Patrimônio

Campanha Recompõe: reconstruindo o acervo expositivo do Museu Nacional/UFRJ

Alexander W. A. Kellner, Maria Gabriela Evangelista Soares da Silva e Mariah Martins, 07/11/2023

Ilustração: Anna Sgarbi

Conforme foi repetido diversas vezes, o incêndio do Museu Nacional/UFRJ pode ser considerado a maior tragédia no campo museal do Brasil, transcendendo as fronteiras do país.1 Mesmo diante da absurda destruição, que teve fortes impactos na ciência, cultura, memória e nas questões ligadas à proteção do patrimônio, o sentimento geral, desde o início, foi o da necessidade de reconstrução.2

O ano de 2018 significou um momento complexo na vida política nacional, com uma eleição presidencial em curso quando ocorreu o incêndio (02 de setembro de 2018), em que já se desenhava a escolha por um governo com um pensamento bem distinto dos anteriores no que se refere à educação, à cultura e à ciência.

Hoje, com a nova eleição presidencial ocorrida em 2022, essa situação mudou, havendo um maior envolvimento do governo federal nas ações de reconstrução do Museu Nacional/ UFRJ, por intermédio, sobretudo, do Ministério da Educação.3

Ao contrário do que se poderia imaginar, entre os maiores desafios para que o primeiro museu do Brasil tenha o espaço expositivo reaberto, a questão financeira está em segundo plano. Em 3 de setembro de 2018, menos de 24 horas do incêndio, foi deixado claro em inúmeras entrevistas que o maior obstáculo para a reconstrução da instituição era (e ainda é) a recomposição do acervo. O Museu abrigava aproximadamente 20 milhões de itens, sendo então referência na América do Sul no campo das ciências naturais e da antropologia. Estimativas iniciais já davam conta de uma perda muito grande2, que hoje sabemos ser em torno de 85%, ainda maior do que previsto inicialmente.4

No que tange ao acervo, logo de início, diversas instituições, sobretudo do exterior, ofereceram réplicas e imagens. No entanto, a direção do Museu declinou na maioria dos casos, enfatizando, em todos os momentos possíveis, que é necessária a obtenção de material original para o seu acervo, sobretudo considerando as exposições.5

O entendimento é que um museu de história natural não sobrevive sem objetos originais. Naturalmente existem exceções, como algumas peças raras que precisam constar do acervo — situação em que réplicas e empréstimos de longa duração podem ser considerados.

Figura 1 Réplica de celacanto, um peixe extremamente raro, que foi doado pelo Muséum National d’Histoire Naturelle, de Paris. Um espécime perdido na tragédia fazia parte das coleções do Museu Nacional, tendo tido destaque nas exposições. 

Entre os esforços de alertar para a questão do acervo em nível nacional e internacional, a instituição decidiu criar a campanha Recompõe, lançada em 2 de setembro de 2021 — quando foi registrada a passagem dos três anos da tragédia.

Ao ficar claro que não haveria suporte financeiro por parte do projeto Museu Nacional Vive para essa ação, que atua nas atividades de reconstrução, todo o trabalho, desde a concepção do site original e sua implementação, ocorreu graças aos esforços de voluntários de dentro e de fora da instituição. As ações iniciais que incluíram a disponibilidade em formato bilíngue, assim como o vídeo institucional, foram desenvolvidas em aproximadamente um mês. Esse é mais um exemplo do apoio de pessoas para a reconstrução do Museu.

Um dos pontos mais importantes da campanha é um manifesto de como a instituição iria se portar com relação à aquisição do acervo. A declaração de compromisso com a recomposição das coleções do Museu Nacional contém o texto abaixo, que norteia as ações relacionadas às doações:

(…) Declaramos que não mediremos esforços em salvaguardar o acervo que ainda temos e que venhamos a obter, assumindo o compromisso com a observância aos preceitos éticos e legais, nacionais e internacionais, respeitando as culturas, povos, crenças e soberania de outros países, sempre atuando em benefício da sociedade, do desenvolvimento da ciência, da preservação do meio ambiente e da união das nações. Queremos ser um museu de História Natural e Antropologia inovador, sustentável e acessível, que promova a valorização do patrimônio científico e cultural e que, pelo olhar da ciência, convide à reflexão sobre o mundo que nos cerca, ao mesmo tempo que nos leve a sonhar (…)

A declaração teve como inspiração a participação da Imperatriz Maria Leopoldina (1797-1826) no processo de Independência do Brasil, em 1822. É a Imperatriz que assina a carta em apoio à independência em 02 de setembro de 1822, no Paço de São Cristóvão — hoje o Museu Nacional —, que, juntamente com outros documentos, são encaminhados para D. Pedro (1798-1834), que viria a ser o primeiro imperador do Brasil. A recomposição do acervo expositivo, assim como o processo de reconstrução institucional, deseja valorizar outros personagens e outras perspectivas anteriormente menos destacadas. 

Figura 2 Quadro original retratando a imperatriz Maria Leopoldina, que foi casada com D. Pedro I e que teve participação fundamental na independência do Brasil e no desenvolvimento científico, no século XIX. Doação realizada por Frances Reynolds.

Até o presente momento, foram aproximadamente 7000 peças doadas, envolvendo dezenas de pessoas, comunidades e instituições, nacionais e internacionais. No entanto, um esforço maior será necessário, levando-se em conta que ainda faltam centenas de objetos que devem fazer parte dos futuros circuitos expositivos do Museu. Cumpre esclarecer que, até o momento, nenhuma peça foi recebida da UFRJ. Talvez artigos como este possam incentivar uma virada nesse cenário.

Figura 3 Cocar indígena da Coleção Lukesch doado pelo Universalmuseum Joanneum Volkskundemuseum de Graz, Áustria.

A recomposição das coleções tem ocorrido pela recepção de destacados exemplares que o Museu possuiu, assim como acervos inéditos nas coleções institucionais. A aproximação das instituições e de particulares é indispensável para o andamento da reconstrução do Museu Nacional, inclusive acerca da dimensão da recomposição de seu acervo.

Ao finalizar, não podemos deixar de agradecer as pessoas que fizeram inúmeras doações e cuja generosidade nos inspiram para continuar nessa árdua, mas necessária, tarefa de reconstruir o Museu Nacional/UFRJ, cuja abertura para visitação está programada para abril de 2026.

Notas

  1. KELLNER, A. W. A. 2018. 200 anos do Museu Nacional/UFRJ – desafios e perspectivas. In: Lemos, E.B.R e Costa, A.L.A. Anais, 200 anos de museus no Brasil: desafios e perspectivas. Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), p. 40-51 (ISBN 978-85-63078-71-1). [voltar]
  2. KELLNER, A. W. A. 2019. A reconstrução do Museu Nacional: bom para o Rio, bom para o Brasil. Ciência e Cultura 71(3): 4-5 (ISSN 2317-6660; http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000300001). [voltar] [voltar]
  3. KELLNER, A. W. A. 2023. Lula vai ao Museu Nacional. Jornal da Ciência 7154 (25) 1-2 (http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/25-lula-vai-ao-museu-nacional/). [voltar]
  4. KELLNER, A. W. A. & GUEDES, F. C. C. 2022. A reconstrução do Museu Nacional/UFRJ – Virando a página. Revista Museu 18/05/2022: 1-8 (ISSN 1981-6332; https://www.revistamuseu.com.br/site/br/artigos/18-de-maio/18-maio-2022/14187-a-reconstrucao-do-museu-nacional-ufrj-virando-a-pagina.html). [voltar]
  5. KELLNER, A. W. A. 2019. Das Nationalmuseum in Rio lebt. ICOM – International council of museus Deutschland, Mitteilungen 2019, 41: 20-24 (http://www.icom-deutschland.de/client/media/40/11_mitteilungen_2019.pdf; ISSN 1865-6749). [voltar]
Alexander W. A. Kellner

Diretor do Museu Nacional desde fevereiro de 2018, é paleontólogo dedicado ao estudo de vertebrados fósseis. Realizou doutorado pela Columbia University em programa conjunto com o American Museum of Natural History. Ingressou no Museu em 1997. É Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências e foi admitido na classe de Comendador e Gran Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. Contato: kellner@mn.ufrj.br

Maria Gabriela Evangelista Soares da Silva

Doutoranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestra em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pelo Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. É servidora técnica do Museu Nacional/UFRJ, atuando como Coordenadora do Núcleo de Comunicação e Eventos. Contato: gabriela@mn.ufrj.br

Mariah Martins

Doutora em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2020). É Chefe de Gabinete da Direção do Museu Nacional/UFRJ. Atua em diversos grupos de trabalho vinculados à reconstrução, incluindo o Comitê Curatorial das Novas Exposições do Museu Nacional/UFRJ e no Grupo de Trabalho de Gestão de Risco, Ambiental, Conservação Preventiva e Restauro. Contato: mariah@mn.ufrj.br

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