Direito

Bolsonarismo Judicial: a tradição autoritária e o modo neoliberal de julgar

Rubens Casara, 23/09/2020

Neste texto, adaptado de seu mais recente livro, Bolsonaro: o mito e o sintoma, Rubens Casara discute a função do Poder Judiciário na crise da democracia liberal e diante do que denomina Bolsonarismo Judicial, que engloba a violação dos direitos e garantias fundamentais e as inovações de inspiração neoliberal no Sistema Judicial, visando a uma atuação que leva à imunização do mercado e dos verdadeiros detentores do poder econômico

Introdução

No imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque. Espera-se dele a solução para os conflitos e os problemas que as pessoas não conseguem resolver sozinhas. Diante dos conflitos intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista (que incentiva a concorrência e a rivalidade ao mesmo tempo em que cria obstáculos ao diálogo), de sujeitos que se demitem de sua posição de sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o comanda e não se autorizam a pensar e solucionar seus problemas), da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos individuais, coletivos e difusos, o Poder Judiciário apresenta-se como o ente estatal capaz de atender às promessas de respeito à legalidade descumpridas tanto pelo demais agentes estatais quanto por particulares. E, mais do que isso, espera-se que seus integrantes sejam os responsáveis por exercer a função de guardiões da democracia e dos direitos.

A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no ambiente democrático. Ao longo da história do Brasil, não foram poucos os episódios em que juízes, desembargadores e ministros das cortes superiores atuaram como elementos desestabilizadores da democracia e contribuíram à violação de direitos, não só por proferirem decisões contrárias às regras e aos princípios democráticos como também por omissões.

Ao longo da história do Brasil, não foram poucos os episódios em que juízes, desembargadores e ministros das cortes superiores atuaram como elementos desestabilizadores da democracia e contribuíram à violação de direitos, não só por proferirem decisões contrárias às regras e aos princípios democráticos como também por omissões.

A compreensão da democracia como um horizonte que aponta para uma sociedade autônoma construída a partir de deliberações coletivas, com efetiva participação popular na tomada das decisões políticas e ações voltadas à concretização dos direitos e garantias fundamentais, permite identificar que, não raro, o Poder Judiciário reforça valores contrários à soberania popular e ao respeito aos direitos e garantias fundamentais, que deveriam servir de obstáculos ao arbítrio, à opressão e aos projetos políticos autoritários. Nos últimos anos, para dar respostas (ainda que meramente formais ou simbólicas) às crescentes demandas dos cidadãos (percebidos como meros consumidores), controlar os indesejáveis aos olhos dos detentores do poder econômico, satisfazer desejos incompatíveis com as “regras do jogo democrático” ou mesmo atender a pactos entre os detentores do poder político, o Poder Judiciário tem recorrido a uma concepção política antidemocrática, forjada tanto a partir da tradição autoritária em que a sociedade brasileira está lançada quanto da racionalidade neoliberal, que faz com que ora se utilize de expedientes “técnicos” para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora se recorra ao patrimônio gestado nos períodos autoritários da história do Brasil na tentativa de atender aos objetivos do projeto neoliberal. Impossível, portanto, ignorar a função do Poder Judiciário na crise da democracia liberal. Uma crise que passa pela colonização da democracia e do direito pelo mercado, com a erosão dos valores democráticos da soberania popular e do respeito aos direitos fundamentais.

Impossível, portanto, ignorar a função do Poder Judiciário na crise da democracia liberal. Uma crise que passa pela colonização da democracia e do direito pelo mercado, com a erosão dos valores democráticos da soberania popular e do respeito aos direitos fundamentais.

Tradição autoritária

Vive-se um momento no qual os objetivos e o instrumental típico da democracia acabaram substituídos por ações que se realizam fora do marco democrático. No Brasil, uma das características dessa mutação antidemocrática foi o crescimento da atuação do Poder Judiciário correlato à diminuição da ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial, isso a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira. Hoje, percebe-se claramente que o Sistema de Justiça se tornou um locus privilegiado da luta política.

Por evidente, não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário desassociada da tradição em que os magistrados estão inseridos. Adere-se, portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade, sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal, patrimonialista e escravocrata, constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo.

Pode-se falar em um óbice hermenêutico para uma atuação democrática no âmbito do Sistema de Justiça. Isso porque há uma diferença ontológica entre o texto e a norma jurídica produzida pelo intérprete: a norma é sempre o produto da ação do intérprete condicionada por uma determinada tradição. A compreensão e o modo de atuar no mundo dos atores jurídicos ficam comprometidos em razão da tradição em que estão lançados. Intérpretes que carregam uma pré-compreensão inadequada à democracia (em especial, a crença no uso da força, o ódio de classes e o medo da liberdade) e, com base nos valores em que acreditam, produzem normas autoritárias, mesmo diante de textos tendencialmente democráticos. No Brasil, os atores jurídicos estão lançados em uma tradição autoritária que não sofreu solução de continuidade após a redemocratização formal do país com a Constituição da República de 1988.

Os mesmos atores jurídicos que serviam aos governos autoritários continuaram, após a redemocratização formal do país, a atuar no Sistema de Justiça com os mesmos valores, a mesma crença no uso abusivo da força, que condicionavam a aplicação do direito no período de exceção. Nas estruturas hierarquizadas das agências que atuam no Sistema de Justiça, os concursos de seleção e as promoções nas carreiras ficam a cargo dos próprios membros dessas instituições, o que também contribui à reprodução de valores e práticas comprometidos com o passado. O conservadorismo, porém, acabava disfarçado através do discurso da neutralidade das agências do Sistema de Justiça. Interpretações carregadas de valores autoritários eram apresentadas como resultado da aplicação neutra do direito. Basta, por exemplo, prestar atenção em decisões e declarações produzidas por magistrados brasileiros para perceber que essas características se encontram presentes em significativa parcela dos juízes. Na magistratura brasileira podem ser encontrados, dentre outros sintomas:

Os mesmos atores jurídicos que serviam aos governos autoritários continuaram, após a redemocratização formal do país, a atuar no Sistema de Justiça com os mesmos valores, a mesma crença no uso abusivo da força, que condicionavam a aplicação do direito no período de exceção.

O convencionalismo – aderência rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República. Assim, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tende a julgar de acordo com opinião média e naturalizar esses fenômenos.

A agressão autoritária – tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O juiz antidemocrático, da mesma forma que
seria submisso com as pessoas a que considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária), seria agressivo com aquelas que etiqueta inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de juiz se mostra incapaz de fazer qualquer crítica consistente aos valores convencionais, tende a castigar severamente quem os viola.

A anti-intracepção – oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. O juiz autoritário tende a ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que busquem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer compaixão ou empatia.

O pensamento estereotipado – tendência a recorrer a explicações hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas e ideias necessárias para uma compreensão adequada dos fenômenos. Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. O juiz autoritário recorre ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas.

A dureza – preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à desconsideração dos valores atrelados à ideia de dignidade humana.

A confusão entre acusador e juiz – uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia autoritária. No momento em que o juiz protofascista se confunde com a figura do acusador, e passa a exercer funções como a de buscar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, com o comprometimento da imparcialidade. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que aderiu psicologicamente à versão acusatória.

De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário se tornou o que Eugênio Raúl Zaffaroni chama de uma máquina de burocratizar. Esse processo, que se inicia na seleção e treinamento dos magistrados, pode ser explicado: em parte, porque assim os juízes dispensam a tarefa de pensar (há em grande parcela dos juízes um pouco de Eichmann) e, ao mesmo tempo, ao não contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam a colisão com a opinião daqueles que podem definir sua ascensão e promoção na carreira; em parte, porque há uma normalização produzida pelo senso comum e internalizada pelo juiz, através da qual esse ator jurídico passa a acreditar no papel de autoridade diferenciada, capaz de julgar despido de ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que o processo de produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba por condicioná-lo a adotar posturas conservadoras no exercício de suas funções com o intuito de preservar a tradição.

No momento em que o juiz protofascista se confunde com a figura do acusador, e passa a exercer funções como a de buscar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, com o comprometimento da imparcialidade.

A Racionalidade Neoliberal

A transformação da tendência conservadora dos atores do Sistema de Justiça em práticas explicitamente ligadas aos interesses dos detentores do poder econômico se dá a partir da adesão do mundo jurídico à racionalidade neoliberal. Com o empobrecimento subjetivo e a mutação do simbólico produzidos por essa racionalidade, uma verdadeira normatividade que leva tudo e todos a serem tratados como objetos negociáveis, os valores da jurisdição penal democrática (“liberdade” e “verdade”) sofrerem profunda alteração para muitos atores jurídicos. Basta pensar no alto número de prisões contrárias à legislação (como as prisões decretadas para forçar “delações”), nas negociações com acusados em que “informações” (por evidente, apenas aquelas “eficazes” por confirmar a hipótese acusatória e que não guardam relação necessária com o valor “verdade”) são trocadas pela liberdade dos imputados, dentre outras distorções.

O neoliberalismo é, na verdade, um modo de ver e atuar no mundo que se mostra adequado a qualquer ideologia conservadora e tradicional. A propaganda neoliberal, de fórmulas mágicas e revolucionárias, torna-se no imaginário da população a nova referência de transformação e progresso. O neoliberalismo, porém, propõe mudanças e transformação com a finalidade de restaurar uma “situação original” e mais “pura”, em que o capital possa circular e ser acumulado sem limites.1

A racionalidade neoliberal altera também as expectativas acerca do próprio Poder Judiciário. Desaparece a crença em um poder comprometido com a realização dos direitos e garantias fundamentais. O Poder Judiciário, à luz dessa racionalidade, que condiciona instituições e pessoas, passa a ser procurado como um mero homologador das expectativas do mercado ou como um instrumento de controle tanto dos pobres, que não dispõem de poder de consumo, quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal.

A racionalidade neoliberal altera também as expectativas acerca do próprio Poder Judiciário. Desaparece a crença em um poder comprometido com a realização dos direitos e garantias fundamentais

Judiciário e Bolsonarismo: Poder Judiciário como instrumento do autoritarismo a serviço do neoliberalismo

O que há de “novo” na relação entre o Poder Judiciário e o fenômeno do Bolsonarismo é que este simboliza a união entre o autoritarismo e o projeto neoliberal. Por Bolsonarismo Judicial pode-se chamar o fenômeno que engloba a naturalização com que os direitos e garantias fundamentais são violados e as inovações de inspiração neoliberal no Sistema de Justiça, tais como a proliferação de delações premiadas, os cálculos de “produtividade” dos juízes, a aplicação de técnicas de gestão privada ao Poder Judiciário, a flexibilização das formas processuais (que, no modelo democrático, serviam como garantias contra a opressão estatal), dentre outras mudanças que levam a modificações na cultura da instituição.

O que há de novo, e revela a engenhosidade do modelo, é que essa nova forma de governabilidade autoritária do Sistema de Justiça, que surge da crise produzida pelos efeitos do neoliberalismo (desagregação dos laços sociais, demonização da política, potencialização da concorrência/rivalidade, construção de inimigos, desestruturação dos serviços públicos, etc.), promete responder a essa crise com medidas que não interferem no projeto neoliberal e, portanto, não alcançam a causa da cólera e do ressentimento da população. Para iludir e mistificar, criam-se inimigos imaginários (os direitos humanos, a democracia representativa, a degradação moral, a depravação sexual, a diversidade, as minorias, Lula, Kirchner, Sócrates, etc.) que não só são apresentados como os responsáveis pelos problemas concretos suportados pela população, como também passam a ser alvos do Poder Judiciário. A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento dos valores democráticos fazem com que o Judiciário seja visto cada vez mais como uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Se, por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática são incapazes de identificar no Poder Judiciário um instrumento de construção da democracia ou de barreira ao arbítrio; por outro, pessoas que acreditam em posturas autoritárias (na crença da força em detrimento do conhecimento, na negação da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma epistemologia autoritária.

Por Bolsonarismo Judicial pode-se chamar o fenômeno que engloba a naturalização com que os direitos e garantias fundamentais são violados e as inovações de inspiração neoliberal no Sistema de Justiça(…)

Não causa surpresa, portanto, que considerável parcela dos meios de comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de ódio e ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia. Não se pode esquecer que os meios de comunicação de massa têm a capacidade de fixar sentidos e alimentar ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social acerca do Poder Judiciário. Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou do mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a democracia.

Entender o funcionamento do Bolsonarismo Judicial, a versão brasileira do Poder Judiciário para o neoliberalismo ultra-autoritário, passa necessariamente por reconhecer que essa atuação leva à imunização do mercado e dos verdadeiros detentores do poder econômico contra qualquer ameaça ou intervenção externa (e a democracia é vista como uma ameaça). O neoliberalismo, ao mesmo tempo que faz da ilimitação e da concorrência os modelos normativos a serem seguidos nas relações sociais e nas instituições, produzindo igualmente mudanças na subjetividade, tem também uma “dimensão destrutiva”, como bem percebeu Pierre Sauvêtre. Essa dimensão destrutiva visa eliminar tudo aquilo que possa representar um risco à propriedade, ao mercado, à livre circulação do capital, ao lucro, enfim, aos interesses dos detentores do poder econômico. E isso pode se dar tanto no que diz respeito à proteção do mercado contra práticas sociais ou políticas democráticas de redistribuição de renda ou regulatórias quanto na eliminação, inclusive pelo Sistema de Justiça, dos inimigos do projeto neoliberal através de medidas autoritárias.

Conclusão

As mudanças provocadas no Estado pelo neoliberalismo, entendido não apenas como uma teoria econômica ou como uma mera ideologia, mas como um modo de governabilidade e de subjetivação, que faz do mercado o modelo para todas as relações sociais e da concorrência a lógica a ser seguida pelos indivíduos, transformou o Poder Judiciário em uma empresa que percebe os direitos e garantias fundamentais, as teorias jurídicas e as formas processuais como obstáculos à eficiência repressiva do Estado e ao livre funcionamento do mercado (ou seja, aos ganhos dos detentores do poder econômico).

A ausência de uma cultura democrática, a falta de uma compreensão acerca da necessidade de limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, facilita a transformação do Estado em empresa, com juízes reproduzindo em suas atuações a ilimitação típica do capitalismo. Se o que importa é sempre aumentar o capital e vencer a concorrência (o que amplia a rivalidade entre os indivíduos e transforma parcela da sociedade em “inimigos”), juízes de todo o Brasil passaram a atuar sem compromisso com a legalidade estrita (correlato ao sistema de freios e contrapesos entre os órgãos estatais), princípio historicamente construído com objetivo de evitar o arbítrio e a opressão.

Entender o funcionamento do Bolsonarismo Judicial, a versão brasileira do Poder Judiciário para o neoliberalismo ultra-autoritário, passa necessariamente por reconhecer que essa atuação leva à imunização do mercado e dos verdadeiros detentores do poder econômico contra qualquer ameaça ou intervenção externa (e a democracia é vista como uma ameaça).

Com o desaparecimento dos vínculos legais que estabeleciam “quem pode” e “como se deve decidir”, bem como “o que se deve” e “o que não se deve” decidir, instaurou-se uma espécie de vale-tudo normativo no qual juízes passam a criar, em um tipo procedimento paranoico, pautado por certezas (por vezes, delirantes) e preconceitos, as soluções dos casos postos à apreciação judicial.

A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, a partir da manipulação do ressentimento e da cólera presentes na sociedade brasileira, revela-se plenamente compatível com esse novo neoliberalismo ultra-autoritário, que visa à ilimitação e abusa do poder, e que precisa de um Poder Judiciário capaz de exercer tanto a gestão dos interesses dos detentores do poder econômico quanto o controle da população indesejada (mais precisamente, os pobres e os inimigos políticos do projeto neoliberal). Afinal, não deve causar surpresa que uma sociedade que aceita o afastamento dos direitos fundamentais vote em um candidato que defende a tortura e homenageia torturadores.

Versão modificada de um capítulo de Bolsonaro: o mito e o sintoma (São Paulo: Contracorrente, 2020).

Texto recebido em 4 de agosto de 2020.

Notas

  1. Nesse sentido: Laval, Christian. Foucault, Bordieu et la question néolibérale. Paris: La Découverte, 2018. p. 226. [voltar]
Rubens Casara

Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Membro do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD). Membro da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP). Membro do Corpo Freudiano. E-mail: rubens.casara@gmail.com.

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