Geoconservação

Casa da Pedra UFRJ: a memória da pedra Cariri

Manuela de Freitas Braga, Lívia Manuela Gomes Caetano, Murilo Ferreira Quintão e Ismar de Souza Carvalho, 30/04/2024

Ilustração: Anna Sgarbi

Introdução

A Casa da Pedra é um polo do Instituto de Geociências (IGEO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) localizado no Distrito de Inhumas, município de Santana do Cariri, no sul do Ceará. Desde a sua idealização, esse polo teve como objetivo propiciar, facilitar e consolidar a pesquisa na região acerca de sua riqueza geológica e paleontológica; auxiliar na formação de alunos da graduação e da pós-graduação; além de promover a difusão científica juntamente com os importantes ideais da geoconservação. 

O terreno doado pela Prefeitura Municipal de Santana do Cariri, em 2014, teve sua inauguração como polo educacional da UFRJ em junho de 2016.1 O local apresenta um espaço de convivência de cerca de 1.000m² que conta com 78 leitos distribuídos em 13 quartos, proporcionando estadia e alimentação durante os trabalhos de campo na região aos alunos e pesquisadores das áreas de geologia, geografia, paleontologia e meteorologia da UFRJ, como também estudiosos de instituições parceiras. 

Com a oportunidade de permanência no local, além do enriquecimento geocientífico e acadêmico, os alunos também são expostos a uma rica experiência de imersão sociocultural no Nordeste do Brasil. A estadia torna o local agregador, levando a um engrandecimento pessoal, além de contribuir para a formação de uma visão mais crítica sobre a realidade do Brasil, expondo temas como a escassez dos recursos hídricos, a ocupação do território brasileiro e a utilização da terra, assim como a territorialidade e a distribuição de renda.

Figura 1: Dependências do polo Casa da Pedra são compostas por 13 quartos, sala de aula, área comum, cozinha e jardim

Localização e contexto geológico

A Casa da Pedra encontra-se inserida no contexto geológico da Bacia do Araripe, uma extensa área que abrange os estados do Piauí, do Ceará e de Pernambuco, com aproximadamente 12.000km². O embasamento dessa bacia é formado por rochas da Província Borborema,2 juntamente com unidades metavulcano-sedimentares, originadas há cerca de 2,5 bilhões de anos.3 A evolução geológica da Bacia do Araripe está intimamente ligada ao processo de rifteamento, um fenômeno causado pelo movimento divergente de placas tectônicas. Esse rifteamento ocorreu em três estágios distintos: pré-rifte, sin-rifte e pós-rifte.

A tectônica de placas desempenhou um papel crucial na fragmentação do Gondwana, há cerca de 150 milhões de anos. Durante o Cretáceo Inferior, aproximadamente há 145 milhões de anos, o movimento divergente das placas resultou na separação do antigo supercontinente Gondwana, formando o Oceano Atlântico Sul e os continentes da América do Sul e África.4 Esse processo também foi influenciado pela deposição sedimentar na Bacia do Araripe, cujas sucessões geológicas representam os estágios tectônicos e as mudanças paleoambientais ao longo do tempo.

A pedra Cariri

A pedra Cariri é um tipo de rocha sedimentar carbonática encontrada no Grupo Santana, Formação Crato, que aflora no Vale do Cariri e nas encostas da Província Borborema. Composta por calcário laminado micrítico e granulação fina, possui uma coloração bege, marrom e cinza, contendo uma grande quantidade de matéria orgânica associada a fitoplânctons, algas e cianobactérias, intercalada com outros tipos de rocha como folhelhos e arenitos.

Sua formação difere de outras rochas sedimentares como arenito por ser composta principalmente de minerais de cálcio e ter sido formada pela precipitação química de material orgânico e inorgânico em ambientes lacustres. O calcário laminado foi depositado durante o Cretáceo Inferior (Aptiano-Albiano), em um paleoambiente de sistema lacustre salobro,5 com altas concentrações de sais dissolvidos, associado a sistemas flúvio-deltaicos. Essas rochas são mundialmente conhecidas pela abundância e excepcional preservação de seus fósseis.67

A Casa da Pedra construída com a pedra Cariri

A Casa da Pedra foi planejada para utilizar rejeitos da mineração e aproveitar a riqueza, abundância e história da pedra Cariri. Em toda a sua estrutura foi utilizado o calcário laminado que aflora na localidade. A mão-de-obra utilizada na construção foi de moradores da região.

Para esse contexto, é importante entender alguns aspectos da mineração dessa rocha. A extração de calcário desempenha um papel fundamental na economia do município. A maior parte da população não possui vínculo empregatício,8 o que dissemina a presença do trabalho informal. Devido à abundância desse tipo de rocha, foi-se tendo a lavra da mesma como uma fonte crucial de renda para a população da região. Assim, ao longo do tempo, foi sendo criada uma mão-de-obra altamente qualificada na manipulação da pedra Cariri, o que acarretou, junto com a sua abundância, sua ampla utilização como revestimento nas construções civis, principalmente nos municípios de Santana do Cariri, Crato e Nova Olinda.

Ações educativas da UFRJ através da Casa da Pedra

Desde sua inauguração em 2016, a Casa da Pedra tem sido responsável por auxiliar na construção do saber e na criação de vivências de futuros geocientistas. A proximidade da área da estadia com a área de estudo facilita o processo de ensino-aprendizagem, já que menos tempo é demandado no trajeto até o local de pesquisa. 

Ao longo dos anos, a UFRJ foi capaz de promover diversas ações educativas em Santana do Cariri juntamente com instituições parceiras. A Universidade pôde receber outras instituições como: Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do Piauí, Universidade Estadual Vale do Acaraú, Universidade Federal do Vale do São Francisco, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Regional do Cariri, com seus respectivos eventos. Foi ali que ocorreu também a instalação da primeira estação meteorológica para análise de materiais particulados da região do Cariri, estabelecida em colaboração com a Universidade Federal do Cariri.

A Casa da Pedra foi sede de diversos eventos de apoio, incentivo e desenvolvimento do turismo na região; estabeleceu parcerias com grupos importantes como a Associação de Agricultores de Santana do Cariri; promoveu  parcerias de treinamento de profissionais da área de geociências com a Associação Brasileira de Geologia do Petróleo; foi parceira e recebeu os participantes do XII Simpósio Nacional de Geomorfologia (SINAGEO) com o tema “Paisagem e Geodiversidade: a valorização do Patrimônio Geomorfológico Brasileiro”; entre outras ações.

Anualmente, duas disciplinas ministradas nos cursos de graduação em Geologia e Geografia da UFRJ, Paleontologia e Paleogeografia, respectivamente, utilizam a Casa da Pedra. Nelas, cerca de 100 estudantes desbravam e compreendem um pouco mais sobre geologia, paleontologia e paleogeografia da região a cada ano, com um enfoque maior à mais extensa das bacias interiores do Nordeste do Brasil, a Bacia do Araripe. A criação da unidade foi fundamental para o suporte de atividades de pesquisa do Instituto de Geociências que ocorrem desde 1969 na região e em regiões adjacentes.9

Figura 2: Integrantes da excursão da atividade de campo da turma da disciplina de Paleontologia, do curso de Geologia da UFRJ. Atividade realizada em fevereiro de 2024.

Em 2023, a Casa da Pedra também recebeu os pesquisadores do projeto Astroturismo nos Parques Brasileiros, que exploraram os céus da Chapada do Araripe. Tal projeto da UFRJ em parceria com o Observatório Nacional busca apresentar o astroturismo e fomentar a capacidade do Brasil como grande atuante desse segmento do turismo através de estudos técnicos que comprovem tal potencial. O céu sem poluição luminosa, diferente dos grandes centros urbanos, é ideal para a prática do astroturismo.

Além das ações educativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e instituições parceiras, vale ressaltar que a Casa da Pedra também tem sido um grande centro de educação e cultura para os moradores da própria região. O polo foi responsável por sediar diversos eventos com temas variados. Ao longo dos anos, contou com espetáculos de música, dança e teatro; exposições artísticas; cursos para qualificação pessoal em diferentes áreas; cursos de formação musical infantil; palestras de conscientização em parceria com a Secretaria de Saúde; visitas e palestras das escolas públicas do município; entre outros.

Conclusão

Na obra “Metamorfoses”, o poeta latino Ovídio (43 a.C. — 18 d.C.) nos narra o Mito de Deucálion e Pirra, os únicos sobreviventes do dilúvio promovido pela ira de Júpiter. Ao ancorarem no Monte Parnaso, se dirigiram ao Templo de Têmis, e indagaram à titânide como poderiam reparar o dano e trazer auxílio à Terra submersa. A deusa comovida com a humildade dos mortais responde: “Deixai o templo, recobri a cabeça e desprendei as vestes, e os ossos da grande mãe atirai pelas costas”. Deucálion interpretou a mensagem do oráculo: “Gaia é a grande mãe, as rochas são os ossos da Terra, para trás lançá-las nos ordenam”. Os dois se distanciaram e começaram a arremessar as pedras por sobre as próprias pegadas. As pedras foram perdendo a dureza e o rigor, aquelas partes umedecidas de terra transformaram-se em carne, o que era sólido e inflexível viraram ossos, aquilo que era veio, veia se tornou. Logo, graças aos deuses, as pedras lançadas pelo homem tomaram a forma de homem, e as das mãos da mulher, surgiram as mulheres. E o poeta conclui: “Daí que, sendo espécie apta à dura labuta, damos provas de termos nascido das pedras”.10

A memória da Pedra Cariri preservada entre as paredes da Casa da Pedra é prova da obstinação dos habitantes da Bacia do Araripe que há séculos utilizam o calcário para construção de casas, igrejas, sepulturas e objetos do cotidiano. Isso permite o resgate e o registro do passado geológico da região e promove os ideais de geoconservação e geodiversidade, fundamentais para a manutenção da história da Terra. A Casa da Pedra, desde sua construção, tem se tornado muito mais do que um polo educacional, ela vem se transformando em um espaço de respeito e valorização da história do povo que ali habita e da identidade territorial daquele lugar.

Figura 3: Panorama externo das acomodações da Casa da Pedra, polo educacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Geociências

Agradecimentos

Agradecemos ao Secretário de Cultura e Turismo, Ypsilon Rodrigues Félix, por sua dedicação exemplar à causa da conservação da Pedra Cariri.

Notas

  1. Ruiz, J. Casa da Pedra facilita estudo de rochas do pré-sal. 2016. Disponível em: https://conexao.ufrj.br/2016/09/casa-da-pedra-facilita-estudo-de-rochas-do-pre-sal/ [voltar]
  2. Cabral, F.; Silveira, A.; Ramos, G.; Miranda, T.; Barbosa, J.; Neumann, V. Microfacies and diagenetic evolution of the limestones of the upper part of the Crato Formation, Araripe Basin, northeastern Brazil. Brazilian Journal Geology, 49(1) 2019. https://doi.org/10.1590/2317-4889201920180097 [voltar]
  3. Azambuja, R. Modelos de reconstrução cinemática e paleogeográfica das bacias mesozóicas onshore do nordeste do Brasil. Trabalho de Conclusão de curso, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. [voltar]
  4. Soares, R. Geoturismo no Geopark Araripe CE, Brasil: comunidade e Desenvolvimento Territorial. Programa de Pós-Graduação em Geologia, Tese de Doutorado, Universidade Federal do Ceará, 2019, 180 p. [voltar]
  5. Silveira, L.; Borghi, L; Bobco, F.; Araujo, B.; Krothk, M.; Duarte, G.; Ferreira, L; Mendonça, J. Multiscale Charactezation of An Extensive Stromatolite Field: New Journal of Sedimentary Research, 2023, v. 93, 776–795. DOI: 10.2110/jsr.2022.090 [voltar]
  6. Catto, B. Lamitos Microbiais no Membro Crato (Neoaptiano), Bacia do Araripe, Nordeste do Brasil. Programa de Pós-Graduação em Geociências, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2015, 102 p. [voltar]
  7. Ribeiro, G.; Varejão, F.; Battirola, L.; Pessoa, E.; Simões, M.; Warren, L.; Riccomini, C.; Payato-Ariza, F. Towards an actualistic view of the Crato Konservat-Lagerstätte paleoenvironment: A new hypothesis as an Early Cretaceous (Aptian) equatorial and semi-arid wetland. Earth-Science Reviews, 216 (2021) 103573. https://doi.org/10.1016/j.earscirev.2021.103573 [voltar]
  8. Castro, A.R.S.F. O patrimônio geológico sob a perspectiva da população residente no município de Santana do Cariri, Ceará. Programa de Pós-Graduação em Geologia, Tese de Doutorado em Geologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014, 300p. [voltar]
  9. Henriques, M.H.; Castro, A.R.S.F; Félix, Y.R.; Carvalho, I.S. Promoting sustainability in a low density territory through geoheritage: Casa da Pedra case-study (Araripe Geopark, NE Brazil). Resource Policy 67, 101684. 2020 https://doi. org/10.1016/j.resourpol.2020.101684. [voltar]
  10. Ovídio. Metamorfoses. São Paulo: Editora 34, 2017. [voltar]
Manuela de Freitas Braga

UFRJ – IGEO, Departamento de Geologia

Lívia Manuela Gomes Caetano

UFRJ – IGEO, Departamento de Geologia

Murilo Ferreira Quintão

UFRJ – FCC, Casa da Ciência

Ismar de Souza Carvalho

UFRJ – IGEO, Departamento de Geologia / FCC, Casa da Ciência

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