Arte

Ciênica: divulgação científica e teatro

Leonardo M. Moreira, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

O contato entre ciências e artes ecoa práticas e conhecimentos em África antiga, na Renascença europeia e em manifestações culturais mais recentes. Um exemplo no teatro é Bertold Brecht, um pesquisador da sociedade de seu tempo e da arte dramática. Sua peça ‘A Vida de Galileu’ teve diferentes versões, sendo objeto de análise constante durante sua vida.

Na contemporaneidade, ciências e teatros têm sido misturados em contextos de divulgação científica e gerado práticas de grupos profissionais e grupos amadores em todo o Brasil. Entre os grupos profissionais, alguns são independentes, como o Núcleo Arte e Ciência no Palco e a Companhia Delas de Teatro. Outros estão vinculados a centros e museus de Ciências, como é o caso do Seara da Ciência (Universidade Federal do Ceará) e do Museu da Vida (Fiocruz-RJ).

Entre os amadores, várias pessoas se reúnem no evento anual Ciência em Cena, que congrega diversos grupos. Muitos deles estão vinculados a universidades, sendo constituídos por estudantes de graduação que encontram no teatro um caminho para se expressarem. É nesse contexto que está o Projeto Ciênica.

O Ciênica é um projeto desenvolvido no Instituto Multidisciplinar de Química, do Centro Multidisciplinar UFRJ Macaé. Fundamenta-se na extensão universitária como processo educativo, cultural e científico, e contempla a articulação com ensino e pesquisa. Entendemos que a extensão universitária se configura como via de mão dupla, na qual a população não-universitária tende a se modificar pelo contato com os conhecimentos produzidos na academia, e os acadêmicos, docentes, técnicos e discentes têm a oportunidade de refletir e reelaborar a práxis do próprio conhecimento acadêmico.

O projeto reúne estudantes de ensino médio, de graduação e de pós-graduação e colaboradores, em torno de discussões em ciência e arte, no âmbito da pesquisa, da educação formal e da divulgação científica. Nasce no ano de 2012, montando e apresentando peças de teatro que abordam as pessoas das ciências, suas vidas, reflexões, conflitos, dúvidas e produções intelectuais.

A finalidade desse projeto é criar e manter um grupo de teatro universitário visando à divulgação artística e científica, bem como à discussão sobre temas na interface entre ciência, tecnologia e sociedade.

Na realização de nosso fazer ciência e arte, temos nos inspirados em várias pessoas e pensamentos. Um deles é Paulo Freire1, em suas ideias sobre estarmos em constante construção (inacabamento) e no movimento de fazermos leitura de mundo para compreendermos nossa localização sociocultural na história e identificarmos as forças que circunscrevem as condições de nossa existência.

Em nossas montagens e espetáculos, procuramos estimular as pessoas a serem mais, a se imaginarem realizando todo seu potencial, seu ser mais. Augusto Boal2 também está conosco. Comungamos da perspectiva de que todos nós temos direito de experimentar e de nos expressar por meio das linguagens artísticas.

Obviamente existem atores profissionais, trabalhadores regulamentados da arte. Aqui se trata de outra coisa, de estimular e retomar o direito de cada um de nós de vivenciar o sensível. Interessa-nos também a prática artística como caminho para a investigação de vidas, de culturas, e para a transformação social. Teatro como arte marcial!

Temos bebido em obras de diversos autores e autoras que tratam da alfabetização científica, como Áttico Chassot3, e que investigam a divulgação científica, como Martha Marandino4. Com esses, compartilhamos a visão de conhecimento científico como lente para interpretar fenômenos de nosso cotidiano e como linguagem para se descrever a natureza. Adotamos a perspectiva de divulgação científica visando à alfabetização científica por meio de processos e ações cada vez mais dialógicos, horizontais e democráticos.

A partir do ano de 2015, depois de aproximações e estudos no Centro do Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro, o Teatro do Oprimido (TO) tem sido adotado como diretriz para nossas montagens teatrais. O TO intenta desenvolver a capacidade de as pessoas perceberem o mundo através de todas as artes, centralizando esse processo na palavra (todos devem escrever poemas e narrativas), no som (invenção de novos instrumentos e de novos sons) e na imagem (pintura, escultura e fotografia). A ideia é transformar o espectador em sujeito transformador da ação dramática, espect-ator, tornando o corpo expressivo.

Nossas peças vêm sendo desenvolvidas no formato de Teatro Fórum, o qual prevê um momento de intervenção da plateia. O espetáculo é apresentado de maneira convencional e a situação de opressão é exposta. Ao final, abre-se a oportunidade de os espect-atores interferirem, cenicamente, no espetáculo, de modo a possivelmente modificar a história, apresentando suas propostas de solução.

O espect-ator escolhe uma cena e substitui um personagem. Tão logo o espect-ator assume o papel do protagonista a peça segue seu curso e todos os personagens agirão conforme suas ideologias e objetivos. O objetivo não é que alguém ganhe, mas que se possa exercitar ações passíveis de serem executadas na vida real. Nosso processo de construção de espetáculos autorais segue algumas diretrizes:

Construção dos espetáculos

Vou exemplificar comentando sobre o processo de montagem da peça IAgora. O tema escolhido foi inteligência artificial (IA), pois esse era o assunto da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2020. Foi pedido que os estudantes de graduação e pós-graduação integrantes do grupo produzissem um texto sobre como a inteligência artificial se relaciona com suas áreas de formação e propusessem uma sinopse para a peça que construiríamos.

Nosso primeiro ensaio foi uma roda de conversas para compartilhamento dos textos e chuva de ideias. Após os debates, decidimos que a peça trataria de três máquinas (o computador, a inteligência artificial e o ser humano) e que o conflito envolveria a substituição do ser humano pela IA. Algumas das reflexões elencadas para comporem a peça foram a ideia da tecnologia como algo inevitável, o acesso e o alcance à tecnologia e as questões éticas envolvidas em seu uso. O passo seguinte foi a construção de um roteiro.

Com o isolamento social imposto pela COVID-19, nossos ensaios aconteceram com cada um em sua casa, limitados às janelas de plataformas de videoconferência. Fizemos dinâmicas, exercícios e jogos do arsenal do TO adaptados para a realização on-line. Pactuamos qual seria o roteiro inicial e delineamos conceitos e assuntos que precisávamos estudar: ‘machine learning’, ‘deep learning’ e ‘big data’; IA na produção de medicamentos e de outras substâncias químicas; IA aplicada a linguagem natural (biometria/escaneamento facial); e ética e IA.

Os assuntos foram distribuídos entre duplas, que tiveram a função de estudá-los e trazer informações sobre eles para o grupo. Nos ensaios seguintes, articulávamos a elaboração da dramaturgia, realizávamos improvisações, escrevíamos o texto de forma coletiva e estudávamos os conceitos. Também discutíamos sobre como abordar conceitos tão específicos e complexos em uma linguagem acessível à população em geral sem transformar nossa peça em uma aula disfarçada.

O espetáculo foi adaptado para apresentação em espaços on-line. Ao final, foi construído o espetáculo ‘IAgora: a robotização humana e a sensibilização da máquina’. A peça mostra Ariel, uma estudante do ensino médio, José, gerente de uma indústria química, uma entrevistadora, e Nine, uma inteligência artificial.

Ariel entra no universo do trabalho, em uma indústria química. Entre escola, família e amizades, ela precisa sobreviver e decidir sobre a sobrevivência de uma idosa, um homem trans, um cientista ou uma indígena. E, se antes a disputa era entre ela e seus semelhantes, agora outro tipo de competidor tem lugar.5

Com o passar do tempo, a vertente de pesquisa foi sendo fortalecida no projeto. Ao lado dos estudantes de iniciação científica e iniciação científica júnior se juntaram pós-graduandos de mestrado e de doutorado, do Programa de Pós-graduação em Ensino de Química (Instituto de Química) e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde (Instituto NUTES).

As linguagens artísticas contempladas atualmente são teatro, dança, música e audiovisual. Em reuniões semanais de grupo de estudos é realizada a gestão das atividades, que envolvem estudos de artigos e livros, debates sobre pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do grupo e elaboração e realização de ações de divulgação científica. Esses encontros são marcados por borrar barreiras entre ensino, pesquisa e extensão.

Ao longo dos anos, diversas apresentações foram realizadas em escolas da rede estadual e municipal de ensino de Macaé e região.

Esse rio é nosso (2012)
Retrata a história de uma família que vive de agricultura familiar e que é ameaçada de ser desalojada para a construção de uma hidrelétrica. A peça discute o impacto do desenvolvimento na vida dos cidadãos.

Tabela periódica: a invenção (2013-2014)
Dois irmãos procuram realizar seus sonhos, mas com as dificuldades ambos ficam desanimados. O pai deles conta então alguns eventos da vida do químico Mendeleiev e mostra a necessidade de dedicação e esforço.

Imutável? (2016)
Debate em que medida o conhecimento científico pode possibilitar a opressão ou a libertação.

Quem roubou meu arco-íris? (2017-2018)
Aborda a temática da luz, de maneira a dar continuidade às comemorações do Ano Internacional da Luz, celebrado em 2015.

IAgora: a robotização humana e a sensibilização da máquina (2021)

Sua companhia (2021)
Mostra um encontro virtual entre amigos durante a pandemia. Eles compartilham suas vidas, conflitos e esperanças durante o isolamento social.

Lição de botânica (2022)
O texto de Machado de Assis aborda a vida de um cientista que intenta preparar seu sobrinho para seguir na tradição da família na ciência, porém se depara com um amor.

Apresentação da peça ‘Quem roubou meu arco-íris?’

Nos anos de 2016, 2017 e 2019, realizamos oficinas livres de teatro. Uma delas foi no Colégio Estadual Doutor Télio Barreto, com foco em cientistas negros e negras. Nossos principais resultados são a montagem e apresentação de peças teatrais sobre temas de ciências e tecnologia, a popularização de informações sobre ciência e tecnologia entre estudantes de educação básica, a formação de estudantes de graduação e de pós-graduação em divulgação científica e em pesquisa acadêmica e a produção de conhecimentos sobre divulgação científica mediada pelas artes.

Notas

  1. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 2005. [voltar]
  2. BOAL, A. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Civilização Brasileira, 2013. [voltar]
  3. CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, n. 22, p. 89–100, jan. 2003. [voltar]
  4.  MARANDINO, M. Faz sentido ainda propor a separação entre os termos educação formal, não formal e informal? Ciência & Educação, v. 23, p. 811-816, 2017. [voltar]
  5. MOREIRA, L. M. IAgora: a itinerância em tempos de pandemia. Actio: Docência em Ciências, v. 1, p. 1-24, 2021. [voltar]
Leonardo M. Moreira

Ator e diretor de teatro. Licenciado em Química, mestre em Ensino de Ciências e doutor em Educação. Professor associado no Instituto Multidisciplinar de Química, do Centro Multidisciplinar UFRJ Macaé. Coordena o Projeto Ciênica e desenvolve pesquisas sobre os temas: divulgação científica, ciência e arte e ensino de ciências e educação para as relações étnico raciais. Contato: leo.qt@hotmail.com

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