Acessibilidade

Cientista surdo ou surdo cientista?

Nuccia N. T. De Cicco, 16/09/2024

Ilustração: Anna Sgarbi

Conhecer ciência, mesmo que o básico, é fundamental na sociedade atual e essencial para o desenvolvimento de um aluno. As inovações científicas e tecnológicas surgem e são divulgadas em velocidade cada vez maior em língua portuguesa, com muitos termos técnicos. E não é nenhuma novidade que essa divulgação não alcança todas as camadas da população, incluindo em especial pessoas com deficiência auditiva, mas não exclusivamente as que fazem uso da língua brasileira de sinais (Libras).

A surdez é uma deficiência diversa. No Brasil, cerca de 3 milhões de surdos usam a Libras como forma principal de comunicação,1 sendo chamados de surdos sinalizantes. Dentre desse grupo, a maioria é composta de nascidos surdos e de perda auditiva na fase pré-lingual. No entanto, esse número não supera os surdos usuários da língua portuguesa, via escrita ou leitura labial, conhecidos como surdos oralizados ou ensurdecidos, pois a maioria é de surdos que perderam a audição total ou parcialmente, após a fase de aprendizagem da língua oral e que podem ou não usar aparelhos ou implantes.

Além disso, a surdez tem graus e nuances particulares, o que faz com que a acessibilidade para estas pessoas precise ser específica.2 Por exemplo, para um surdo oralizado, a presença de um intérprete de Libras em sala de aula não pode ser considerada como acessibilidade, visto que este tipo de surdo desconhece a língua de sinais. Apenas “saber português” não o torna incluso em sala de aula e, portanto, um sistema de legendagem seria o ideal.

A pouca ênfase dada ao ensino de ciências para surdos, bem como as barreiras comunicativas e a falta de acessibilidade, resultam em um número muito baixo de jovens surdos se interessando e atuando em áreas científicas, não apenas no Brasil, mas em nível mundial.3 Em 2022, de um total de 79.262 matrículas no ensino superior no país de alunos com deficiência, transtornos globais ou altas habilidades (o que representa só 0,8% do total geral de matriculados nesse mesmo ano), apenas 8.722 eram pessoas autodeclaradas com deficiência auditiva e 2.591 de pessoas autodeclaradas surdas.4 Apesar da existência de programas e institutos associados a faculdades da área técnica e/ou biológica e da saúde, como o National Technical Institute for the Deaf, nos EUA, a maioria dos surdos ainda prefere cursar a graduação nas áreas de linguística e educação.5 

Equipe de monitores do projeto, professores e alunos surdos de São João de Meriti no curso com tema “células” |Fonte: acervo do projeto

Na pós-graduação, a quantidade de surdos estudantes é ainda menor. Suas pesquisas tendem a se concentrar na valorização da língua e cultura surdas.6 No campo das ciências tecnológicas, biológicas e da saúde, a grande dificuldade de acessibilidade, bem como questões financeiras e psicológicas de permanência, torna o número de surdos com o título de doutor praticamente inexistente.7

Na década de 80, o Prof. Leopoldo de Meis criou os cursos de férias para tornar a educação e ciência mais acessíveis e atraentes a grupos de classe socioeconômica mais baixa. Os cursos têm uma semana de duração, acontecem durante o mês de férias escolares e seu método de ensino é aprender ciência fazendo ciência, ou seja, baseados em questionamento, raciocínio, compartilhamento e experimentação. Os melhores alunos eram e ainda são convidados a estagiar e recebem bolsa de iniciação científica júnior.

Pouco mais de 20 anos depois, a Profª. Vivian Rumjanek adaptava esses cursos e sua metodologia para o ensino de jovens surdos,8 oficializando o Projeto Surdos-UFRJ. Dele, quatro anos mais tarde, originou-se o Laboratório Didático de Ciências para Surdos (Ladics), que se encontra sob responsabilidade de uma servidora federal surda com doutorado em bioquímica. No Ladics, alunos surdos do ensino fundamental e médio de escolas públicas podem aprender biociências na prática, atuando em parceria com monitores graduandos surdos e ouvintes, em cursos de férias e estágios.

Por ano, realizamos dois cursos de férias com alunos de escolas públicas das cidades do Rio de Janeiro e de São João de Meriti. Os cursos são temáticos e experimentais, seguindo a metodologia de ensino De Meis já detalhada. Ocorrem durante o calendário escolar e possuem duração de uma semana, período durante o qual os jovens são estimulados a pensar como cientistas, questionando o que gostariam de saber sobre o tema e como realizar os experimentos.

Além do estímulo ao pensamento científico, estimulamos a escrita em português das perguntas e do passo a passo dos experimentos realizados. Dos temas ofertados, já fizemos cursos que tratavam das seguintes temáticas: DNA, mosquitos, microrganismos, biossegurança, células, entre outros. Ao final, os alunos apresentam o que aprenderam durante o curso na forma de seminários, teatros ou vídeos em Libras. Tais cursos contam com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do próprio Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ.

Já as aulas de monitoria e estágios acontecem no Ladics pelo menos duas vezes na semana. Como dito, são com alunos surdos e ouvintes, da graduação da UFRJ e voluntários externos. Alguns monitores são bolsistas Profaex/UFRJ, enquanto a maioria é formada por alunos da Extensão/UFRJ. Contam com o apoio de intérpretes de Libras, graduandos e/ou formados em Letras-Libras e que possuem formação complementar na área das biociências.

Atualmente, o laboratório conta com dois surdos monitores e cinco estudantes extensionistas do curso de Enfermagem/UFRJ, e está prestes a receber um novo monitor surdo sinalizante graduando de Ciências Biológicas.

Equipe de monitores surdos e ouvintes ao lado de alunos surdos visitantes na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2023 | Fonte: acervo do projeto

Além dos cursos e estágios, o projeto de ensino de ciências para surdos busca ampliar a existência e o uso de sinais científicos em Libras, pois a ausência de sinais próprios, com conceito científico embutido, é um entrave à compreensão do conteúdo. Desenvolver glossários científicos é uma tarefa árdua que possui uma metodologia específica, demanda tempo e disponibilidade de profissionais da área científica, linguística e de indivíduos surdos. Os sinais são desenvolvidos após extensa pesquisa sobre sua existência. Os surdos atuam em toda a produção, desde o entendimento do conceito da palavra até a avaliação do sinal desenvolvido.

O glossário é totalmente digital e online, disponibilizado no canal de YouTube do projeto Surdos-UFRJ. No momento, possui cinco fascículos temáticos já lançados (Sangue, Sistema Imune, Célula, Embriogênese, Mosquito Aedes) e outros dois em preparação (Ecologia e Microrganismos). Cada termo científico é apresentado em vídeo com legenda, tendo um aluno surdo em primeiro plano ao lado de uma imagem representativa do termo. Em sequência, um intérprete explica, em Libras e com legendas, o conceito associado ao sinal. Cabe lembrar que a Libras é tão diversa quanto o português e nossos sinais são desenvolvidos no Rio de Janeiro, sendo assim, alguns sinais podem variar entre cidades e estados brasileiros.

O Projeto está sempre participando de congressos, simpósios e eventos na UFRJ, divulgando seu trabalho e de seus parceiros. Mantemos parcerias com o Programa FOCCAI (Formação e Orientação Continuada em Acessibilidade e Inclusão), com o projeto de Ensino de Libras para Crianças Surdas do Ambulatório de Surdez do HUCFF/UFRJ e com o Pólo de Surdos de São João de Meriti. 

Ainda há um longo caminho para que uma pessoa com deficiência auditiva se sinta incluída na área científica. É preciso muita colaboração entre discentes, docentes e corpo técnico, bem como ajustes na rotina laboratorial e em eventos científicos de grande porte. Contudo, aos poucos, com carinho e dedicação, surgem mais cientistas surdos e também surdos cientistas.

Notas

  1. BARRAL, J.; RUMJANEK, V.M. Empréstimos linguísticos para sinais científicos na área de Biociências. Revista Espaço, v. 49, p. 55-70, 2018. [voltar]
  2. DE CICCO, N. Pérolas da minha surdez. 2. ed. Belford Roxo: Editora Bindi, 2020. [voltar]
  3. Moores, D. F.; Jatho, J.; Creech, B. (2001). Issues and Trends in Instruction and Deafness: American Annals of the Deaf 1996 to 2000. American Annals of the Deaf, v. 146, p. 72-76. 2001. [voltar]
  4. INEP. Resumo Técnico: Censo da Educação Superior 2022. 1. ed. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 2022. [voltar]
  5. SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [voltar]
  6. ROSA, E. F. Surdos na pós-graduação. In: 6º SEMINÁRIO BRASILEIRO DE ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO E 3º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO, jun 2015, Canoas, RS. Seminário. 2015. [voltar]
  7. MORI, N.N.R.; SANDER, R.E. História da educação de surdos no Brasil. SEMINÁRIO DE PESQUISA PPE, Universidade Estadual de Maringá. PR. 2015. [voltar]
  8. PINTO-SILVA, F.E.; MARTINS, P.R.S.; RIMJANEK, V.M. Rousing interest in Science among secondary school deaf students. SJSRE, vol. 2, n. 7, p. 104-109, 2013. [voltar]
Nuccia N. T. De Cicco

Bióloga ensurdecida, mestre e doutora em Química Biológica, coordenadora do projeto de extensão “Ensino de ciências para surdos”. Atua como professora colaboradora no Projeto Surdos UFRJ, como técnica no Laboratório Didático de Ciências para Surdos (Ladics) do IBqM/UFRJ e como membro da Comissão de Acessibilidade do CCS/UFRJ. Contato: projetosurdos.ufrj@gmail.com

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