Filosofia

Contra a parede, por Jean-Luc Nancy

Jean-Luc Nancy, 23/09/2020

Foto de Pedro Figueras no Pexels

Neste texto, escrito para apresentação no Colóquio “Est-il possible de parler du Mal en temps de pandémie” (UNESCO/Collège de France), Nancy oferece pistas para a compreensão filosófica do “mal-estar” na contemporaneidade, a partir especialmente das noções de pulsão de morte e de crueldade, focos de interesse de diferentes disciplinas no último meio século

Há várias décadas, em torno de meio século, uma questão difícil trabalha e angustia o pensamento. Essa questão recebe mais frequentemente o nome freudiano de “pulsão de morte”. O título de um livro de Buyung-Chul Han recentemente publicado – Capitalismo e pulsão de morte (Kapitalismus und Todestrieb) – pode servir como emblema. Esse título não chama a atenção apenas pela associação de duas noções vindas de campos muito distantes, mas sobretudo por não nos surpreender. Temos imediatamente o sentimento de que sabemos um pouco do que se trata. Podemos até mesmo pensar que há ali um certo ar de déjà-vu (sem insinuar com isso uma depreciação do livro em questão, mas, ao contrário, sugerindo que ele trata de um tema que está se tornando para todos uma preocupação lancinante).

Ao interesse pela pulsão de morte (sobre a qual poderíamos fazer uma longa lista de referências recentes) acrescentou-se, nesse mesmo meio século, um interesse por uma noção menos claramente ligada a uma disciplina, mas presente também em Freud, a saber, a noção de crueldade.

Ao interesse pela pulsão de morte (sobre a qual poderíamos fazer uma longa lista de referências recentes) acrescentou-se, nesse mesmo meio século, um interesse por uma noção menos claramente ligada a uma disciplina, mas presente também em Freud, a saber, a noção de crueldade.

Há, de um lado, os inúmeros trabalhos sócio-históricos sobre comportamentos cruéis, seja sobre a tortura, ou os campos de concentração, ou os geno ou etnocídios de toda espécie, e, de outro, uma preocupação filosófica e psicanalítica com a crueldade que se manifestou de várias maneiras, tanto em Derrida quanto em Lacan, Clément Rosset, Bernard Baas ou Mirjam Schaub, entre outros. Aqui também, ao mesmo tempo que temos um sentimento de déjà-connu, experimentamos um certo espanto diante de um interesse teórico por algo que nos parece de saída mergulhado na abjeção e no insuportável de uma barbárie – termo frequentemente associado a crueldade – simplesmente estranha à civilização e, portanto, à dignidade do pensamento.

No entanto, a civilização foi cruel. Essa não é a menor lição da história do colonialismo ou dos extermínios de que a Europa foi o ponto de partida, e de que continua sendo ao mesmo tempo que se inquieta cada vez mais com o que é obrigada a designar como sua própria “barbárie” (já que é ainda necessário empregar esse termo que visava originalmente o falar grosseiro e confuso dos povos considerados pelos gregos como sem cultura).

É dessa inquietude que o trabalho tenaz das noções de pulsão de morte e de crueldade dá testemunho. Não devemos nos deixar enganar pelas categorias disciplinares que levariam a crer que é de questões psicanalíticas e/ou socioeconômicas e éticas que se trata. Essas categorias, ao contrário, correm o risco de embaralhar a percepção de uma realidade que não podemos designar de outra maneira senão como filosófica, para não dizer metafísica.

Se pronuncio essa última palavra é porque o próprio Freud fazia referência a ela ao inventar o termo “metapsicologia”. Com essa invenção ele indicava que a implicação maior de seu trabalho não era psicológica, e que ele podia inclusive colocar em questão a própria representação de “psiquismo”, por oposição à de realidade social, econômica, política e cultural. À metapsicologia pertence o estudo das pulsões – desses Triebe cuja natureza permanece “mítica” para Freud, o que antes de mais nada quer dizer que eles não são nem simplesmente físicos nem simplesmente psíquicos, mas que se manifestam sobretudo ali onde se dissolve a separação entre essas noções, e ali também onde se apaga a fronteira entre o individual e o coletivo. Em outras palavras, no próprio lugar da existência humana.

Ao interesse pela pulsão de morte (sobre a qual poderíamos fazer uma longa lista de referências recentes) acrescentou-se, nesse mesmo meio século, um interesse por uma noção menos claramente ligada a uma disciplina, mas presente também em Freud, a saber, a noção de crueldade.

Esse Freud é o autor de O mal-estar na civilização, obra em que é interrogada a violência moderna e sua relação com as pulsões que a civilização supostamente controla. O ponto em que estamos quase um século depois poderia se enunciar sob um outro título, que seria o mal-ser [mal-être] da civilização.

“Mal-ser”, pois, trata-se de mais que um mal-estar (termo que Freud já empregava por eufemismo). Trata-se de uma desarrumação e de uma consciência mais ou menos viva de uma verdadeira doença […] E “mal-ser” da – ao invés de na – civilização, na medida em que é no coração ou na alma dessa civilização que ele é desencadeado.

“Mal-ser”, pois, trata-se de mais que um mal-estar (termo que Freud já empregava por eufemismo). Trata-se de uma desarrumação e de uma consciência mais ou menos viva de uma verdadeira doença – não de um único vírus, mas de uma infecção que temos razão de pensar autoimune, termo que usamos para falar de patologias nas quais um organismo destrói a si mesmo. E “mal-ser” da – ao invés de na – civilização, na medida em que é no coração ou na alma dessa civilização que ele é desencadeado. Disso foram testemunhas, ao mesmo tempo que Freud, Heidegger e Wittgenstein. Junto com eles, de certa maneira, Franz Fanon fala da necessidade de mudar “de espécie de homens”.1

É claro que essa deficiência de certa forma orgânica não é percebida – ou não da mesma maneira – conforme as regiões e os povos, pois uma característica dessa civilização é que ela concentra suas potências e suas benfeitorias (ou seus benefícios, segundo o léxico que se prefira…) em uma parte muito restrita da humanidade. As outras partes se esforçam para aceder ao bem-estar [bien-être] manifestado pelas sociedades e/ou classes ditas desenvolvidas. Contudo, a novidade é que nessas mesmas sociedades/classes uma dúvida começou a se exprimir: E se houvesse uma espécie de mal estrutural no que produz e condiciona hoje a espécie humana, inclusive – até mesmo em primeiro lugar – ali onde ela parece confortável e sempre conquistadora?

Na verdade, a violência e a crueldade sob todas as suas figuras não são, no fundo, novas. […] O que por outro lado é novo desde mais ou menos a modernidade industrial é a percepção, ou ao menos a suspeita, de um mal deliberado, intencional de que os homens seriam capazes.

É possível que a dúvida despertada nas sociedades desenvolvidas seja transmitida às sociedades que aspiram ao desenvolvimento, e que, por outro lado, o desejo dos mais pobres não seja simplesmente regulado pela reprodução do modelo ocidental. Querer uma vida decente assume um sentido material diferente conforme as culturas de origem. Talvez, além disso, as necessidades ecológicas que se tornam imperiosas possam infletir os desejos em sua natureza sem lhes reduzir a força. (As expressões tão diversas do desejo sexual – do amor cortês até o estupro – podem valer aqui como exemplo.)

Na verdade, a violência e a crueldade sob todas as suas figuras não são, no fundo, novas. As guerras dos séculos mais antigos, os massacres, os suplícios e as torturas – para não dizer nada das extorsões, das explorações, de todas as formas de dominação – não foram poucas na maior parte das culturas humanas. O que por outro lado é novo desde mais ou menos a modernidade industrial é a percepção, ou ao menos a suspeita, de um mal deliberado, intencional de que os homens seriam capazes. Ou seja, também, a possibilidade de uma maldade ontológica.

Na filosofia europeia, essa suspeita aparece claramente com Kant e Schopenhauer. Depois deles, ela não parou de se acentuar até chegar à pulsão de morte freudiana e à negação da alteridade, conforme assinalaram, de maneiras diferentes, Sartre, Levinas ou Derrida. De certo modo, é sempre disso que se trata: de uma recusa, de uma redução ou de uma exclusão do outro.

O termo “negação” convém, sem dúvida, melhor para caracterizar o que é menos uma oposição ao outro do que um desejo de não ter que lidar com sua alteridade. E esse desejo se endereça tanto à alteridade do próprio sujeito quanto à dos outros sujeitos. É sob essa condição que se pode compreender como emerge o próprio princípio de um querer mau.

O mal radical, segundo Kant, é um mal que não pode ser precedido por nenhuma causa e que, tanto quanto a disposição contrária, está estritamente ligado à liberdade. Para ser ela mesma, a liberdade deve ser livre para negar a liberdade do outro, ao risco de corromper-se, assim, ela própria de maneira irremediável. De maneira semelhante, pode-se dizer que o desejo do vivente, que é o de continuar vivendo, existe apenas na medida em que reconhece sua alteridade mortal. Essa alteridade é exposta – somos tentados a dizer proposta – ao vivente como o que ele quer superar, mas também como aquilo em que ele pode se precipitar.

Ora, se se pode falar, a propósito do homem da civilização moderna, de “homem unidimensional”, como o fazia Marcuse, é exatamente na medida em que a dimensão única é antes de mais nada a que nega sua própria alteridade. Ou seja, ao mesmo tempo a própria mortalidade e a existência do outro como condição de minha própria existência humana.

Para que essa unicidade exclusiva seja possível, é preciso uma civilização na qual nada seja estranho ao homem, considerado como produtor e como beneficiário de sua própria existência. O que quer dizer que essa própria existência é um produto e um bem de consumo. Donde se conclui que a humanidade se divide entre uma minoria que goza da vida e uma maioria que aspira a poder viver.

A apropriação está no cerne de toda dominação – e reciprocamente. O que, em compensação, não seria unilateral seria a consideração de um ser próprio de cada indivíduo e de cada comunidade. Pois esse ser próprio não seria nem determinável nem exclusivo: ele implicaria necessariamente as relações com os outros.

O motivo mais elementar dessa uniteralidade se denomina propriedade. Quer dizer, a ideia de um pertencimento próprio: “isto é meu”, tanto quanto, talvez, o “isto é nosso” de uma propriedade nacional ou de qualquer coletividade. A apropriação está no cerne de toda dominação – e reciprocamente. O que, em compensação, não seria unilateral seria a consideração de um ser próprio de cada indivíduo e de cada comunidade. Pois esse ser próprio não seria nem determinável nem exclusivo: ele implicaria necessariamente as relações com os outros. O ser próprio implica uma inapropriação e uma transpropriação. Marx, expressamente ou não, pensou nessa direção – na esteira de todos aqueles que, antes dele, tinham compreendido que a propriedade é o mal. Ela é a maleficação [mise à mal].

O ser próprio – o si mesmo – não é o produto de uma apropriação (que não teria nenhum primeiro sujeito!). É, ao contrário, o processo interminável (a não ser pela morte) de uma transpropriação contínua, pela qual uma primeira unidade apropriante (um bebê que se alimenta) se desdobra através de expropriações renovadas (ele perde seu “em si” no afeto, na linguagem, no trabalho, no sexo, na alteridade que sempre o terá precedido e que sempre se seguirá a ele). Derrida falava de “exapropriação”: o “próprio” é o exercício disso.

É sobre a base de uma lei geral da apropriação que a desigualdade se torna ela própria uma lei e que A minoria expropriadora inflige à maioria expropriada o sofrimento de uma falta-de-viver [manque-à-vivre]. Mas ao mesmo tempo ela inflige a si mesma o absurdo de uma vida que só suporta a si mesma sob a condição de dominar, se possível, até mesmo a própria morte. Chama-se a isso “transumanismo”, ignorando que se ressuscita uma palavra de Dante (“trasumanar”, em italiano) que não tinha de maneira nenhuma o sentido de uma superação do humano, mas o de uma forma de alegre êxtase.

Autoprodução e dominação ilimitada, eis a dimensão única que define a si própria mais ou menos expressamente como um “bem” e que não se dá conta de que não sabe absolutamente para onde se dirige esse automatismo gigantesco – senão para uma destruição cada vez mais ameaçadora das diversidades humana, animal e vegetal, isto é, da própria vida.

Para isso foram necessárias algumas condições. A primeira está no crescimento indefinido da potência técnica. Após ter ultrapassado o patamar da produção de energia, ela ultrapassou o da produção de informação. Ela ultrapassará talvez o da produção da própria vida. Dessa maneira, uma autoprodução integral da vida seria uma contradição em termos já que a vida é por si mesma alteridade, alteração e estranheza a si própria. O indefinido técnico é o mau infinito, a fuga na enumeração dos números…

A segunda condição é um crescimento da população humana tal que se colocam não apenas as questões relativas à sobrevivência e à vida decente do maior número, como também, e sem dúvida, acima de tudo, as questões a respeito das relações entre conjuntos, grupos ou comunidades de tal maneira que sua própria coexistência constitua para todos uma interrogação sobre sua copresença ou seu comparecimento no mesmo espaço planetário ou até mesmo cósmico, já que, por intermédio da técnica, temos nos estendido muito longe no cosmos. O cosmos, aliás, mudou de status: ele não é mais o conjunto colossal de uma origem universal, mas uma extensão espaçotemporal complexa, múltipla e pulsante que compartilha nossa errância.

A terceira condição depende estreitamente das duas primeiras. A expansão geral da racionalidade técnica (o que quer dizer também, não podemos esquecer, médica, cultural, jurídica) é acompanhada de um apagamento tendencial de todas as formas de legitimação. Quando a legitimidade provém inteiramente daquilo que chamamos de razão – a razão calculadora, demonstrativa e operatória –, ela só pode remeter em última instância à ausência de razão primeira ou última que é sua condição fundamental. Nem a ciência, nem o direito, nem a argumentação, são feitos para remontar a princípios – tampouco para atingir fins. A propriedade se encontra no princípio de todas as legitimidades em vigor: mas, se não existe razão fundadora, então é preciso admitir que a propriedade não pode ser essa razão, e que é necessário ir mais longe.

É verdade que as legitimidades religiosas ainda desempenham papéis não negligenciáveis. Mas elas se encontram quase sempre arroladas a serviço de dominações político-econômicas. Ao mesmo tempo, o que denominamos democracia mostra em toda parte – quando não é abertamente violada – uma imensa dificuldade de se legitimar sem se converter em nacionalismo ou se diluir em boas intenções.

Isso é conhecido e reconhecido por todo pensamento rigoroso, mas nenhuma consequência até agora foi rigorosamente extraída disso. Persistimos em falar vagamente de política ou de economia, como se dispuséssemos de princípios e de fins. Mas todas as legitimidades estão suspensas, das mais tradicionais às mais recentes (refiro-me aqui à legitimidade marxista, pois se a palavra “comunismo” pode lembrar ainda um pouco uma legitimidade desejada, não há mais doutrina em que possamos nos apoiar).

É verdade que as legitimidades religiosas ainda desempenham papéis não negligenciáveis. Mas elas se encontram quase sempre arroladas a serviço de dominações político-econômicas. Ao mesmo tempo, o que denominamos democracia mostra em toda parte – quando não é abertamente violada – uma imensa dificuldade de se legitimar sem se converter em nacionalismo ou se diluir em boas intenções. Sempre e em toda parte, para terminar e para começar, a apropriação permanece um princípio, em lugar de ser ela mesma submetida à soberania incalculável do ser-próprio.

(Bataille soube entender o caráter de “NADA” da soberania, como ele o escreve. Quer dizer que um poder supremo não tem nada sobre o que se fundar. O que não impede a necessidade de um poder de decisão, nem a impossibilidade de reduzir a decisão a uma escolha racional – mas põe a nu a ausência de legitimação última. Em outras palavras: toda soberania se expõe a uma outra – como o Estado ao povo, cada uma delas permanecendo “NADA”…).

Para nós a soberania é supostamente fundada sobre a natureza ou a razão – ou então ela aparece como capricho tirânico. E de fato ela pode ter todas essas formas. Mas a potência tecnoeconômica comanda tudo, e se legitima pela potência, não pela soberania… “O inferno está cheio de boas intenções”, diz um velho provérbio. Não estamos longe de fazer da terra um inferno. Com as mais notáveis produções do espírito – da matemática indiana às nanotecnologias planetárias – conseguimos nos encontrar despojados de razão de ser. Cada passo para a frente é acompanhado de dois passos para trás. Não podemos nos tranquilizar dizendo-nos que o mal destrói a si mesmo, já que esse feedback torna-se também o que havíamos denominado “progresso”.

O progresso, doravante, só é possível se progredir rumo a uma outra espécie de homens, para retomar a expressão de Fanon. Estamos contra a parede. Tanto na África quanto na Europa, ou na Eurásia, na Ásia ou nas Américas, a humanidade já se encontrou mais de uma vez contra a parede. Foi o caso do mundo mediterrâneo de antes dos gregos e dos judeus, antes de Jesus e de Maomé, antes da aventura ocidental. Antes de quê, antes de quem somos/estamos nós, nós outros, nós que viemos tarde? Nós outros mal vindos? Diante do quê? Diante de quem?

Contre le mur. Texto original escrito para conferência apresentada no Colóquio “É possível falar do mal em tempos de pandemia?”, organizado por Divya Dwivedi e Shaj Mohan, realizado on-line em junho de 2020.

Texto recebido em 2 de agosto de 2020.

Nota: Agradeço Divya Diwedi que contribuiu com conselhos para a última redação deste texto.

Notas

  1. A frase completa de Franz Fanon: “[…] a descolonização é simplesmente a substituição de uma ‘espécie’ de homens por outra ‘espécie’ de homens. Sem transição, há uma substituição total, completa, absoluta” (Fanon, Franz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Serafim Ferreira, 2014. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/fanon/1961/condenados/index.htm. Acesso em: 2 ago. 2020) (N.T.). [voltar]
Jean-Luc Nancy

Filósofo e professor emérito da Universidade de Estrasburgo. É autor de dezenas de livros, entre os quais, no Brasil, mais recentemente: Arquivida (Iluminuras, 2014), Corpo, Fora (7 Letras, 2015), A comunidade inoperada (7 Letras, 2016) e Demanda: Literatura e Filosofia (Ed. UFSC; Argos, 2016).

Traduzido por João Camillo Penna

Professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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