Apresentação do livro Memoriais da caminhada em direção à universidade pública (2020), coletânea de autobiografias fruto de um projeto de publicação de duas editoras da periferia do Rio de Janeiro, em que jovens subalternizados, estudantes da UFRJ, relatam suas experiências na vida universitária em meio aos percalços de sua realidade, normalmente silenciada
Num barraco da Ladeira Ary Barroso, no Morro da Babilônia, nasce um livro1 destinado a celebrar os 100 anos da UFRJ. Em meio aos grandes eventos de comemoração desse aniversário e a tantos fatos que mobilizam a atenção de todos nestes tempos tristes, talvez a obra passe desapercebida para a maioria. É, contudo, um modo despretensioso e potente de abraçar a todos que fazem a universidade mais antiga do país, justamente neste momento em que os abraços estão interditados.
Num barraco da Ladeira Ary Barroso, no Morro da Babilônia, nasce um livro destinado a celebrar os 100 anos da UFRJ.
Trata-se de um livro com testemunhos de estudantes de graduação e pós-graduação dessa universidade publicado por uma pequena editora independente baseada no alto de uma das favelas mais antigas do Rio de Janeiro. Toda a história começou com a confecção de capinhas de papelão para um livro que seria lançado em uma aula de campo na qual 76 alunos percorreram dez das dezesseis favelas que formam o Complexo da Maré. Depois, a ideia começou a caminhar sozinha e, a partir da inspiração no exemplo da pioneira Eloísa Cartonera, criada em Buenos Aires, em 2003, foram surgindo as publicações da editora artesanal Ganesha Cartonera. Todos os livros são idealizados e confeccionados no Morro da Babilônia (ao lado do bairro do Leme, na Zona Sul da cidade), mas a UFRJ ocupa um lugar central nesse projeto.2
O trabalho que resultou na publicação de Memoriais da caminhada em direção à universidade pública foi todo feito com muita dedicação e cuidado. É fruto de uma parceria firmada entre duas editoras da periferia: uma que surgiu na favela, a Ganesha Cartonera, e outra criada na Baixada Fluminense, a Desalinho Publicações. As duas editoras contam com um grande envolvimento com o espaço acadêmico de modo geral e com a UFRJ em particular. Os dois projetos editoriais foram criados por um professor e por um aluno de doutorado da Faculdade de Letras da UFRJ. Ambos são parceiros nesse projeto político identitário que resultou nas coedições Ganesha Cartonera/ Desalinho e que agora tem como fruto mais recente a publicação dos Memoriais da caminhada, livro organizado pelos professores Ary Pimentel e Edinelia Maria Oliveira Souza.
Esse é um livro sobre dor, pobreza, preconceito, solidão e depressão. Esse é também um livro sobre luta, projetos, conquistas e superação… Tem a pretensão de funcionar como uma caixa de ressonância para narrativas do eu que possam visibilizar os percursos de mulheres e homens infames. O desafio pode parecer grandioso, mas seu nascimento foi bastante modesto e muito entranhado no quotidiano docente e discente.
Alguns meses antes do seu surgimento como projeto de publicação de duas editoras sediadas na periferia do Rio de Janeiro, bem distante dali, em um apartamento na cidade de São Salvador da Bahia, uma professora da UNEB e um professor da UFRJ conversavam sobre o próximo semestre letivo e definiam os detalhes finais de um curso de mestrado e doutorado que seria ministrado por ambos na quase centenária Universidade Federal do Rio de Janeiro.3 Foi nesse momento que se consolidou a ideia de investir mais nos estímulos à primeira pessoa e substituir as tradicionais monografias, exigidas como instrumentos de avaliação nos cursos de pós-graduação, por memoriais em que estivesse presente a teoria, a crítica e a experiência pessoal. As inquietudes dele diante dos modelos já ultrapassados se encontraram com a visão e com as práticas docentes dela, que já havia experimentado o memorial como instrumento de avaliação.
Esse é um livro sobre dor, pobreza, preconceito, solidão e depressão. Esse é também um livro sobre luta, projetos, conquistas e superação… Tem a pretensão de funcionar como uma caixa de ressonância para narrativas do eu que possam visibilizar os percursos de mulheres e homens infames.
Desse diálogo entre os futuros organizadores surgiria o germe da publicação. Com o tempo, acabou por afirmar-se entre os dois a noção de que precisamos falar mais das coisas do íntimo e do privado como uma forma de conhecer um pouco mais a nós mesmos, como uma maneira de nos curarmos das feridas dessa existência. Daí surgiu a ideia de estimular alunas e alunos a escreverem sobre suas caminhadas.
Foi, portanto, da experiência de sala de aula na Faculdade de Letras da UFRJ que surgiram os 21 memoriais que compõem o livro, 21 textos que ajudam a entender os deslocamentos de vidas comuns em tempos sombrios. E é justamente em tempos de acirradas disputas de narrativas como estes que cabe, mais do que nunca, investir no processo de assunção de voz e na problematização do lugar dos “predominadores”, para fazer eco às palavras de Carolina Maria de Jesus, que com essa expressão se referia aos que desde sempre ocuparam posições hegemônicas. As vozes que se imprimem nas páginas de Memoriais da caminhada são a expressão de corpos situados, ecos de trajetórias marcadas pela diferença, fragmentos de vidas de sujeitos alterizados.
Nesse livro, estudantes da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ ousam romper o silêncio, manifestando-se através da palavra escrita para projetar seus balbucios e contar suas histórias. São sujeitos que saem da condição de subalternidade para erguer a voz, como diria bell hooks. São sujeitos que se arriscam a falar, depois de terem sido forçados ao silêncio durante uma eternidade. Erguer a voz significa falar com autoridade, sendo este ato particularmente exercido por um sujeito subalternizado. E falar, nessas circunstâncias, é, em si mesmo, um ato de coragem, um ato de ousadia.
Nesse livro, estudantes da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ ousam romper o silêncio, manifestando-se através da palavra escrita para projetar seus balbucios e contar suas histórias. São sujeitos que saem da condição de subalternidade para erguer a voz, como diria bell hooks.
Romper o silêncio, porém, não é algo fácil para os subalternizados. Foi, muitas vezes, o exemplo ancestral de quem assumiu o papel de romper o silêncio antes deles e delas que os/as inspirou a escrever suas histórias. E os exemplos foram poucos, mas potentes: uma descendente de escravizados, em 1859, foi a primeira mulher a publicar um romance no Brasil; um homem negro que teve problemas com o alcoolismo e passou duas vezes pelo hospício soube representar como ninguém antes dele os subúrbios e os subalternizados do Rio de Janeiro; uma catadora de papelão contou, em diários escritos nos cadernos que encontrava no lixo, seu cotidiano vivido num barraco da favela do Canindé, em São Paulo; uma mulher negra que morava em outra favela, em Belo Horizonte, iria se mudar para o Rio de Janeiro onde acabaria por conquistar um título de doutorado e o reconhecimento no campo literário. Todas essas vozes ancestrais foram importantes para que no presente tantos e tantas tenham a coragem de manifestar a sua fala contundente.
Alguns desses alunos, algumas dessas alunas que agora narram a sua caminhada até bem pouco tempo atrás não conseguiam nem mesmo colocar o projeto de estudar em uma universidade pública no seu horizonte de possibilidades. Um ou outro, uma ou outra, ainda que visse a Ilha do Fundão a partir da laje da sua própria casa, no conjunto de favelas da Maré, não concebia o campus da UFRJ como um espaço público que tivesse sido pensado também para cidadãos como ele, como ela.
Para todos os autores, para todas as autoras dos memoriais essa é a primeira publicação; para muitos, a primeira vez que veiculam a sua história para um público mais amplo. São jovens que tiveram a coragem de erguer a voz, ativando elementos de uma discursividade confessional, que implica algo de testemunho e de autobiografia, espécie de memórias que margeiam a crônica do passado recente. Essa trama tecida no embate com Cronos é feita com os fios das memórias da pele, com os traumas provocados pela discriminação, com as marcas deixadas pelo trabalho manual nos corpos da periferia, com as memórias, enfim, da caminhada de estudantes da Faculdade de Letras da UFRJ. É nesses corpos que se ancoram todas essas experiências que transcendem o sujeito que as vive para oferecer um rico panorama do contemporâneo.
O testemunho que abre a coleção de escritos de alunas e alunos da Faculdade de Letras é centrado nos primeiros anos de vida social de uma menina, filha de empregada doméstica. Antes de falar de sua experiência universitária, a autora fala das expectativas e frustrações, dos sonhos e traumas que marcaram seus primeiros anos. Nessa vida narrada, a violência dos predominadores merece uma atenção especial, e é nesse contexto que se projeta a cena do primeiro assédio sofrido pela autora do memorial que abre o livro. Depois, vêm muitos outros. Cada um deles é a figuração de um eu que se desnuda. É através da fala que se pode chegar à integridade do ser, permitindo que este se torne mais completo, ao recuperar partes esquecidas ou recalcadas de sua história. As narrativas que o leitor encontrará nesse livro não deixam, portanto, de ser um esforço político construído a partir da necessidade de falar de si para compartilhar uma experiência silenciada que, depois descobriremos, é também a de muitos.
O elemento humano quase sempre ausente nas fotos que integram o livro aparece como estruturante em cada um dos 21 relatos. Em todos eles emergem, sem dramas, os absurdos e as contradições da caminhada de corpos alterizados que hoje povoam uma das unidades dessa universidade que completa seu centenário em meio a tempos de pandemia e quarentena.
Como outros tantos testemunhos do livro, o de Guilherme Vieira da Silva Aguiar, intitulado “O rolézim de quase todo dia”, costura o retrato de uma sociedade às voltas com um momento de crise. Em menos de dez páginas, um aluno do curso de Letras (Português-Literaturas) condensa diferentes aspectos que permeiam a sua existência na fronteira entre o conjunto de favelas do Caju e o campus do Fundão, onde fica a Faculdade de Letras da UFRJ. Seu caminho está atravessado pelos “corres” de outros seres humanos. O elemento humano quase sempre ausente nas fotos que integram o livro aparece como estruturante em cada um dos 21 relatos. Em todos eles emergem, sem dramas, os absurdos e as contradições da caminhada de corpos alterizados que hoje povoam uma das unidades dessa universidade que completa seu centenário em meio a tempos de pandemia e quarentena. Sem maquiagens, sem condescendência, mas também sem alardes retóricos, as e os estudantes que construíram essa obra intitulada Memoriais da caminhada narram a vida universitária como uma conquista de jovens de origem popular. Assumindo os riscos de falar a partir desse lugar frágil e movediço, que é o lugar daqueles que tradicionalmente foram falados, as narradoras e os narradores desses Memoriais transitam pelo corpo da UFRJ sem percebê-lo como um espaço estranho, mas tampouco sem idealizar esse mundo ou isentá-lo de críticas.
Texto recebido agosto de 2020.
Notas
- PIMENTEL, Ary; SOUZA, Edinelia Maria Oliveira (org.). Memoriais da caminhada em direção à universidade pública. Rio de Janeiro: Desalinho, Ganesha Cartonera, 2020. 293 p. [voltar]
- As encadernações são confeccionadas com capas feitas a partir de caixas reutilizadas de papelão. Do cartón (“papelão”, em espanhol) recolhido nas ruas surgem as capas artesanais, que são cortadas, dobradas, pintadas e costuradas à mão. Os livros que compõem o catálogo da Ganesha Cartonara derivam dessa confecção de peças únicas, não apresentando, portanto, a uniformidade da produção industrial em série. Essa é a marca da edição artesanal. Criada em 2018, a Ganesha Cartonera tem a intenção de colocar em circulação vozes silenciadas, dicções de sujeitos subalternizados e representações de territórios periféricos que agora se fazem ouvir através da edição de livros artesanais encadernados com o papelão reciclado proveniente de caixas de embalagem compradas de catadores de rua. O papelão recuperado do lixo dá início a um novo ciclo, assumindo a função de proteger as páginas nas quais as obras de autores iniciantes encontram seu suporte, sua materialização e sua possibilidade de circulação. [voltar]
- A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi criada em 7 de setembro de 1920 pelo presidente Epitácio Pessoa. Sua primeira denominação foi Universidade do Rio de Janeiro. Em 1937, no governo de Getúlio Vargas, seu nome foi modificado para Universidade do Brasil. Posteriormente, em 1965, o governo Castelo Branco determinou nova mudança na sua denominação, e ela passou a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro. A UFRJ tem, ao completar 100 anos, 53.482 estudantes de graduação e 11.934 estudantes de pós-graduação stricto sensu; 176 cursos de graduação e 232 cursos de pós-graduação stricto sensu; 4.218 docentes e 9.153 técnicos administrativos. [voltar]
- Ary Pimentel
Professor de literaturas hispano-americanas na Faculdade de Letras da UFRJ. Desenvolve trabalho de extensão e projetos editoriais em territórios periféricos, onde fomenta a publicação independente de novas vozes de sujeitos subalternizados. Em 2019, editou “Clíris: poemas recolhidos”, de Carolina Maria de Jesus. E-mail: ary.pimentelrj@gmail. com.
- Edinelia Maria Oliveira Souza
Historiadora e professora de História na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Faz estágio de pós-doutorado no PACC-UFRJ com projeto de pesquisa sobre o processo de assunção de voz feminina no Atlântico negro. E-mail: edi-souza7@hotmail.com.