea. A que proponho chamar de “os povos da água”. Penso, por esse nome, nos migrantes noturnos e cegos pela escuridão, que, despossuídos de tudo, se arriscam no grande mar em busca de qualquer lugar que não o seu de origem.

Há os que migram por desejo e aventura. Querem mais mundo do que o que têm, ouviram falar de mundos melhores. Ou vão tentar a sorte, as coisas andam difíceis, parece que há oportunidades em outras partes. Não é o desejo que os leva, nem a aventura: é a necessidade. Não partem alegres. Deixam atrás de si seu cariri, e talvez não voltem nunca mais. Uns são colonizadores, outros aventureiros, outros retirantes. Os retirantes têm parentesco com os povos da água. Nós os conhecemos bem, fogem do norte seco para o sul das promessas. Também naufragam aqui, tantas vezes, levando vidas pobres, às vezes desesperadas. Mas ficam. É triste. Mas há alguma coisa que os faz ficar. A decepção e o fim das esperanças, talvez. Mas vêm, fugidos sem que ninguém os persiga, chegam e ficam. Para alguns a terra nova oferece uma vida nova. Para outros menos, para muitos nem isso. Mas ficam e se dissolvem na cidade. Ou se encontram em grupos de migrações anteriores, e reproduzem na festa a realidade de que fugiram no desespero. A vida faz isso também.

Mas os povos da água não queriam partir, nem foram expulsos. Nenhuma ágora, nenhum fórum votaram seu ostracismo ou seu banimento. Não partiram pelo desejo de expansão de mundo, nem em busca de uma terra de redenção. Partiram porque não podiam ficar. Guerras de poder e de religião, assustadoras violações dos direitos mais básicos da humanidade, violações no corpo e na alma, a morte que ronda em todas as direções, o perigo extremo, mas anônimo, vindo de não se sabe onde – são essas as coisas que os fazem partir, fugidos de suas casas e das suas vidas. Ninguém os expulsa, não são individualizados por um castigo. Apenas não dá mais. A vida ficou impossível.

Mas os povos da água não queriam partir, nem foram expulsos. Nenhuma ágora, nenhum fórum votaram seu ostracismo ou seu banimento. Não partiram pelo desejo de expansão de mundo, nem em busca de uma terra de redenção. Partiram porque não podiam ficar.

Mas, na outra ponta, ninguém os espera. Não são expatriados, não pedem asilo. Não há para eles santuário. Não são desejados. São um estorvo para o mundo rico. Sua aventura pelo mar é puro desespero. Vão de olhos fechados, porque não veem horizonte. Tudo é escuro na navegação noturna dos povos da água.

Por trás, por baixo de tão pesado sofrimento está o desaparecimento global do lugar. Do local. Nem todas as pessoas, longe disso, são forçadas a migrar como os povos da água. Ficam em casa. A casa é que viaja. A globalização que se faz pelo consumo não considera pessoas. Essa globalização (outras serão possíveis? a “mundialização doce” de que se falava na Europa? a globalização da ternura? – tudo tão difícil…) considera consumidores. E invade as casas pelos diversos artefatos de comunicação para anunciar que o mundo se encolheu e cabe na palma da sua mão. Sem sair de casa você viaja a todos os mercados. Até visita museus! Assiste a concertos. Dança nas janelas com tantas outras pessoas em tantas outras partes do mundo. É útil e é belo. Mas significa que a casa deixou de ser um lugar privado, de recolhimento e descanso. A casa viaja. Não é mais um endereço, uma demora no seu lugar próprio (demeuredizem os franceses para assinalar suas moradias), o ponto do mundo em que se decidiu lançar sua âncora pessoal. O mundo invade as casas, levanta as âncoras, carrega-as em uma navegação de mercado. As casas viajam, deslocalizam-se. Os lugares começam a ser inessenciais, acidentes que podem ser alterados virtualmente por forças globais, poderes planetários. Isso vale para qualquer lugar a que cheguem as tecnologias informacionais de ponta, as que encurtam o mundo. Sempre se pode estar, agora, em um lugar e outro, e não há mal nisso. É uma ampliação de possibilidades de experimentar o mundo. Mas o saldo, negativo talvez, desse permanente deslocamento virtual é que não se está mais no seu lugar em permanência. Qualquer lugar é o meu lugar? Essa é a propaganda. O que pode resultar é que em breve nenhum lugar será o meu. Durante a pandemia fomos às janelas cantar e aplaudir médicos e enfermeiros. No plano da vizinhança, estávamos mesmo nas nossas janelas, nas janelas das nossas casas. No plano global, o do espetáculo, as janelas se desterritorializaram, deslocalizaram. Todas as janelas do mundo fabricaram virtualmente um palco-mundo de janelas para um espetáculo global – o que importou como ensaio de uma humanidade que foi reconhecendo sua existência na pressão da pandemia. Não obstante o fato de que, para aqueles que se viam presencialmente nas janelas da vizinhança não tenha havido espetáculo nenhum, mas manifestação concreta de uma solidariedade local. É dessa tensão entre global e local, em que o global leva a vantagem do capital e do poder, que emerge a ameaça ao lugar.

Os povos da água podem ser um sinal dessa tendência, desse risco. Naturalmente sua deriva se deve a condições muito específicas, que talvez bastem pra dar conta das causas do fenômeno que estou procurando olhar aqui. Mas não bastam para esclarecer sua natureza. Proponho os povos da água como uma amostra paradigmática do que pode vir a ser um mundo em que o lugar deixe de ser uma referência fundamental, não porque o mundo globalizado seja naturalmente cosmopolita, mas porque pertencer a um lugar tenha deixado de ser um princípio de identidade.

Proponho os povos da água como uma amostra paradigmática do que pode vir a ser um mundo em que o lugar deixe de ser uma referência fundamental, não porque o mundo globalizado seja naturalmente cosmopolita, mas porque pertencer a um lugar tenha deixado de ser um princípio de identidade.

Nas suas navegações os povos da água têm o desejo de um porto, a esperança de chegar, mas não têm destino. Vagam em qualquer direção, aquela em que um farol se acender indicando um caminho. Querem ir para a Itália, aportar em Lampedusa. Mas de repente a Itália não há mais. Ficam na situação do poema de Drummond 2: “[…] quer ir para Minas,/ Minas não há mais./ José, e agora?”. Agora é o mar de novo, quem sabe a Espanha? A França, talvez? – Ninguém sabe. É preciso ir lá e ver. Agora – lá. Para os povos da água, os migrantes do mundo globalizado que tende a extinguir, ou tornar desimportante, o lugar, a conjunção de aqui-e-agora parece estar em perda. Quando agora é sempre , não é mais o destino que importa, mas o caminho. Mais concretamente: permanecer no caminho. Uma errância que não é um exercício de liberdade, de errar entre as coisas e lugares do mundo, mas uma que se qualifica pelo erro, por errar o alvo, perder a meta. Por isso digo que esses migrantes têm desejo e esperança, mas não destino. Qualquer lugar não é algum lugar, mas é melhor do que lugar nenhum. Os migrantes que fogem (Flüchtlinger, se diz em alemão – os que estão em fuga) sem que do outro lado os espere o santuário de um asilo poderiam ser uma metáfora dolorosa de uma humanidade futura, não muito longínqua, caracterizada pelo desenraizamento que não se caracteriza como troca de raízes (isso é um destino), mas como perda nua, bruta, desidentificação que tem no apagamento do lugar próprio um dos sinais visíveis desde já. Um sinal que vaga sobre as águas que acolhem os mortos e empurram os ainda vivos para um lugar indeterminado, um não lugar não destinado.

Migrar, pouco ou muito, deslocar-se, parece ser um modo de subjetivação pós-moderna. Vai na contramão do ethos, da demora no lugar próprio, que garante identidade. Acorda-se melhor com aión, o acaso, e com kairós, a oportunidade. Essas antiquíssimas formas de experimentar o tempo, que os muito antigos gregos desenvolveram e foram cassadas no século VI a.C., podem estar de volta. A aceleração do tempo, a urgência do coelho de Alice, sempre com pressa para ir a algum lugar, e cujo relógio (crono-lógico) anda para trás, pode ser uma boa metáfora para a nossa relação pós-moderna com o tempo. A pressa temporal casa bem com os deslocamentos, a pouca permanência. Os que criam raízes passam às vezes por terem perdido tempo, perdido em boa medida a vida. Não entenderam os acasos, não lhes deram valor, talvez os tenham experimentado, com menosprezo ou desgosto, como uma interrupção da vida que ia bem na sua confortável cronologia. Os que continuam a preferir a segurança de cronos aos desafios arriscados de aiókairós. Os que não estão sempre de malas prontas e pé na estrada. Os que não se deslocam.

Mas não é a mesma coisa esse modo de subjetivar-se pelo deslocamento (ruptura com o flâneur em que Baudelaire surpreendeu a “essência” do homem moderno) e a dessubjetivação dos povos da água. O “homem pós-moderno” pode estar ganhando, ao se deslocar permanentemente, um acúmulo de identidades diferentes que constituem o seu mosaico de microssubjetivações, das quais se compõe, no final das contas, aquele que transita com desenvoltura pelo mercado de tudo, que é o mundo a ser consumido, o próprio espaço do deslocamento. Fernando Pessoa 3 pode ter visto com justeza a passagem dos enraizados para os viajantes:

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente.

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim! 

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim, 

E da ânsia de o conseguir.

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

Há nesse modo de viajar um tanto de abandono e um tanto de aventura. Uma positividade em trânsito. Nada disso acontece com os povos da água. Não há para eles terra e céu. O que há é o abismo. O do mar, com certeza, por onde se faz sua viagem sem destino, onde morrem ou salvam-se da morte na água para encontrarem nada em uma terra qualquer. E o abismo da indiferença, que não é viagem, é naufrágio também.

[…] a globalização como a estamos fazendo exclui do mundo quem não tem condições de consumir; quase meia humanidade vive em situação de pobreza e não pode consumir; quase meia humanidade está fora do mundo regido pela globalização; essa exclusão parece ser estrutural, sem volta enquanto perdurar o atual sistema.

Estou me referindo à exclusão estrutural produzida pela globalização do consumo. Apenas em grandes traços: a globalização como a estamos fazendo exclui do mundo quem não tem condições de consumir; quase meia humanidade vive em situação de pobreza e não pode consumir; quase meia humanidade está fora do mundo regido pela globalização; essa exclusão parece ser estrutural, sem volta enquanto perdurar o atual sistema. Aos excluídos da globalidade resta a habitação no local. Mas o local está se esvaziando, na medida em que o lugar vai perdendo intensidade de investimento. Os povos da água são o exemplo paradigmático da perda do lugar. Mesmo que não estejam todos entre os excluídos estruturais – provavelmente não estarão – a perda do lugar os põe nessa posição. Fora do mundo e deslocados do lugar, os migrantes para lugar nenhum assinalam o extremo limite da migrância como modo de subjetivação pós-moderna – o limite em que a subjetividade se esvai. Fim da viagem.

Notas

  1. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969 [voltar]
  2. ANDRADE, Carlos Drummond de, José. São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 35 [voltar]
  3. PESSOA, Fernando. Poesia. Lisboa: Ática, 1995, p. 182 [voltar]
Marcio Tavares d`Amaral

Filósofo e professor titular emérito da Escola de Comunicação da UFRJ. Coordenador do Programa de Estudos Avançados (IDEA) – Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento na ECO/UFRJ. Autor, entre outros títulos, da coletânea Os Assassinos do Sol: uma história dos paradigmas filosóficos e de Seis ensaios da quarentena (no prelo), ambos pela Editora UFRJ. E-mail: marciotdamaral@ gmail.com.

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